1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (12 Votos)
Alberto Pombo

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Em coluna

Guerra da Cal, navegante Ulisses

Alberto Pombo - Publicado: Segunda, 28 Março 2011 02:00

Alberto Pombo

Sepultado entre as sombras e tocado por um raio do sol. Nesta dualidade permanece, 15 anos depois do seu passamento, a figura do grande poeta e literato galego, peça chave e de grande influência na espanhola geraçom do 27 e um dos vultos de maior importância no mundo lusófono.


270311_galegas01Compromisso e rigor filológico do galego errante

A existir umha listagem de vítimas da injustiça literária, Ernesto Guerra da Cal ocuparia o primeiro lugar como padecente do esquecimento forçado, oficialista e interesseiro por parte das universidades e instituiçons galegas. As razons som simples e conhecidas, convicçom científico filológica e escolha linguística. Um problema para o império que foi apuradamente silenciado, causando resultados devastadores para a nossa língua, paradoxalmente abrigada hoje sob a antuca ortográfica do espanhol.

Por fortuna, mais para vergonha nossa, só isto sucede na nossa terra, essa peça chave da luso ou galaicofonia que renega de si própria, pois por trás da brêtema que hoje cobre o país, o nosso autor gozou de solene reconhecimento mundial, sendo honrado em vida com inúmeras distinçons entre as que se destacam a medalha Padre Anchieta, a chave da Cidade do Rio de Janeiro, a medalha Oskar Nobiling da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura; a presidência de honra do I e II Congresso Internacional da Língua Galaico-Portuguesa organizado pola Associaçom Galega da Língua, a entrada como sócio na Academia de Ciências de Lisboa e da Sociedade de Geografia, a pertença como membro da Academia Internacional da Cultura Portuguesa ou, ainda, a nomeaçom como doutor honoris causa polas universidades da Bahia e Coimbra. Nom obstante, é preciso determo-nos primeiro na biografia do autor para compreendermos melhor a importância do seu legado.

Guerra Cal nasce no ano 1911 num Ferrol eminentemente rural, humilde e marinheiro que sonhava com o arelado caminho de ferro que viria unir a capital da comarca de Trasancos com Betanços. Baptizado como Ernesto Román Laureano Pérez Güerra, antes de cumprir o primeiro ano o menino perde prematuramente o pai, Román Pérez, amigo íntimo de Castelao nos anos de estudante em Compostela.

O apelido Güerra, com trema, que nom utilizará quando tiver uso de razom, herda-o da sua mae, neta do conde Scopoli que combateu nas fileiras de Garibaldi. A explicaçom da presença desta linhagem na Galiza encontrámo-la no avô materno de Ernesto, arquitecto e engenheiro contratado por Ferdinand de Lesseps para o projecto do Canal de Panamá que, depois do fracasso desta empresa, foi chamado para desenhar o traçado das vias ferroviárias do Estado espanhol, umha delas, a primeira do nosso país, a histórica linha que uniu as cidades de Palência e A Corunha.

Laura Güerra, viúva, resolve trasladar-se a Madrid para findar os estudos de Magistério, enviando os filhos (Ernesto e Fernando) para o vale de Quiroga onde ficarám ao cuidado dos avôs e dumha tia, Teteyo, a quem o autor dedicará seu primeiro poemário: 'Lua de Além-mar'.

A estância em Quiroga marcará de por vida a Guerra da Cal, deixando por sempre nele um pouso melancólico de quem anela volver ver o Sil, os cumes do vale, ou as gentes da Ribeira Sacra, passagens estas que evocará em inúmeras ocasions no decorrer da sua vida e obra.

270311_guerraayala03

Contando os 9 anos, o ainda neno Ernesto desloca-se para Madrid "cursi villa y corte" ou "fosa séptica" em palavras do autor, numha viagem marcada pola agonia de se afastar de Quiroga e a necessidade de se reencontrar com a mae. Desolado pola morrinha, o autor regressa à casa galega para, já com os 11 anos cumpridos, iniciar novamente viagem cara Madrid, onde se instalará e realizará estudos secundários e universitários, finalizando o Curso de Letras em Junho do ano 36.

Nesses anos de estudante, o de Quiroga, pois assim se considerou sempre embora tivesse nascido em Ferrol, foi acusado de participar em actos estudantis contrários à ditadura de Primo de Rivera que o levariam a passar um tempo por trás das grades. Para além do referido, contamos ainda com o testemunho honesto do nosso filólogo, que deixou constância escrita dalgumha das brigas de rua contra os monárquicos.

Sem cairmos numha interminável listagem de nomes devemos apontar que, naquele tempo e lugar, Guerra da Cal estabelecerá relaçom com deputados do Partido Galeguista como Vilar Ponte, Suárez Picallo ou Castelao, poetas latino-americanos como Pablo Neruda, Nicolás Guillén ou Lino Novás Calvo, membros das geraçons hispânicas do 98, como Manuel Machado, e do 27, como Juan R. Jiménez, Cernuda ou García Lorca, e ainda outros nomes como Buñuel, para quem mesmo fará dobragens. Entre os supra referidos, destaca de maneira muito especial a grande amizade que Guerra da Cal travará com o poeta do 'Romancero Gitano', quem, abatido pola morte de Ignacio Sánchez Mejías, será alentado polo de Quiroga para escrever os célebres 'Seis poemas galegos', nos que Guerra da Cal actuará como "dicionário humano".

O terceiro nome pronunciado quando se fala desta obra é o de Eduardo Blanco Amor, quem semelha que com menos rigor filológico do que Ernesto, castelhaniçou —evidentemente sem intençom— e modificou títulos e versos dos poemas referidos antes de lhos enviar a Ângelo Casal. O próprio Ernesto, o mais íntimo amigo de Lorca em palavras do autor auriense, afirmava em 1985 que o livro do andaluz foi o resultado dumha colaboraçom linguístico-literária entre os dous autores, reconhecendo que quatro dos seis originais completos, e as duas primeiras estrofes doutro, eram obra do seu punho e letra.

270311_guerralorcaDa Cal, esse referido dicionário andante, fornecerá a obra de Lorca de léxico galego que o autor granadino desconhece. A este respeito, o próprio da Cal manifestava em epístola e em resposta ao autor da Esmorga o seguinte:

" Él (Lorca) me decía un verso en castellano y yo lo traducía libremente al gallego buscando, como es natural, las palabras que a él más pudieran impresionarle por color, sonido y evocación mágica. Si no le gustaba alguna —pura y simplemente en un juicio poético inmediato— yo le daba otras en opción y él, augustamente, elegía la que le salía de los cojones líricos".

 A "ténue intriga literária" que envolve a célebre obra continua hoje marcada por umha espécie de amnésia lacunar que dará ainda, sem duvidas, para vários estudos.

Contudo, a relaçom com o andaluz chega mais longe. Assim, participa também na actividade cénica do Grupo Teatral Anfistora, co-dirigido polo poeta granadino e Pura Maortua de Ucelay, mae de Margarita de Ucelay, mulher douta e de verbo ágil com a que casará Ernesto no ano 1936 e com a que terá um único filho, Enrique Ucelay da Cal (reparem na ordem dos apelidos).

Nacionalista convencido, radical, afim à causa republicana, Guerra da Cal entra nas Milícias Galegas, combatendo na frente de Toledo e participando no assalto ao Quartel da Montanha. O fim trágico da guerra surpreende-o em Nova Iorque, onde fora enviado em missom oficial e em qualidade de membro do serviço de informaçom militar para o governo legítimo da República. Começa aqui o exílio do poeta, convulsos anos nos que estabelecerá contacto com os galegos de ultramar e nos que verá agromar sua faceta como docente universitário na New York University, onde atinge, no ano 1951, a categoria de professor catedrático de Línguas e Literatura Românicas.

Mercê a um trabalho filológico e literário infatigável, os reconhecimentos sucedem-se um após doutro dando lugar às mais altas distinçons académicas nos EUA, Portugal e Brasil.

Encontramos nestes anos o génio mais viçoso da sua obra, entre a que ocupa um lugar de destaque a investigaçom sobre a 'Língua e Estilo de Eça de Queirós', de 1954, única obra em toda a sua produçom na que o autor tirou do espanhol, trabalho louvado internacionalmente com o que Guerra da Cal se situou como o erudito mais importante da obra do escritor poveiro. Nestes anos, o poeta quiroguês ocupa-se também da parte galega do 'Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira'.

Mais, para além do literário, há um episódio fulcral na vida do autor que nom devemos deixar escapar. Resultado do seu sólido pensamento nacionalista, Guerra da Cal renuncia, no ano 1954, à nacionalidade espanhola. Renuncia pois à Espanha fascista que assassinou Lorca, à Espanha da repressom, do assassinato e da triste história, para se nacionalizar estado-unidense, adaptando os apelidos para o sistema anglo-saxom e lusófono, daí que rejeitemos, com absoluta firmeza, afirmaçons nas que alguns autores falam de pseudónimo e até de heterónimo.

270311_guerracastelao

Cumha vida ao serviço da filologia, Guerra da Cal pronuncia conferências, realiza seminários e cria trabalhos de investigaçom para as universidades e entidades de maior reputaçom e prestigio mundial, como a Fundação Calouste Gulbenkian, a US Information Service ou a Universidade Clássica de Lisboa, a Federal do Rio de Janeiro ou a Princeton e a New York University, dos EUA. Mais o autor será ainda artífice e feitor dumha extensa e rica obra literária, na que sempre portará com intacto fervor patriótico a bandeira do monolinguismo galego.

Defensor da integraçom da Galiza no mundo lusófono e da dignificaçom absoluta da nossa língua, o poeta traçou, na totalidade da sua obra, as linhas que estabeleceriam as teses do reintegracionismo moderno. Lugar destacado na historia literária tenhem os seus poemários 'Lua de Além-Mar' —o primeiro livro no que um autor aposta polo reintegracionismo linguístico após o Ressurgimento— e 'Rio de Sonho e Tempo', publicados por Galáxia nos anos 1959 e 1963.

Aparentemente serôdios se atendemos à idade do autor, o certo é que os primeiros trabalhos literários de Ernesto aparecem já na década dos 30, na revista dos escritores galegos antifascistas 'Nova Galiza', editada em Barcelona.

O catedrático Xosé María Dobarro, amigo do poeta desde a década de 80, profundo conhecedor e reivindicador da sua obra, afirmou que as obras de da Cal fôrom bem acolhidas pola crítica galega, se bem, apontou também para os preconceitos gerados perante o emprego dalgumhas grafias de cariz reintegrador (lh, nh, ç, g e j).

Reformado da sua Cátedra na universidade, Guerra da Cal desloca-se para a residência de Estoril, numha escolha consciente na que o autor manifestou preferir viver numha Galiza livre (Portugal) do que num país semi-conquistado e mediatizado polo Estado Central. Ainda, o professor destacava o facto de, no caso de vir à Galiza, "ter que escuitar os galegos a preferirem, muitos deles, serem espanhóis de quarta do que galegos de primeira". Deitando luz a este respeito, a professora Pilar Garcia Negro explicava que Guerra da Cal nom foi um cosmopolita, mas um galego descomplexado que ensinou a umha geraçom inteira de moços e moças a serem galegos e só galegos.

Já numha das últimas viagens do seu périplo vital, e por enfermidade da sua segunda dona —Elsie Allen da Cal—, trasladam-se a Londres, retornando anos mais tarde para terras lusas. Navegante Ulises, navegante galiciano, galego errante e náufrago, Guerra da Cal fechará os olhos em Lisboa num triste dia de 1994, com o sentimento de amor pola Galiza, paraíso perdido do poeta, intacto.

270311_guerra1

Cumpridos três lustros desde a sua perda, o nosso país arrasta hoje as ignominiosas correntes do silenciamento de todo o que nom casou com a norma, e assim, Ernesto Guerra da Cal continua a ser silenciado na terra que o viu nascer, e à que dedicou sua produçom literária, por ter apostado polo rigor científico, filológico e polos postulados herdados de Pintos, Biqueira, Murguia ou Castelao, e que compartiu com Carvalho Calero, Marinhas del Valle e tantos outros.

Convencido da unidade linguística e cultural galego-portuguesa, Guerra da Cal empregou sempre a grafia internacional da nossa língua, a que floresce em Portugal como asseverou Castelao, para se manifestar em galego. Para esta escolha, o filólogo argumentou duas razons, a primeira apontando para "a evidência de que o sistema gráfico vigente —na Galiza— até hoje entre nós nom tem base algumha respeitável, nem histórica, nem científica"; e a segunda, "por considerarmos inadiável o restabelecimento dos vínculos tradicionais das nossas letras com o âmbito amplo e rico da cultura luso-brasileira, à qual tanto polo verbo como polo espírito pertencemos".

Da nossa parte, ponderemos. Nada mais a dizer.

 


Artigo publicado na ediçom impressa do suplemento cultural Saberes [páginas 1-3] de La Opinión de A Coruña, ediçom do 10 de Outubro de 2009, reproduzido aqui com motivo do 100 aniversário do nascimento do autor que virá a se materializar no dia 19 de dezembro do presente ano 2011.

Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.