Sua capital é a mais colhedora das capitais, é o espelho da alma desse grande povo. Ia nesse dia, uma segunda-feira ensolarada, de céu azul e com um ameno frio, entre o Saldanha e a Biblioteca Nacional, que é próxima, em Entrecampos. Ao dobrar uma esquina vejo algo que, infelizmente, tem se tornado comum neste país: um edifício histórico derrocara em parte sua fachada. Não me lembro em qual a rua ao certo, mas tanto faz, pois poderia ser em qualquer uma, de qualquer cidade ou aldeia de Portugal. Em todas elas há ao menos algum prédio a derrocar. Só no centro histórico de Lisboa são mais de duzentos em risco. Situação não muito diferente se passeares um pouco por outras cidades, tão representativas como Coimbra ou Porto.
Esse prédio é uma metáfora para a situação actual do país: uma fachada oca, fechada para se esconder os problemas, para não vê-los, a evitar o passado, pois há para suas elites uma mácula nele, o seu período revolucionário. Felizmente, este não está tão distante. Por isso, nega-o como bloqueio ao passado. Sob os escombros a que se reduzem estes prédios apagam-se sonhos, esperanças, histórias e vidas. Sim, vidas. E, não o sei de ouvir, sei de vivê-lo: em 2010 o prédio ao lado da residência universitária que habitava com minha esposa derrocou poucos meses antes de ir para lá. Sob as pedras encontraram-se dois idosos que clandestinamente ocupavam o imóvel devoluto, na expectativa de manter um teto sobre suas cabeças. Esse sonho virou tragédia, como muitos outros. Meses depois, a fachada que restava desabou, ameaçando o prédio em que morava, e forçando-nos a fugir às pressas.
Os escombros apenas avolumam o problema secular da falta de moradia, agravado em tempos de crise. Enquanto vedam-se à tijolos portas e janelas, relegando aos pombos o espaço que deveria ser de pessoas, lega-se a ruína preciosidades enquanto se erguem prédios que ninguém poderá morar, pois dinheiro não há. É das maiores irracionalidades que o capitalismo construiu. E, olha que foram muitas.
Esse espetáculo de desmazelo é uma punhalada nos corações daqueles que, como eu, amam aquele país. Mais do que isso, é uma dor que deve ser universal, não só para quem vê aquele ou outro prédio. Pois ali vai-se, e para sempre, uma parte da história, da história portuguesa sim, mas também universal. Não digo isso pelo papel histórico que Portugal teve ao se espraiar pelos quatro cantos do mundo, como se ao universo quisesse conquistar – e, com certeza, se tivesse entrado na era espacial, teríamos portugueses já pelos confins do mesmo. Não é isso. A grande verdade é que nos preocupamos - justamente, diga-se de passagem - com a preservação das espécies animais e vegetais, da diversidade natural, ameaçada pela voracidade dos grandes monopólios, que enxergam o mundo como um grande campo de negócios a se explorar e descartar, mas não nos preocupamos com a diversidade cultural. Sim, avançamos cada vez mais para a possibilidade de uma civilização planetária. Mas, isto não pode nos impedir de defender, não sem o risco de que esta venha a ser não isto, mas apenas a pasteurização de um padrão cultural que avança esfacelando o diferente. Seria este um avanço empobrecedor, que não realizaria as promessas enriquecedoras que traz potencialmente, enquanto promessa.
É necessário defender as culturas, inclusive as culturas nacionais, que são uma linda construção, uma comunidade histórica fruto do convívio de povos, e que em sua diversidade engrandecem a Humanidade. Com os prédios históricos que caem, com as tradições que morrem, vai-se a história nacional, morre a diversidade humana. Uma vez quebrada, é tão irreparável como a natural.
Cada fachada que cai não é só um sonho futuro de moradia que morre, mas é o passado que fenece. Um país ou uma cidade é construída de carne, de sangue, de falares e cantares. Um país ou uma cidade é feita também de memórias, aquelas que voam nas vozes, habitam as mentes, e se inscrevem na pedra. Nas pedras que rolam está a memória de um fazer arquitetônico, de um gosto de época, das vivências dos que lá moraram, muitas vezes ali nasceram e morreram. No desabar dessas relíquias nega-se o quanto de vida, das mãos que a construíram, das cabeças que a pensaram, que lá sempre estariam não fossem as tragédias sistêmicas de um modo de construir a vida que nos condena cada vez mais à destruição e à desmemória.
Não pode-se acusar somente aos políticos, aos gestores das cidades, pela ruína. Apesar de eles tanto se esforçarem para colaborar para a destruição. A culpa final é daqueles que estão por detrás deles, aquela mão invisível que arranca prédios e esmaga povos. O capitalismo não só impede a aurora de um futuro que ajuda a prometer, como possibilidade, mas que faz miragem. Na sua fúria especulativa, na sua volúpia irracional pelo lucro, em sua vontade de poder e força, varre o passado. O capitalismo só nós pode dar um eterno presente, negando o caminho para o futuro e destruindo o passado. Nisso condena-nos a viver nesse tempo decadente, pois sem mirar no futuro, com o olhar do passado, perde-se o sentido da vida. Sinceramente, ansioso espero que o futuro socialista chegue logo para que possamos salvar o passado.
Algures a sobrevoar o vasto Oceano Atlântico, 11/01/2012.
Fonte da foto: blog ruin'arte (http://ruinarte.blogspot.com/).