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Ilka Oliva Corado

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Crónicas de uma inquilina

Guatemala renasce das suas cinzas com massiva marcha que grita basta à corrupção do Governo

Ilka Oliva Corado - Publicado: Quinta, 30 Abril 2015 09:21

Que vivam os estudantes/jardim das alegrias! Adoro os estudantes. Violeta Parra.


É a primeira vez que não sei como começar a escrever um artigo, pois estou transbordando de alegria. São tantas emoções! Este texto poderia ter centos de nomes, como: Que a rebeldia nos torne livres! Guatemala por fim desperta! O povo guatemalteco se pronuncia. A dignidade foi ressuscitada. Vencemos o medo O silêncio é passado! Fora a quadrilha de Baldetti-Pérez Molina.

Tenho 35 anos, pertenço à geração sem memória e nunca na minha vida tinha visto uma manifestação tão cheia de alegria e frescura, com tanto afinco como a de ocorreu no passado sábado, dia 25 de abril, na Guatemala. Foi mais além das fronteiras, pois os guatemaltecos em todas as partes do mundo se pronunciaram com uma única voz, exigindo a renuncia da Vice-presidente da República. Essa unidade foi belíssima, inspiradora.

São décadas fazendo o que eles querem, os governos que estão no poder sempre fazendo o mesmo, todos farinha do mesmo saco. Saqueando a Guatemala e lavando as mãos. Cortinas de fumaça detrás de cortina de fumaça para não evidenciar desfalques, roubos milionários e vendas de terra. A impunidade, a injustiça, a corrupção e a opressão. Essa forma tão típica deles para deixar na calamidade a classe que mais sofre com o sistema. Para rirem de nós na nossa cara e não esperar nenhum castigo pelo insulto.

Na Guatemala, viveu-se um ambiente de carnaval, de festa nacional e de amor pela terra. Ocorreram manifestações em todos os departamentos1. Mães, avôs e avós, estudantes, crianças, profissionais, operários, camponeses e proletários. O que sempre sonhei, mas pensei que os meus olhos não veriam nunca, sucedeu: marcharam alunos de universidades privadas junto com os alunos da Tricentenaria Universal — de mis amores! — de San Carlos de Guatemala. Vivi esse momento tão emotivo a milhares de quilômetros de distância, mas com o meu coração lá.

Sem a distinção de crenças, raças, idiomas, classes sociais e ideologias, os guatemaltecos saíram e encheram as ruas do país para demonstrar o seu descontentamento. Para dizer que estão fartos de tanta impunidade e corrupção. Aí estavam sacerdotes, freiras, pastores e rabinos. O que era utópico se fez realidade. Foi tão lindo participar à distância. Quem é que não gostaria de estar lá em carne e osso?

Depois de tantas décadas, de tanto escárnio devido ao temor imposto pelo exército do país e pelas suas sequazes oligarquias, o povo da Guatemala disse basta já!, e fez com que a sua voz fosse escutada, disse "presente!", "acabou!", disse "até aqui!". Vencemos o medo!

Não, a esses milhares de guatemaltecos que assistiram à manifestação massiva não lhes apoiaram nenhum partido político nem nenhuma organização. Eles foram por si mesmos porque estão cansados de tanta escárnio e descaro. E, a pesar de que o Governo utilizou todo o tipo de aparelhos para bloquear o sinal dos celulares e, com isto, evitar a propaganda da notícia, não conseguiram. A pesar dos seus drones e dos seus espias, a Guatemala disse "presente!". A pesar da obediência das redes de televisão oficiais em não transmitirem essa marcha histórica, a Guatemala disse "presente!".

Finalmente sucedeu o que era uma quimera, o povo despertou. A Guatemala renasce das suas próprias cinzas. A todos aqueles que disseram que "não", não se pode fazer nada, a Guatemala é defunta, aí está, hoje essa mesma Guatemala moribunda se colocou de pé e, erguida, caminhou e exigiu respeito, contas claras e justiça. Só povo é capaz de criar poder popular. Não existe estado, nem sistema, nem governo que possam ir contra o povo quando este se arma de coragem e faz valer o seu direito.

Não foi uma marcha qualquer, isto foi histórico e deve ser destacado, fazer uma resenha sobre isto, uma foto e colocá-la num marco, porém, mais do que isso, a marcha do dia 25 de abril tem de ser o início, a chama recentemente acesa que nos motive e nos impulsione a este caminho, a reconstruir o tecido social, a levantar a Guatemala dos escombros onde a deixaram os traidores, com o nosso consentimento devido ao nosso temor como povo.

Isto é só o primeiro passo, espero que toda esta euforia não seja apenas uma labareda de palha ou uma nuvem passageira. Que esta seja a chama que se propague e acenda as nossas veias de amor pela terra, pelos nossos ancestrais e pelos nossos descendentes. Porque são tantas as lutas que temos de afrontar, não só a corrupção, isto não se resolve colocando na cadeia a uma quadrilha, pois existem centenas delas infestando o país, no sistema de justiça no qual tem tantos juízes letrados vendidos. A Guatemala necessita ser restaurada pedra por pedra. Tijolo por tijolo.

Assim como neste passado sábado nos indignamos com a corrupção, também devemos nos indignar com os abusos sexuais infantil, com o Estado e a Igreja que não permitem o aborto, com a morte das nossas crianças, adolescentes e mulheres vítimas do feminicídio. Pelos nossos jovens marginalizados, pela fome, pela desídia. Pela terra que tomada dos nossos camponeses. Pelos crimes de ódio contra pessoas homossexuais. Por se negarem a criar uma lei que permita um casamento igualitário. Pelos milhares de irmãos que vão embora, empreendendo uma imigração forçada. Vamos nos indignar, mas que isto nos leve à ação. Como no último sábado.

É totalmente válido sentir medo, porém é imprescindível que nos mobilizemos. Não podemos permanecer estáticos, o medo não pode atar as nossas mãos e pés, não pode colocar em nós uma mordaça. A pesar do medo, existe uma saída, devemos atuar, ser parte da mudança, promover e evidenciar. Que a nossa capacidade de raciocinar não seja só para enfeitar, que sirva para transformar. Que nos convertamos em humanos e consequentes. Que essa prestigiosa educação superior não nos converta em escória. Que não nos obrigue a esquecer. Foram mais de 30.000 guatemaltecos. Num país atemorizado pelo passado sangrento, este número é de se admirar.

Que isto nos sirva de lição para pensar e repensar nossos votos, as eleições estão chegando, estão aí na esquina, que essa inteligência que temos não seja por gosto. Não precisamos de mais punhaladas nas costas de políticos corruptos e ladrões.

Dedico este texto com todo o meu amor às pessoas que não se cansam nas suas lutas, que levam décadas aí, firmes, sem bater em retirada, com a sua sabedoria, a sua experiência e os seus anseios. Que a pesar das derrotas, os agravos e as desventuras continuaram, pois pensaram e continuam pensando que a nossa Guatemala é reciclável.

À juventude que tem toda a coragem e a efervescência porque agora é a sua vez de fazer a mudança e de ser consciente com os menos favorecidos, com os operários e camponeses, com esses milhares de proletários, com a infância marginalizada, com os milhares que se vão nas imigrações forçadas.

Aos que não puderam assistir a esta marcha por motivos maiores, mas que sempre foram parte da mudança, lutando nas suas trincheiras, semeando a pesar da derrota, a pesar do cansaço; que continuam confiando porque sabem que essa quimera chegará, que poderemos acariciá-la todos nós como país, como uma só veia, como a herança milenária, como a dignidade que nos arrebataram com a Memória que nos pretende roubar e com a identidade que nos dizem que já não existe.

Que isto seja o início de uma vereda que nos leve em direção a uma Guatemala justa, equitativa e próspera. Vale sonhar, vale abraçar utopias, é obrigatório fazer com que se retornam realidade como povo. É a nossa responsabilidade propiciar as mudanças reais. Se não fazemos nós mesmos, quem o fará por nós? Não esperemos que as mudanças venham de fora.

Obrigada a cada um dos guatemaltecos e estrangeiros irmãos que disseram "presente!". Que fizeram desta manifestação um único grito de milhares de corações guatemaltecos que querem um país limpo de impunidade. Sempre disse e morrerei afirmando que a juventude pode ter toda a coragem e todo vigor, mas que necessita que a guiem. Obrigada a todas essas velas acesas que nunca se apagam, que com o passar do tempo se convertem em seus maestros, pois graças a essa chama é que os jovens podem avançar sem se desviarem do caminho.

E para finalizar, já que a emoção transborda da minha alma e não me deixará tranquila se não grito do fundo do meu peito "Viva à Tricentenaria Universidad — de mis amores — de San Carlos de Guatemala!" Viva o povo unido! Viva a Guatemala! Viva pra sempre a nossa Guatemala!

O povo unido jamais será vencido!  O povo unido jamais será vencido! O povo unido jamais será vencido! O povo unido jamais será vencido! Quilapayún.

25 de abril de 2015

Estados Unidos.

Nota:

1A divisão regional da Guatemala é feita em “departamentos”, equivalente aos “estados” no Brasil e “províncias” em Portugal.

Tradução de Camila Lee para o Dário Liberdade.


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