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Xoán M. Paredes

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O Ninho do Corvo

Como na Irlanda: ergue-te e... marca

Xoán M. Paredes - Publicado: Quarta, 19 Dezembro 2012 00:41

Pouco poderia imaginar Michael Cusack a finais do S.XIX que o processo de ressurgimento dos desportos gaélicos encetado por ele chegaria até a situação actual.


Preocupado pelo exclusivismo das classes dominantes em matéria desportiva e pelo esquecimento dos jogos nacionais tradicionais, ele fundaria o que depois viraria na Gaelic Athletic Association (GAA), ainda a única federação oficial nestas matérias.

Se bem é certo que o futebol gaélico pode remontar as suas origens disque ao S.XIV, e o hurling até literalmente a pré-história, os hoje desportos mais populares da Irlanda não teriam o status que têm sem a visão e tesão deste homem originário do condado de Clare.

Felizmente, a sua herança é agora partilhada com toda a sua carga e significado, e com crescente dinamismo, ao sul do Mar Céltico[1], na nossa Galiza.

Para quem não conheça a psique irlandesa há que pensar na GAA como uma verdadeira instituição nacional, e nos desportos gaélicos como um elemento fulcral na sociedade, política e história contemporânea do país irmão. Os clubes locais da GAA não são simplesmente “mais que um clube” senão, como dizem lá, “são família”. As relações identitárias e comunitárias duma vila, paróquia ou lugar frequentemente giram ao redor do clube respectivo. As e os integrantes do clube são a comissão de festas; são quem organizam desde actividades desportivas e culturais até churrascos. São muitas vezes o bairro ou a aldeia inteira. Contudo, em todo momento estarão sempre actuando dentro dos objectivos originais da GAA: permitir o acesso à prática físico-desportiva a todas as classes populares, fomentar os desportos nativos e promover a língua e dança irlandesas.

Não custa muito deduzir que Michael Cusack referia-se ao mesmíssimo Povo Irlandês quando falava das classes sociais populares (à margem da oligarquia inglesa ou inglesizada colonizadora), e que vencelhava de forma clara o processo de recuperação dos desportos do país a uma valorização da cultura própria em geral. Ele mesmo especificou literalmente a sua intenção de “nacionalizar e democratizar o desporto na Irlanda”[2]. É fácil entender pois como esse mesmo povo adoptou de forma acelerada esta filosofia, criando um denso tecido de clubes locais e selecções regionais. Em definitiva, desenvolvendo equipas desportivas competitivas mas sempre amadoras, com marcada rivalidade mas em todo momento sob o espírito de reivindicativa irmandade. Também dá para ver como as autoridades britânicas interpretaram esta festa nos campos de jogo como uma ameaça directa, pois além do estritamente desportivo a GAA artelhava o território em grupos de pessoas bem organizadas e com uma identidade e princípios sem ambiguidades. A GAA entrou a formar parte assim da chamada Renascença Gaélica, com a bandeira tricolor voando ao vento em todos os campos, o hino nacional logo a ser cantado nos confrontos importantes e os principais troféus portando o nome de patriotas.

É já história mas isto explica, por exemplo, a massacre de Croke Park (Dublin) no contexto dos episódios do Bloody Sunday de 21 Novembro 1920 quando, durante a celebração dum jogo de futebol gaélico entre Dublin e Tipperary, as forças armadas britânicas entraram no estádio e eventualmente dispararam contra o público, assassinando catorze pessoas e ferindo muitas outras[3]. Foi desde aquela que Croke Park adquiriu a categoria de local quase sagrado no imaginário colectivo irlandês e o triste evento com certeza originou a chamada “Regra 42” dos estatutos da GAA (agora em verdade a 5.1)[4], pela qual está proibido jogar a “desportos não-gaélicos” nos seus estádios, em clara alusão ao futebol (inglês) e râguebi (também inglês). Algumas demissões e grande escândalo social causou, por isto, a permissão temporária para a prática destes outros desportos em Croke Park em 2007 por motivo das obras de reforma do outro grande estádio da cidade.

Porém, a essência dos desportos gaélicos continua bem viva. Cada ano Croke Park ateiga-se com 82.000 pessoas para presenciarem as grandes finais nacionais, numa competição ainda de amadores a todos os níveis, onde está proibido receber remuneração económica nenhuma e onde todo o dinheiro gerado é reinvestido na manutenção da federação, nos próprios clubes e em iniciativas culturais. As e os jogadores presentes estão fachendosos da sua tradição, da sua vila e do seu condado, sem sonhos de contas bancárias milionárias e sem tumultos derivados de grandes fichagens e da especulação sobre o ser humano. Eis algumas claras vantagens do desporto não profissional, praticado pelo simples amor ao desporto sem limite de idade, a apetência do desenvolvimento pessoal e o orgulho pela comunidade. Mas que ninguém se leve a engano: o nível de destreza é altíssimo e a competição é muito forte, no relvado e nas bancadas, abofé! Embora sempre sem maior incidente pois os e as fãs das modalidades gaélicas partilham cumplicidade na forma de entenderem esta realidade.

Jogariam-se desportos gaélicos na Galiza no passado? As conexões e abraiantes paralelismos entre os dous países são de facto uma constante histórica que se perde na noite dos tempos. Certo é que poderia ser um bom exercício de pesquisa arquivística tentar achar algum documento ou resenha sobre o tema, mas por enquanto a ideia não deixa de ser um divertimento intelectual de extrapolação de entre todas as semelhanças culturais destes povos célticos. Não obstante, fica aí o convite aberto...

A intuição e a imaginação querem fazer acreditar em que sim foi possível que a Galiza tivera visto algum que outro jogo de hurling em épocas remotas, ou que as tropas irlandesas treinadas em Ponte Vedra a finais do S.XVI deixaram não só um jeito particular de tocar a gaita nesta bisbarra, mas também uns quantos golos de Peil Ghaelach (nome em irlandês do futebol gaélico) na memória. Uma cousa é certa, hoje os desportos gaélicos, com especial predilecção pelo futebol gaélico, são já uma realidade no nosso país.

Quem falou dum desporto popular e de base aberto a todos e a todas? Quem falou dum desporto não mercantilizado? Quem falou dum desporto fundamentado na fusão com a cultura própria, a defesa do idioma e o anti-colonialismo? Quem falou num artelhamento em lugares, aldeias, paróquias e comarcas? Quem falou em animada competência localista mas em fraternidade? Seica é um desporto ideal para a nossa idiossincrasia! Pois, é um desporto originário duma terra que pertence ao nosso entorno geográfico-cultural natural, a Europa Atlântica. Podemos ver neste desporto uns ideais, simbolismo e filosofia de fácil e imediata tradução na Galiza; um desporto que, talvez, seja mais próprio do que alheio e bastante menos “estrangeiro” do aguardado; um desporto que bem pode caminhar a carão dos desportos tradicionais galegos para convergirem e fundirem-se naturalmente em clubes e federações comuns.

Não é mistério que longe da Irlanda a imensa maioria de clubes de desportos gaélicos sejam formados por irlandeses e irlandesas emigradas, agás na Bretanha e na Galiza, as outras beiras célticas. Na delegação para o continente europeu da GAA sabem, por exemplo, o complicado que é pôr a funcionar ligas locais, regionais ou nacionais, por não falar de campeonatos continentais. Desde a sede da GAA em Dublin andam, precisamente, interessados em fomentar os desportos gaélicos fora da Irlanda, mas da mão de não-irlandeses e irlandesas[5]. Fala-se, outrossim, da necessidade de atrair mais mulheres à prática activa, algo muitas vezes negligenciado por causa da pesada carga católico-patriarcal, por desgraça sempre presente na Irlanda. Aliás, está por delinear a adaptação duns estatutos muito avançados no S.XIX ao presente S.XXI, abrindo de forma clara a modalidade mista (não segregada por sexo), entre outros assuntos[6].

Com estas referências, na Galiza têm aparecido em tempos recentes vários clubes e outros tantos projectos de futuro no ronsel do exemplo traçado na Corunha pela equipa de Fillos e Fillas de Breogán, da mão de Wences G. Zapata. Ele foi quem, desde 2009, introduziu de forma organizada este desporto no país[7]. Os seus começos foram obviamente complicados e solitários, com muita mais ilusão e coração que certezas, mas a sua teima e trabalho demonstram que a paciência e constância sempre dão fruto. As equipas que vão inçando agora a geografia galega são, em muitas maneiras, filhas do seu esforço.

Chegada esta altura os objectivos revelam-se evidentes: continuarmos com a difusão para a criação de novas equipas e treinar duro para, quando simplesmente for possível, podermos ter uma liga nacional galega, tão oficial como a selecção galega que defrontou à Bretanha no verão de 2012 num jogo ratificado pela GAA[8] . É verdade, já houve uma primeira vez, já não se pode dizer que a Galiza nunca competiu com reconhecimento oficial por parte da autoridade competente de turno a nível internacional. O futebol gaélico marcou a data histórica e aí ficará nos anais. Ainda deu que falar nos escritórios da GAA, pois não tendo a Irlanda rivais internacionais esta foi a primeira vez que duas selecções nacionais (sem nenhum tipo de representação irlandesa) jogaram um encontro de Peil.

Com cada pontapé rompe-se uma barreira. E não há volta atrás.

Então, qual é a tua escusa para não te unires a uma equipa?

Como na Irlanda! Ergue-te e... marca!

Referências

[1] The Celtic Sea

http://www.worldatlas.com/aatlas/infopage/celticc.gif

[2] History of the Gaelic Athletic Association (Multitext project in Irish History, UCC)

http://multitext.ucc.ie/d/History_of_the_Gaelic_Athletic_Association_GAA

[3] Bloody Sunday, 1920

http://www.crokepark.ie/gaa-museum/gaa-archive/gaa-museum-irish-times-articles/bloody-sunday,-1920

[4] GAA Official Guide (part 1), 2009

http://www.gaa.ie/files/official_guides/2009_official_guide_part1.pdf

[5] “These don't have to be just 'our games' – anyone can play” (Irish Times, 21-Nov-2012)

http://www.irishtimes.com/newspaper/sport/2012/1121/1224326893725.html

[6] Entrevista a Eva Cortinhas “Pretendemos fomentar o desporto de base” (DL, 09-Nov-2012)

http://www.diarioliberdade.org/galiza/32907-eva-cortinhas,-de-su%C3%A9via-f-c-pretendemos-fomentar-o-desporto-de-base,-arredado-da-competitividade-e-a-mercantiliza%C3%A7om-habituais.html

[7] “Unha minoría que medra” (Dioivo, 28-Set-2012)

http://dioivo.eu/deporte/1052-unha-minoria-que-medra

[8] “Galicia debuta con victoria no fútbol gaélico” (Dioivo, 21-Jul-2012)

http://dioivo.eu/deporte/1011-galicia-debuta-con-vitoria-no-futbol-galego


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