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Erik Haagensen Gontijo

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A Alienação como Fenômeno Objetivo

Erik Haagensen Gontijo - Publicado: Sexta, 28 Setembro 2012 16:12

Um tema antigo em filosofia, ao qual foi dada relevante atenção no pensamento contemporâneo a partir de Hegel e seus seguidores, e especialmente graças às reflexões de Marx acerca da situação dos indivíduos na sociedade dominada pelo capital1, é aquele da alienação.


O que vem a ser “alienação”? Pretende-se, neste escrito, distinguir o sentido que comumente se atribui ao termo, e que é imputado como sendo de lavra marxiana, do sentido que o próprio Marx deu a ele.

No primeiro caso, as noções que adentraram largamente o senso comum, graças às hordas “críticas” que atuavam (e ainda atuam) ideologicamente na academia e sobre os chamados movimentos populares e seus partidos, são condizentes ou bem próximas ao sentido dominante em filosofia, que identifica o termo a um fenômeno de consciência. Quer dizer, a alienação seria uma espécie de distorção, imposta de fora e/ou cultivada pelo próprio sujeito, na apreensão mental da realidade, que estaria assim entre a ignorância, a deficiência cognitiva e a loucura. Neste processo haveria a atuação central de um poder igualmente imaterial, a “ideologia”, cuja forma de operação teria sido também desvendada por Marx.

Não será possível desmontar aqui, neste momento, esta “teoria da ideologia” atribuída ao pensador alemão, por questões de espaço; o assunto exigirá um texto próprio. Mas, por meio de uma leitura cuidadosa (e que não tome as tradicionais “leituras” feitas a respeito como referência) de seu escrito inacabado sobre “A Ideologia Alemã”, já é possível desmentir prontamente a tese de que Marx se preocupava com a “falsa consciência” disseminada entre os indivíduos, o que na verdade ele identifica como a teoria própria dos neo-hegelianos (confira, sobretudo, a parte em que Marx critica Stirner) e que combate sarcasticamente.

O mesmo é feito em relação à alienação enquanto fenômeno de consciência, que enfim é a instância ao redor da qual giram as filosofias idealistas em geral e as neo-hegelianas em particular.

Entretanto, é essa a tese imputada a Marx, ainda quando o que ele afirma se refere à produção material e a condição do indivíduo nesta produção (pois “o ser determina a consciência”2, portanto o problema se enraíza no primeiro). Como exemplo, circulou recentemente no facebook uma charge de Robert Thaves3 – na qual um operário diz a outro que vai se aposentar e caminhar até o fim da linha de montagem para descobrir o que, afinal, fabricava. O que a charge sugere é que a alienação é uma mera falta de noção do que o trabalhador está fazendo, quer dizer, uma fragmentação de seu saber quanto ao produto final4, o que remete antes a um fenômeno subjetivo do que à divisão social do trabalho que causa, entre outras coisas, tal fragmentação.

Acompanhava a charge uma frase de Marx: “Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”5. Mesmo tendo sido retirada de seu contexto, é possível nela perceber que o autor está apontando para um fenômeno da objetividade social. O cerne do problema está na produção material capitalista, que reduz o trabalhador à mercadoria “força de trabalho”, posta à venda no mercado de trabalho para produzir outras mercadorias, que são produtos que visam, antes de seu uso, a troca. Ou seja, o trabalhador transfere a outro – aliena – a decisão acerca da finalidade, da duração, da intensidade do empenho de sua própria capacidade de trabalho, que não é outra senão a capacidade por meio da qual o indivíduo se humaniza. Que isso, naturalmente, incida sobre sua consciência depois, é um efeito da alienação, e não a alienação mesma.

Assim, o desacordo entre frase e charge é completo. Senão, vejamos: conhecer toda a linha de montagem faria o operário, finalmente aposentado, ficar livre da alienação? O que é que afinal o liberta, conhecer o produto pronto, ou a aposentadoria? Ambas as alternativas são simplesmente ridículas. Se o fenômeno da alienação se reduzisse à questão do conhecimento, então deveríamos pressupor que o trabalhador de uma manufatura, que conhecia todo o processo de fabricação de seus produtos, não seria um trabalhador alienado, apesar de depender de um mercado onde conseguisse vender sua mercadoria para poder, em troca, comprar seu pão com manteiga6.

O mesmo acontece no caso de um cientista que faz a crítica e desvenda todo o modo de funcionamento do sistema. Basta ver o quão desgraçada foi a vida de Marx, que tinha problemas em conseguir até mesmo sub-empregos. Ele disse: "nunca ninguém escreveu tanto sobre o dinheiro não tendo nenhum". Em poucas palavras, alienação é isso: dependência de dinheiro7. Esse é o sentido da expressão que Marx usa depois, o "fetichismo da mercadoria"8. Fetiche é o objeto dotado de força sobre os homens, uma força estranhada e autônoma. Trata-se da relação social entre os indivíduos tornada uma relação automática entre mercadorias (na qual os homens se encontram como seus meros portadores) que se trocam por si mesmas. Tomar consciência de tudo isso é condição necessária, mas nunca suficiente, para superar tal estado de coisas, e por isso mesmo não torna o indivíduo menos sujeito à alienação, se ele ainda tem de se vender no mercado de trabalho para poder comprar a manutenção de sua vida, reduzida à sobrevivência.

Para terminar, deixamos aqui palavras de Marx que o professor Leônidas Dias gentilmente nos enviou, quando da primeira redação de nosso artigo:

Hodgskin concebe isso como ilusão puramente subjetiva, atrás da qual se esconde a impostura e o interesse das classes exploradoras. Não vê que o modo de representação surge da própria relação real; esta não expressa aquela, mas ao contrário. No mesmo sentido dizem os socialistas ingleses: ‘Precisamos do capital, não dos capitalistas’. Mas, suprimindo-se o capitalista, as condições de trabalho deixam de ser capital” (Teorias da Mais-Valia).

1 Contidas em seus Manuscritos de 1844, somente publicados em 1932.

2 A Ideologia Alemã.

3 Disponível em http://migre.me/9aYM0.

4 Os defensores da tese da alienação da consciência dizem que “o trabalhador não reconhece mais o produto de seu trabalho e não se dá conta da exploração a que é submetido”. Cf., p.ex., o artigo de J.R. Salatiel em http://migre.me/9ekDq. O artigo da Wikipedia consegue ser ainda pior: http://migre.me/9el1n.

5 Retirada do capítulo do “Trabalho Estranhado”, dos Manuscritos de 1844.

6 A falta de sentido da idéia da aposentadoria como saída da alienação é facilmente constatável, de modo que não a discutiremos aqui.

7 Por vezes se encontra ainda hoje, ecoando por aí, certa crítica romântica ao capitalismo, que afirma ser o poder do dinheiro derivado de uma “crença” em seu valor. Mais uma vez, dilui-se a objetividade de um fenômeno social em um subjetivismo desavergonhado. Certamente são “críticos” que nada conhecem de economia e atribuição de valor ao que quer que seja, mas que, ainda assim, não se dispõem a dar o exemplo (àqueles a quem pregam seus edificantes sermões) abrindo mão de seus cofrinhos.

8 Presente no primeiro capítulo de O Capital, escrito em 1867.


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