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Miguel Urbano Rodrigues

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Henri Favre e os Maias Contemporâneos

Miguel Urbano Rodrigues - Publicado: Domingo, 27 Setembro 2015 12:27

Li com prazer e proveito o ensaio de Henri Favre sobre os Maias do México[1].


Conhecia um importante livro seu sobre a história do quechua, idioma falado dos Andes equatorianos à Bolívia e ao norte da Argentina quando Pizarro chegou no seculo XVI.
 
Favre dedicou grande parte do seu trabalho como académico ao estudo das culturas pré-colombianas, nomeadamente as línguas da Mesoamérica e da cordilheira andina.
 
Esse ensaio sobre os Maias é dedicado aos Tzotzil e Tzetzales, hoje fixados no sul do México, sobretudo em Chiapas.
Ambos descendem dos antigos Maias, criadores de uma civilização que floresceu do seculo II ao IX da nossa Era, implantada numa área que ia do Iucatão a El Salvador e Honduras.
 
Porquê o interesse despertado pelo trabalho de Henri Favre?
 
Desde a adolescência senti fascínio por temas relacionados com a Arqueologia, a Etnologia e a Antropologia. Esse interesse aumentou quando, adulto, tive a oportunidade de conhecer as ruinas de civilizações mortas na Líbia, na Itália, na Grécia, na Arménia, no Afeganistão, no Líbano, na Turquia, e sobretudo no México, na Bolívia e no Peru. Escrevi então dezenas de páginas sobre a Mérida estremenha, a africana Leptis Magna, a fenícia Biblos, a arménia Erebun, tao marcada pela vizinha Assíria, e sobre as cidades soterradas da Báctria, as stupas de Nangrahar, os Budas kuchanos de Bamyan, e sobre a quase lendária Gahzni, de Mahmud e Ferdawci.
 
Em jornais e livros, Teotihuacan foi tema de inspiração, contemplando as Pirâmides do Sol e da Lua. No Tihuanaco, às margens do Titicaca, desci vinte seculos de História em meditação, rumo às origens da mitologia inca. Na Cidade do México, caminhando pelas salas do maravilhoso Museu de Antropologia e pelo Zócalo, e em longas viagens pelo tempo morto, imaginadas nas ruinas e no museu do Templo Mayor de Tenochtitlan, senti, revivi o pulsar da vida na grande metrópole asteca, destruída, assassinada por Hernan Cortés.
 
Essa estranha intimidade com Tenochtitlan contribuiu para o interesse suscitado pelo belo livro de Favre. Ele me fez recordar que no limiar do seculo XXI, um décimo da população do México, talvez uns 10 milhões, tem ainda como línguas maternas idiomas de comunidades indígenas, anteriores à conquista.
 
Como viviam, como amavam e odiavam, como lutavam e pensavam os povos do México nas semanas trágicas do cerco à grande cidade da laguna, defendida por Cuauhtemoc e atacada por Cortez?
 
Existem dezenas de livros de qualidade sobre o tema. Mas não podem oferecer mais do que uma resposta insuficiente a essas perguntas.
 
Daí a importância que para mim assume o ensaio de Favre. Próximos geograficamente, os Astecas e outros povos do planalto de Anahuac diferiam muito dos Maias pela cultura.
 
Um nahuatl abastardado é ainda a língua aborígene mais falada hoje no país. Muito diferente dos idiomas que sobrevivem em Chiapas.
 
Mas o que Favre escreveu sobre os Tzotzil e os Tseltzales contemporâneos, após demoradas permanências na Região, ajuda a compreender a tenaz resistência dos Maias à política de assimilação da cultura dominante.
 
O fato de aproximadamente duzentos mil Tzotziles e Tzeltzales se expressarem ainda em línguas e dialetos maias é, por si só, um fenómeno histórico que força à meditação sobre a sobrevivência de culturas ameaçadas de extinção.
 
Em Tenochtitlan, os espanhóis chacinaram sistematicamente a aristocracia asteca e os sacerdotes, detentores do saber. Mas o castelhano não eliminou o nahuatl.
 
Aprendemos com Favre que, quinhentos anos após a Conquista, comunidades indígenas do Sul refletem a influência dos costumes, da técnica, das leis, do modo de vida dos moradores das cidades próximas. Mas esses autóctones «primitivos» não adotaram a mundividência dos vizinhos «civilizados».
 
As estruturas de parentesco, exogâmicas e endogâmicas, o uso da terra, o relacionamento humano, os ritos fúnebres, o sincretismo religioso, o cerimonial das grandes festas refletem a herança maia. A alfabetização não transformou os Tzotil e aparentados em mexicanos «modernos».
 
Chiapas
 
Nas minhas andanças pelo ocidente mexicano somente desci até Puerto Escondido. Subi daí para Oaxaca. Não atravessei para sudeste, rumo a Chiapas.
 
Não tive portanto a oportunidade de conhecer terras povoadas pelos descendentes dos antigos Maias. E sei que não voltarei ao México. Lendo agora a obra de Favre, lamento essa impossibilidade.
 
Recordo que me encontrava em Holguín, província natal de Fidel, em Cuba, na madrugada de 1 de Janeiro de 1994. Ao regressar ao hotel com a minha companheira, vindo do réveillon, festejado com camaradas, abri a rádio e escutei uma notícia surpreendente. No Sul do México, no Estado de Chiapas, um movimento armado desconhecido, autointitulado Exercito Zapatista de Libertação Nacional tomara de assalto algumas cidades do Estado.
 
Dias depois, quase sem encontrar resistência, o exército retomou os pueblos ocupados e expulsou os invasores para a selva lacandona. Ficou claro que a EZLN era uma guerrilha débil, quase ficcional.
 
Mas o discurso do subcomandante Marcos, seu dirigente mais destacado, encontrou ressonância mundial.
 
Era um discurso romântico, de matizes utópicos. Anti neo liberal, mas não marxista. O EZLN, a partir da denúncia da opressão dos indígenas, denunciava a engrenagem do poder.
 
Os novos zapatistas declaravam-se anti- capitalistas, determinados a reformar o México, rebeldes, mas não revolucionários vocacionados para tomar o Poder.
 
Talvez por isso, por não ser identificado como ameaça ao sistema, o EZLN suscitou a simpatia da intelectualidade burguesa em todo o mundo. E não só.
 
A repressão que atingiu os indígenas de Chiapas desencadeou um poderoso movimento de solidariedade internacional. Os discursos de Marcos alcançaram divulgação mundial. À selva lacandona afluíram destacados intelectuais de dezenas de países. Entre eles o português José Saramago.
 
A guerrilha do EZLN tornou-se recordação. Os partidos reacionários e corruptos que alternadamente ocupam a Presidência no México não se sentiam ameaçados por ela.
 
Hoje, transcorridos vinte anos do levantamento indígena de Chiapas, o EZLN, mais movimento político do que armado, arquivou o projeto romântico inicial. O seu discurso adquiriu matizes marxistas. Não defende apenas os direitos dos indígenas oprimidos. Assume como sua a luta dos trabalhadores mexicanos, o combate das massas oprimidas pelo capital.
 
Não esqueço que foi em Chiapas que nasceu o EZLN.
 
E lendo Henri Favre, medito sobre a origem da rebelião.
Os índios chiapanecas são - a esmagadora maioria - maias, descendentes dos criadores de uma antiquíssima cultura cujas raízes resistiram à passagem dos seculos.
 
Nota:
 
[1] Cambio y continuidad entre los mayas de Mexico, Henri Favre, Ed. Siglo XXI, Mexico 1973.

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