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Leônidas Dias de Faria

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Sinistra!

Marx à luz de Arendt, Arendt à luz de Marx

Leônidas Dias de Faria - Publicado: Quarta, 29 Junho 2011 02:00

Leônidas Dias de Faria

"Se eu puder ser dita como ‘vinda de algum lugar’, este lugar é a tradição da filosofia alemã.” 1

Hannah Arendt



Todos os críticos filosóficos alemães afirmam

que os homens reais têm sido até aqui

dominados e determinados por idéias,

representações e conceitos, que o mundo real

é um produto do mundo ideal.” 2

Karl Marx



Introdução

Com o breve estudo que ora se expõe, tem-se o intuito de apresentar a crítica empreendida por Hannah Arendt, em seu livro Da Revolução, ao pensamento de Karl Marx, notadamente no que tange à sua noção de História. Além disso, tem-se o propósito de confrontar a referida crítica com alguns textos de Marx, produzidos próximo ao início e ao fim de sua trajetória intelectual e política, de modo a realizar uma avaliação da pertinência da referida crítica, com base em um recorte temporal abrangente da produção do autor. Por fim, pretende-se encetar uma crítica marxiana ao pensamento arendtiano. Desse modo, almeja-se um triplo ganho: a identificação da crítica feita por Arendt acerca da noção marxiana de História, uma avaliação dessa mesma apreciação e uma denúncia de problemas na teorização promovida pela autora que causam ruídos em sua compreensão do legado marxiano e da própria realidade de que o mesmo é parte – denúncia empreendida à luz do referencial teórico desse legado.

Nesse percurso analítico, não se empreende um tratamento autônomo da trama categorial que sustenta a crítica arendtiana a Marx, conforme se apresenta na Introdução e no Capítulo I do livro de Arendt, em que ela expõe seu conceito de Revolução e esboça outros relacionados, tais como Violência, Liberdade e Política. Pretende-se ressaltar tais fundamentos à medida que se fazem notar na crítica mesma a Marx, efetuada de modo esparso e preparatório nessas partes do escrito, mas concentrada e acentuada no segundo capítulo, em que a autora trata do que entende como A Questão Social. Por fim, pretende-se responder aos ataques da autora ao filósofo alemão, com recurso a passagens de A Ideologia Alemã, de 1846, da carta À Redação de Otietchestvienniie Zapiski, de 1877, do Primeiro rascunho a Vera Zasulich, de 1881, e ao Prefácio, de 1882, à edição russa do Manifesto Comunista – textos em que se explicita com vigor o fulcro da concepção de história propugnada pelo autor desde o início de sua crítica ontológica ao idealismo, em 18433.

Uma crítica arendtiana a Marx4

A primeira referência explícita que Arendt faz a Marx em seu livro se dá em seguida à afirmação de que, nos estágios finais da Revolução Francesa, em que já havia ocorrido o que chamou de rendição da liberdade à necessidade, pela intrusão da “questão social” na esfera pública, gerou-se o consenso para ela problemático de que é “mais importante mudar a tessitura da sociedade (...) do que mudar a estrutura do domínio político”. Dizendo que, se isso fosse verdade, “a descoberta da América e a colonização de um novo continente constituiriam suas origens”, não tendo necessidade ali de qualquer processo revolucionário, diferentemente do que ocorria na Europa, que só podia alcançar aquela “adorável igualdade” por meio “da violência e da sangrenta revolução”, sob impulso da “nova esperança para a humanidade” surgida nos Estados Unidos espontaneamente, Arendt abre caminho para seu ataque ao pensamento de Marx. Para ele, segundo a autora, “nenhuma revolução jamais ocorreria na América”, de modo que “suas profecias sobre o futuro do capitalismo e as vindouras revoluções proletárias não se aplicavam ao desenvolvimento dos Estados Unidos” (ARENDT, 1990, p.20). Prosseguindo, a autora afirma peremptoriamente:

Quaisquer que sejam os méritos das qualificações de Marx – que mostram, certamente, uma compreensão da realidade fatual bem maior do que os seus adeptos jamais foram capazes de ter –, essas mesmas teorias são refutadas pelo simples fato da revolução americana (ARENDT, 1990, p.20).

Já mais adiante em seu escrito, Arendt volta ao ataque contra Marx. E a preparação deste ataque se dá com a firmação de que a maior conseqüência teórica da Revolução Francesa seria o “moderno conceito de História” que se encontra na obra de Hegel, de quem ela toma Marx como um discípulo (procedimento que a isenta de ter que lidar com seus escritos mesmos), e consistiria na revelação do antigo absoluto dos filósofos nos assuntos mundanos. Conforme esse conceito, corrente entre os sucessores dos “homens da Revolução Francesa”, o processo histórico obedece a uma necessidade inelutável, pela qual os revolucionários são convertidos em “agentes da história e da necessidade histórica”, que passa a ser a categoria principal do pensamento político e revolucionário (ARENDT, 1990, p.41).

Nesse ponto, cabe antecipar que tal idéia então corrente não acometeu Marx, dado que, de modo algum, encontra-se em destaque em sua obra a noção, a categoria de necessidade, ainda menos como idéia abstrata que engendra processos. Pode-se falar de necessidade natural e de necessidade histórica em Marx, como será visto, mas em uma acepção muito distinta – em meio a uma trama conceitual em que a atividade livre ocupa posição central.

De todo modo, segundo esse novo conceito de História, gestado sob o impacto da Revolução Francesa e de seu fracasso, a verdade seria “compreendida historicamente”, no sentido de que se iria revelando no tempo. Desse modo, não seria válida para todas as épocas; mas, para todos os homens (ARENDT, 1990, p.42). E, outra vez, Marx deve ser tido como exceção, dado que a especificidade do objeto em pauta, o conjunto preciso das determinações que o configuram, torna-se quase uma obsessão em seu projeto de intelecção de mundo, como se vai ressaltar adiante – de modo que as categorias gerais e operantes de Arendt provocar-lhe-iam pruridos.

Mas, prosseguindo em sua exposição, Arendt denuncia algo mais de problemático sobre essa nova noção de verdade, dizendo referir-se a mesma ao “homem qua homem”, que inexiste enquanto “realidade terrena, tangível” (ARENDT, 1990, p.43). E tampouco essa afirmação se aplica a Marx, cuja idéia de humanidade se refere a algo construído historicamente por meio de interação efetiva dos indivíduos reais. De modo que em tal idéia nota-se a atinência aos indivíduos concretos, singulares; mas em sua conexão real, em sua articulação multidimensional efetiva, algo de que Arendt descuida, com conseqüências filosóficas drásticas.

Assim, aquilo de que se vale a autora para a preparação de seu ataque a Marx não se aplica a ele. A redução de quase todo o humano à necessidade, da qual só escapa a dimensão política, é algo que impede a autora de enxergar e compreender toda essa riqueza na obra do filósofo, o qual vê na formação do humano um processo histórico concreto, não regido por princípios, como em todo idealismo, nem submisso à implacável necessidade natural, mas derivado da apropriação cooperativa relativamente livre da natureza por indivíduos concretos. Ainda assim, não obstante sua discrepância com o padrão que vem traçando, Marx é posto por Arendt como seu exemplar mais típico de um hegeliano de respeito – o que é um desrespeito inclusive com Hegel, que, se vivo, certamente não gostaria dessa qualificação para obra tão diversa da sua.

Se a história é a revelação da verdade, prossegue Arendt, ela deve ser vista como “História mundial”, por meio da qual se revela um “espírito mundial” (ARENDT, 1990, p.43). Mais uma vez, Marx deve ser tido como exceção, dado que sua idéia de “história mundial” tem a ver com a interação efetiva dos indivíduos concretos em escala cada vez mais ampla de articulação real e não com o atendimento a exigências lógico-discursivas internas a uma trama metafísica de idéias vivas. Não é por ser “revelação da verdade” que a história é mundial; mas, porque o humano “moderno” o é, concretamente, objetivamente5.

Ainda tratando do caráter do movimento histórico segundo o conceito hegeliano com vistas a atacar Marx, mostra-nos Arendt que se trata no caso de um processo ao mesmo tempo “dialético” e “movido pela necessidade”, que arrasta os homens com sua “corrente irresistível”. Lamentando que isso ocorra justamente quando os homens “tentam estabelecer a liberdade sobre terra”, Arendt se insurge contra a “famosa dialética da liberdade e da necessidade, em que ambas finalmente coincidem”, a qual é, a seu ver, “talvez o mais terrível e, humanamente falando, o mais intolerável paradoxo de todo o pensamento Moderno” (ARENDT, 1990, p.43).

Ainda sobre essa repercussão teórica e disposicional do que chamou fracasso da Revolução Francesa, ou seja, esse conceito moderno de História, Arendt nos diz ser ele inspirado na idéia de que a natureza é um processo inexorável que a tudo engloba, da qual deriva a concepção do humano como passível de ser compreendido segundo os padrões das ciências naturais. E uma vez mais Marx é indiretamente atacado (como volta a sê-lo diretamente mais adiante no livro, como será visto), embora devesse ser percebido como exceção, dado que não se encontra em sua obra senão o contrário dessa identificação do sócio-histórico com o natural, sendo a recusa de tal posição o fulcro de sua crítica à economia política.

Concluindo suas considerações acerca do tema, Arendt lamenta que o conceito moderno de revolução, por vício hegeliano submetido à necessidade e purgado de liberdade, não capturou o único fenômeno digno daquela designação: a Revolução Americana, impulsionada, segundo a autora, pelo anseio por liberdade que aguilhoava os “pais fundadores” dos Estados Unidos6. Segundo aquele conceito, a memória da revolução em geral ficou conspurcada, para fins teóricos e práticos, dado que “os homens, arrebatados à sua revelia nos vendavais revolucionários, para um futuro incerto” tomaram o lugar dos “orgulhosos idealizadores” da revolução, que visavam a “construir seus novos lares com base no saber acumulado de todas as épocas pretéritas, na forma como o entendiam” (ARENDT, 1990, p.43).

Contra a propagação dessa perversão, que segundo ela ocorre quando a “transformação dos Direitos do Homem nos direitos dos sans-cullotes” (ARENDT, 1990, p.49) é tomada como historicamente necessária e vazada enquanto tal em teorias gerais, Arendt assume uma postura psicologizante (mais freqüente em sua obra do que gostaria de assumir) e assevera que:

Isso é devido, em grande parte, ao fato de que Karl Marx, o maior teórico que as revoluções jamais tiveram, era muito mais interessado em História do que em política, e, por conseguinte, omitiu quase que inteiramente as intenções originais dos homens da revolução, a fundação da liberdade, e concentrou sua atenção, quase que exclusivamente, no curso aparentemente objetivo dos eventos revolucionários (ARENDT, 1990, p.49)

Após assegurar que, por preferências, puramente subjetivas, Marx teria escamoteado a história, Arendt aponta que, desse modo, mais de meio século depois, a transformação referida, marcada pela “abdicação da liberdade em face dos ditames da necessidade”, teria encontrado nele seu teórico (ARENDT, 1990, p.49). E como nada se produziu de comparável a respeito da Revolução Americana, a Francesa compreendida sob esse prisma se tornou a referência universal para o estudo das revoluções e manancial privilegiado para aspirantes a revolucionários.

Defendendo poder-se “atribuir a influência perniciosa do marxismo às muitas descobertas autênticas de Marx”, Arendt assegura não haver dúvida de que “o jovem Marx” entendia que a “Revolução Francesa falhara em instituir a liberdade” em função de seu fracasso “em resolver a questão social”. Mostrando que “liberdade e pobreza eram incompatíveis”, o autor teria feito sua “contribuição mais explosiva”, por meio da qual “interpretou as constrangedoras carências da pobreza do povo em termos políticos”, apontando suas sublevações como rebeliões “não apenas por pão ou riqueza, mas também por liberdade”. Essa afirmação de que “a pobreza pode ser uma força política de primeira ordem” teria sido sua descoberta mais relevante e igualmente nefasta, de modo que os “componentes ideológicos” do pensamento de Marx, isto é, “sua crença no socialismo ‘científico’, na necessidade histórica, nas suprerestruturas, no ‘materialismo’ etc.” podem ser tidos como “secundários e derivativos”, inclusive por serem, conforme idiossincrática apreciação da autora7, partilhados “com todo o mundo moderno”, bem como pelas “diversas ramificações do socialismo e do comunismo” e “em todo o conjunto das ciências sociais” (ARENDT, 1990, p.49).

A referida “transformação da questão social numa força política” encontraria sua expressão na “noção de que a pobreza é a conseqüência da exploração por uma ‘classe dominante’, que detém a posse dos meios de violência” (ARENDT, 1990, p.49). Após essa “correção” do texto marxiano, em que “a propriedade dos meios de produção”, lastro para a cisão de classes, se converte em “posse dos meios de violência”, para adequação à linguagem de sua antropologia especulativa (e para que, lançada para o reino da necessidade, a questão se torne insolúvel), Arendt avalia que tal hipótese goza de “valor pequeno” para as ciências humanas, uma vez que “toma como base uma economia escrava” 8 em cujo seio “uma ‘classe’ de senhores realmente se impõe sobre uma base de trabalhadores”, a qual tem sua validade restrita aos “primeiros estágios do capitalismo”, quando a pobreza atingiu níveis sem precedentes, como resultado da “expropriação pela força” (ARENDT, 1990, p.49). Essa hipótese, formulada pela própria Arendt e por ela atribuída a Marx, “não teria sobrevivido a mais de um século de pesquisa histórica”, não fosse “por seu conteúdo revolucionário”, que supera sua repercussão por méritos científicos.

Promovendo ainda mais distorção nos fatos, aos quais se diz ater, a autora atribui a Marx a origem da disciplina arduamente construída por uma sucessão de gerações, marcada por nomes como Quesnay, Turgot, Smith, Ricardo e outros: ela lhe atribui a criação da economia política, que teria sido engendrada por ele graças à introdução de um “componente político na nova ciência da economia, transformando-a, portanto naquilo que pretendia que fosse”, isto é, em uma “economia política, uma economia que repousava no poder político e, como tal, podia ser alijada pela organização política e pelos meios revolucionários” (ARENDT, 1990, p.50) 9.

Atribuindo a Marx aquilo que se entrevê em seu próprio discurso, Arendt diz que o filósofo teria reduzido as “relações de propriedade ao antigo relacionamento que a violência, mais do que a necessidade” instaura entre os homens; e assim teria invocado “um espírito de rebelião que só pode surgir” sob pressão violenta, nunca pelo “aguilhão da necessidade”. E isso foi de grande auxílio na “libertação” dos miseráveis, não por convencer-lhes de que são “a encarnação viva de alguma necessidade histórica”, mas de que “a própria pobreza é um fenômeno político, e não natural”, é uma decorrência da violação, mais do que da escassez (ARENDT, 1990, p.50).

Para Arendt, o que se vê em Marx é afirmação de que a “condição de miséria” (da qual, para ela – assim como para Marx10  – não brota “gente de espírito livre” em função da sujeição à necessidade), deveria conduzir à revolução, ao invés de à ruína dos trabalhadores. Essa seria a decorrência do procedimento marxiano de “traduzir condições econômicas em fatores políticos, e explicá-las em termos políticos” (ARENDT, 1990, p.50).

Tratando de encontrar o “lugar de Marx, na história da liberdade humana”, a autora sustenta que ele “permanecerá sempre equívoco”. Pois, se “é verdade que, em seus primeiros trabalhos, ele falava da questão social em termos políticos, e interpretava o estado de pobreza como incluído nas categorias da opressão e exploração”, não é menos verdadeiro que ele “em quase todos os seus escritos após o Manifesto Comunista, reformulou, em termos econômicos, o élan genuinamente revolucionário de sua juventude” (ARENDT, 1990, p.51). Desse modo:

Onde inicialmente enxergou a violência humana e a opressão do homem pelo homem, enquanto outros acreditavam existir alguma necessidade inerente à condição humana, mais tarde interpretou como sendo as leis implacáveis da necessidade histórica, agindo por trás de cada violência, cada transgressão e cada violação. (ARENDT, 1990, p.51)

Em seguida a mais essa imputação de posição a Marx, também dessa vez sem qualquer arrimo textual, Arendt desfere outro golpe destes, ao dizer que, ao contrário dos medievais, mas em convergência com seus “mestres da Antigüidade”, o filósofo “equiparava a necessidade aos impulsos compulsivos do processo vital”, motivo pelo qual “acabou por enfatizar, mais do que qualquer outro, a doutrina politicamente mais perniciosa da Idade Moderna”, aquela segundo a qual “a vida é o bem maior e (...) o processo vital da sociedade é o próprio centro do esforço humano” (ARENDT, 1990, p.51). Deixando a refutação de tal disparate para a próxima seção, prossegue-se com a afirmação conseqüente da autora, segundo a qual:

Dessa forma, o papel da revolução não seria mais libertar os homens da opressão de seus semelhantes, nem muito menos instituir a liberdade, mas libertar os processo vital da sociedade de seus grilhões da escassez, e fazê-lo avolumar-se numa torrente de abundância. A abundância, e não a liberdade, torna-se agora o objetivo da revolução. (ARENDT, 1990, p.51)

Após mais essa remissão descuidada de Marx aos marcos da economia política, que criticara fervorosamente durante mais de três décadas, Arendt passa a especular sobre uma possível explicação da “conhecida diferença entre os primeiros e os posteriores escritos”, que não se atenha a “causas psicológicas ou biográficas”, apresentando a coisa em termos de uma “verdadeira mudança de inclinação”. Dizendo não adotar esse procedimento “injusto”, Arendt se lança a uma empreitada de hegelianização de Marx, por meio da dissolução da especificidade de suas idéias em uma trama de categorias “reversíveis”, na qual “tanto era possível interpretar a política em termos econômicos, como vice-versa”, de modo que ficaria ao seu critério optar pela forma mais adequada. Para a autora, Marx o teria feito ao promover essa “conversão teórica da violência em necessidade”, aproveitando-se da “inegável vantagem teórica de ser muito mais elegante” e de simplificar o problema, por tornar supérflua uma “distinção real entre violência e necessidade” (ARENDT,1990, p.51). Arendt, por fim, não vê problema nesse procedimento, uma vez que para ela a violência pode ser reduzida a uma função da necessidade, cujos imperativos são mais prementes, o que possibilita que a necessidade conduza a um levante de libertação contra a tirania, embora não possibilite a constituição da liberdade, em seus termos.

Como desfecho de sua crítica a Marx, Arendt lança mão de outra explicação para sua suposta mudança radical de posição, que acima foi apontada como não mais que inversão de posição lógica. Tal é a explicação:

Foi o cientista em Marx, e sua ambição de elevar sua ‘ciência’ ao nível de ciência natural cuja principal categoria ainda era então a necessidade, que o induziu a inverter suas próprias categorias. (ARENDT, 1990, p.52)

Segundo ela, “politicamente, essa evolução levou Marx a uma real capitulação frente à necessidade”. Assim se resumem os ganhos do “esforço de Marx para reescrever a História em termos de luta de classes”, o qual “foi inspirado, pelo menos parcialmente, no desejo de reabilitar postumamente aqueles a cujas vidas vilipendiadas a História acrescentou o insulto do esquecimento” (ARENDT, 1990, p.52).

Uma resposta marxiana a Arendt

Nessa seção empreende-se um esforço em trazer à tona alguns traços fundamentais da concepção de historicidade do humano propugnada por Karl Marx ao longo de sua trajetória intelectual, com vistas a amparar textualmente as considerações acima arroladas em sua defesa, quando da exposição comentada da crítica feita a ele por Hannah Arendt, quanto à sua idéia de História e, conseqüentemente, de Revolução.

O primeiro passo dessa empreitada é o esclarecimento de que a noção marxiana, exposta em A Ideologia Alemã, segundo a qual “a ‘libertação’ é um ato histórico e não um ato de pensamento” (MARX & ENGELS, 2007, p.29) antecipa o caráter positivo e relacional da liberdade humana que se apresenta como inovação em Arendt. E o faz com a vantagem de não confiná-la a um âmbito específico do agir humano, mas de evidenciá-la como um conjunto de capacidades de ação articuláveis e mutuamente influentes, que só se podem desenvolver e aplicar em um contexto material compartilhado e co-produzido por sucessivas gerações, em processo em que a naturalidade só comparece como substrato progressivamente modificado, mas jamais suprimido – ainda que nunca exerça um papel preponderante. E é isso o que se pretende demonstrar nas páginas seguintes.

Em crítica dirigida a Feuerbach no mesmo texto acima referido, Marx o condena por partir de abstrações insufladas de vida própria para a investigação sobre a vida real. Criticando Feuerbach por dizer “‘o homem’ em vez de os ‘homens históricos reais’”, Marx antecipa em mais de um século o reconhecimento, arrogado por Arendt, da “pluralidade” como condição humana inelutável. Prosseguindo em sua crítica, Marx não só se mostra à frente de Arendt, como nos dá elementos para situá-la ao lado de Feuerbach e dos demais filósofos a quem critica como os “ideólogos alemães” (MARX & ENGELS, 2007, p.32), o que faz jus às palavras da autora citadas na epígrafe deste estudo. O autor o faz ao dizer que Feuerbach:

...não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveu sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas. (MARX & ENGELS, 2007, p.32)

Feuerbach não percebe que sua “certeza sensível” só lhe é dada “mediante essa ação de uma sociedade determinada numa determinada época” (MARX & ENGELS, 2007, p.32). E o mesmo parece ocorrer com Arendt 11, para quem o processo material de produção de riqueza, no qual Marx vê o locus de auto-engendramento do humano, é regido pela necessidade e pela violência (uma vez que alguns lançam mão desse recurso para, fazendo recair em outro sua própria necessidade, ver-se livre para a ação).

Ainda no tocante à crítica passível de se extrapolar de Feuerbach a Arendt, pode-se mencionar a problematização da idéia de “ciência natural” da qual parte o neo-hegeliano, Marx questiona “onde estaria a ciência natural sem a indústria e o comércio?”. E responde que “mesmo essa ciência natural ‘pura’ obtém tanto sua finalidade como seu material apenas por meio (...) da atividade sensível dos homens”, desse “contínuo trabalhar e criar sensíveis, essa produção, a base de todo o mundo sensível, tal como ele existe agora” (MARX & ENGELS, 2007, p.32). Com essa afirmação, Marx nos disponibiliza elementos para uma crítica à idéia de ciência como contemplação que Arendt defende em sua obra12, aproximando-se das elaborações feuerbachianas.

Após indicar como uma vantagem de Feuerbach sua compreensão “de que o homem é também ‘objeto sensível’”, Marx o repreende mais uma vez; agora por não conceber “os homens em sua conexão social dada, em suas condições de vida existentes, que fizeram deles o que eles são”, de modo que não se chega “nunca até os homens ativos, realmente existentes”, permanecendo na “abstração ‘o homem’” (MARX & ENGELS, 2007, p.32). Não obstante defenda o contrário, tal é o procedimento adotado por Arendt, ao confinar o que é propriamente humano em sua abstração do homem político13, que se esvazia de qualquer interesse concreto com cuja lida no mundo se forma qualquer indivíduo real.

Ainda em consideração crítica extensível a Arendt, Marx nos diz que Feuerbach:

Não nos dá nenhuma crítica das condições de vida atuais. Não consegue nunca, portanto, conceber o mundo sensível como a atividade sensível, viva e conjunta dos indivíduos que o constituem, e por isso é obrigado, quando vê, por exemplo, em vez de homens sadios um bando de coitados, escrofulosos, depauperados e tísicos, a buscar refúgio numa ‘concepção superior’ e na ideal ‘igualização no gênero’ [no caso de Arendt, ‘igualização no político’]; é obrigado, por conseguinte, a recair no idealismo justamente lá onde o materialista vê a necessidade e simultaneamente a condição de uma transformação, tanto da indústria como da estrutura social (MARX & ENGELS, 2007, p.32).

Então, pode-se dizer não só do pensamento de Feuerbach, como também daquele de Arendt, que, “na medida em que (...) é materialista, nele não se encontra a história”, ao passo que “na medida em que toma em consideração a história ele não é materialista”. Assim, em ambos, “materialismo e história divergem completamente” (MARX & ENGELS, 2007, p.32).

Apresentando, em seguida, algo de sua própria concepção, Marx e Engels sustentam que “o primeiro ato histórico” consiste na “produção da própria vida material”, “uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos”, afirmações com as quais Arendt estaria de pleno acordo, demonstrando sua atinência aos fatos. Mas, contrariando a expectativa arendtiana de naturalização de tais processos fundamentais, os autores nos dizem que “a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades”, de modo que se promove um afastamento de determinações naturais, por meio da apropriação consciente e cooperativa da natureza. Após essa demonstração do caráter sócio-histórico das necessidades que se pretendem sanar com a atividade material tipicamente humana, dizem os autores, em tom irônico, acerca da “grande sabedoria histórica dos alemães” (MARX & ENGELS, 2007, p.33), que:

... quando lhes falta o material positivo e quando não se trata de discutir disparates políticos, teológicos ou literários, nada nos oferecem sobre a história, mas sim sobre os ‘tempos pré-históricos’, contudo sem nos explicar como se passa desse absurdo da ‘pré-história’ à história propriamente dita. (MARX & ENGELS, 2007, p.33)

Divergindo de tais procedimentos especulativos, os autores advertem que “as necessidades aumentadas criam novas relações sociais”, de modo que “a família torna-se uma relação secundária”. E recomendam que a mesma deva “portanto, ser tratada e desenvolvida segundo os dados empíricos existentes e não segundo o ‘conceito de família’, como se costuma fazer na Alemanha” (MARX & ENGELS, 2007, p33) – e tal como parece proceder Arendt na elaboração da peculiar idéia que tem da esfera econômica, cujo máximo de complexidade que pode atingir é sua articulação de famílias em unidades mais amplas, até a formação de uma “família sobre-humana” sob forma de nação, tal como expõe em A Condição Humana (ARENDT, 1983, p.38).

Dizendo tratarem as idéias acima apresentadas de “aspectos da atividade social”, que “não devem ser considerados como três estágios distintos”, dado “que coexistiram desde os primórdios da história e desde os primeiros homens, e que ainda hoje se fazem valer na história” (MARX & ENGELS, 2007, p.34), Marx e Engels asseveram, sinteticamente:

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação, aparece desde já como uma relação dupla – de um lado, como relação natural, de outro como relação social –, social no sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e a finalidade. (MARX & ENGELS, 2007, p.32)

Daí se segue, segundo eles, “que um determinado modo de produção” esteja sempre ligado “a um determinado modo de cooperação (...) que é, ele próprio, uma ‘força produtiva’”. Segue-se também “que a soma das forças produtivas acessíveis ao homem condiciona o estado social e que, portanto, a ‘história da humanidade’ deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas” (MARX & ENGELS, 2007, p.34). É pertinente lembrar que, para além da mera reprodução física dos indivíduos, trata-se aqui do desenvolvimento “de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos”; daí poder-se afirmar que “o que eles são coincide (...) com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem”, “depende das condições materiais de sua produção” (MARX & ENGELS, 2002, pp. 27-28).

Assim, para os autores:

Mostra-se, portanto, desde o princípio, uma conexão materialista dos homens entre si, conexão que depende das necessidades e do modo de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens – uma conexão que assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma ‘história’, sem que precise existir qualquer absurdo político ou religioso que também mantenha os homens unidos. (MARX & ENGELS, 2007, p.34)

É somente nesse estágio da reflexão, depois de já examinados “quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias”, que se dá conta de que “o homem tem também ‘consciência’”. Mas, segundo também se compreende, esta não é, “desde o início, consciência ‘pura’”, uma vez que “o ‘espírito’ sofre, desde o início, a maldição de estar ‘contaminado’ pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma (...) de linguagem”. E esta, para os autores, “é tão antiga quanto a consciência”, ela “é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para” cada um: ela “nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens” (MARX & ENGELS, 2007, p.34) 14.

Sobre a problemática da cisão e da dominação de classes no seio da sociedade, condição sócio-histórica naturalizada pela antropologia especulativa de Arendt, e de sua repercussão na consciência, Marx assevera que:

A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual. A partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real – a partir de então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. ‘puras’. (MARX & ENGELS, 2007, p.35)

Aqui cabe comentar que, por “trabalho espiritual”, Marx entende a atividade de concepção e orientação gerais para o complexo processo interativo de auto-produção concreta do humano sócio-histórico, o que inclui a magia e a mitologia, a moral e a religião, bem como os princípios políticos aparentemente ilibados, purificados (filosoficamente) de qualquer ranço moral ou religioso (como os pretende encontrar Arendt por via da contemplação). É nesse âmbito que se insere a problemática das interações complexas, nada mecânicas, entre a assim chamada infra-estrutura e a famosa superestrutura, instâncias que são mutuamente determinantes, mas em cuja interação a materialidade é preponderante15. Desconsiderando-se essa problemática, perde-se de vista que o objetivo comum que inspirara a filosofia socrático-platônica e aquela de Arendt é justamente a legitimação filosófica daquela separação16, que em Marx não decorre de qualquer determinação natural, nem de qualquer necessidade propriamente histórica no sentido hegeliano aludido acima. Mas, decorre, sim, de processos históricos reais.

Até aqui, o único sentido possível para a expressão “necessidade histórica” na obra de Marx é o de demanda engendrada em meio ao convívio multidimensional humano, que é histórico; seja uma carência referente à reprodução biológica de um organismo singular, seja um anseio referente ao conjunto global de indivíduos concretos que coabitam e produzem cooperativamente esse mundo. Nada tem a ver com a realização de uma necessidade metafísica ou natural, de todo modo transcendente; mas com a ingerência humana efetiva e muitas vezes eficaz nos assuntos propriamente humanos, que decorrem do processo cooperativo de apropriação da natureza (externa e própria ao homem) segundo propósitos sócio-historicamente engendrados, portanto, livres17 – ainda que admitindo graus distintos de reflexão e decisão, conforme a configuração sócio-histórica específica em vigor, cujo ajuste violento Marx denomina revolução.

Compreendendo a história como “o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores”, os autores percebem que, “por um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condições”. E percebem também que esse processo “pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na finalidade da anterior”, com o que “a história ganha finalidades à parte”, por meio da dação de vida própria a uma “abstração da influência ativa que a história anterior exerce sobre a posterior” (MARX & ENGELS, 2007, p.40), com o que se pode defender que não há em seu pensamento qualquer finalismo, qualquer elemento escatológico; mas, sim, a afirmação da possibilidade indeterminada de auto-engendramento do homem, por meio da interação concreta dos indivíduos reais em um ambiente objetivo.

Para acentuar a concretude da noção marxiana de “história mundial”, que Arendt vê como decorrência lógica do conceito hegeliano de necessidade histórica, que teria sido herdado por Marx, bem como para evidenciar a abrangência e a profundidade de seu propósito revolucionário, que a autora nega taxativamente com base naquela interpretação hegelianizada de suas idéias, cabe relacionar essa passagem como reforço:

Na história que se deu até aqui é sem dúvida um fato empírico que os indivíduos singulares, com a expansão da atividade numa atividade histórico-mundial, tornaram-se cada vez mais submetidos a um poder que lhes é estranho (cuja opressão eles também representavam como um ardil do assim chamado espírito universal etc.), um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em última instância, como mercado mundial. (MARX & ENGELS, 2007, p.41)

Desdobrando essa afirmação no que tange ao processo de individuação, os autores rememoram que “é do mesmo modo empiricamente fundamentado” que, “com o desmoronamento do estado de coisas existente da sociedade por obra da revolução comunista”, “a libertação de cada indivíduo singular é atingida”, “na mesma medida em que a história transforma-se plenamente em história mundial”. Acentuando que “a efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais” (MARX & ENGELS, 2007, p.41) e não apenas do atendimento às necessidades biológicas, dizem Marx e Engels:

Somente assim os indivíduos singulares são libertados das diversas limitações nacionais e locais, são postos em contato prático com a produção (incluindo a produção espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de fruição dessa multifacetada produção de toda a terra (criações dos homens). (MARX & ENGELS, 2007, p.41)

Ainda de A Ideologia Alemã cabe apontar mais alguns poucos aspectos. Além da afirmação de que a atual forma alienada de produção da vida “é transformada, por obra dessa revolução comunista”, que consiste na instauração do “controle e domínio consciente” daqueles poderes que, “criados pela atuação recíproca dos homens, a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os dominaram” (MARX & ENGELS, 2007, p.42), apresenta-se uma pista acerca do processo formativo do agente revolucionário mesmo, temática que em Arendt não merece qualquer tratamento concreto18. Diz-se no texto, antecipando a idéia arendtiana de que, em uma revolução, a etapa de libertação deveria ser seguida daquela em que se promove a constituição da liberdade:

...tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade. (MARX & ENGELS, 2007, p.42)

Defendendo, em seguida, que a historiografia deve se operar em atenção ao “processo real de produção a partir da produção material da vida imediata”, concebendo “a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada”, Marx e Engels dizem que assim se pode explicar a ação da sociedade civil via Estado, bem como explicar “a partir dela o conjunto de diferentes criações teóricas e formas da consciência”, seja a religião, a filosofia, a moral etc., seguindo “seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua toda (assim como a ação recíproca entre esses diferentes aspectos)”. Em defesa de tal posição, sustentam que:

Toda concepção histórica existente até então ou tem deixado completamente desconsiderada essa base real da história, ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora de toda e qualquer conexão com o fluxo histórico. A história deve, por isso, ser sempre escrita segundo um padrão situado fora dela; a produção real da vida aparece como algo pré-histórico, enquanto o elemento histórico aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterreno. Com isso, a relação dos homens com a natureza é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história.(MARX & ENGELS, 2007, p.43)

Dessa posição, segundo Marx e Engels, só se pode ver na história “ações políticas dos príncipes e dos Estados, lutas religiosas e simplesmente teoréticas”, bem como se é levado a “compartilhar, em cada época histórica, da ilusão dessa época”. Assim, “se uma época se imagina determinada por motivos puramente ‘políticos’ ou ‘religiosos’, embora ‘religião’ e ‘política’ sejam tão-somente formas de seus motivos reais, então o historiador dessa época aceita essa opinião”. E se for o caso de se decidir o teórico, “nem que seja por uma única vez”, “tratar dos temas verdadeiramente históricos – como, por exemplo, o século XVIII”, só nos será oferecida “a história das representações, destacadas dos fatos e dos desenvolvimentos históricos que constituem sua base” (MARX & ENGELS, 2007, p.44). Assim, se na análise de tal ou qual período histórico “desconsideramos os indivíduos e as condições mundiais que constituem o fundamento dessas idéias”, poderemos incorrer em equívoco análogo àquele de dizer que “durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra, fidelidade etc., enquanto durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc.” (MARX & ENGELS, 2007, p.44). Quanto à importância dada por Arendt ao discurso daqueles que toma como os autênticos revolucionários, em função de seu incontido anseio por liberdade pública, Marx e Engels têm algo a dizer, que reitera posição criticada no primeiro por ela. Nas palavras dos autores:

Enquanto na vida comum qualquer shopkeeper sabe muito bem a diferença entre o que alguém faz de conta que é e aquilo que ele realmente é, nossa historiografia ainda não atingiu esse conhecimento trivial. Toma cada época por sua palavra, acreditando naquilo que ela diz e imagina sobre si mesma. (50)

Fecha-se esse tratamento de A Ideologia Alemã com a afirmação marxiana de que na exploração de “um esquema já existente, adequando-o às suas próprias finalidades e demonstrando essa concepção ‘própria’ com ajuda de exemplos isolados” aquele que pretende historiar ou refletir sobre a história se isenta da necessidade de qualquer conhecimento da história. E com isso passa-se ao tratamento de outro texto.

Para que se tenha plena clareza de que a posição de Marx quanto à história não se esvai com o tempo, no suposto trânsito entre juventude e maturidade, faz-se útil a consideração de uma carta enviada pelo autor, em novembro de 1877, ao periódico russo Otietchestvienniie Zapiski19, em que o filósofo relata que, “para poder apreciar com conhecimento de causa o desenvolvimento econômico da Rússia”, havia aprendido o russo e estudado, “durante longos anos, as publicações oficiais e outras relativas a este assunto” (informação que aqui se faz relevante dado o contraste que se pretende estabelecer entre o procedimento deste autor e aquele de Arendt) e chegado à conclusão de que, “se a Rússia continuar marchando pelo caminho seguido desde 1861”, incorrerá em grande perda: deixará passar “a mais bela oportunidade que a História jamais ofereceu a um povo”, habilitando-se a experimentar “todas as peripécias fatais do regime capitalista”. (MARX, 1982, p.)

Respondendo a uma polêmica levantada a partir do capítulo sobre “a acumulação primitiva” de seu livro O Capital, em que tratava do caminho percorrido pela Europa Ocidental, Marx explica que a “aplicação à Rússia deste esboço histórico” se restringe ao seguinte: “se a Rússia tende a transformar-se numa nação capitalista”, terá antes que transformar “uma boa parte de seus camponeses em proletários”. Uma vez “introduzida no seio do regime capitalista”, ela deverá operar segundo “suas leis impiedosas”. E “isto é tudo” (MARX, 1982, p.). Mas, nota Marx, isso não basta para seu crítico.

Ele se sente obrigado a metamorfosear meu esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa Ocidental em uma teoria histórico-filosófica da marcha geral fatalmente imposta a todos os povos, sejam quais forem as circunstâncias históricas em que se encontrem, para chegar, finalmente, a esta formação econômica que assegure, juntamente com o maior impulso das forças produtivas do trabalho social, o mais completo desenvolvimento do homem. Mas ele que me perdoe: isso, ao mesmo tempo, muito me honra e muito me envergonha. (MARX, 1982, p.)

Negando taxativamente a seu pensamento qualquer pretensão de se constituir como “uma teoria histórico-filosófica” que desse conta de trazer à luz a legalidade própria de uma “marcha geral fatalmente imposta a todos os povos”, Marx deixa sem chão aqueles que imputam a seu pensamento uma filosofia da história, de talhe hegeliano – dentre os quais se encontra Hannah Arendt, como se viu acima.

Como exemplo de seu procedimento de ir “estudando cada uma dessas evoluções separadamente e comparando-as em seguida”, sem nunca lançar mão do “passe-partout de uma teoria histórico-filosófica geral” (MARX, 1982, p.), podem-se apresentar os esboços elaborados por Marx em resposta à carta de Vera Zasulich, de 1881. Nesses escritos, Marx defende que “na Rússia, graças a uma combinação de circunstâncias únicas”, a obchina, forma específica de comuna rural, ainda estabelecida em escala nacional em seu tempo, podia “desembaraçar-se gradualmente de seus caracteres primitivos e desenvolver-se diretamente como elemento da produção coletiva em escala nacional” (MARX, 1982 b, p.).

Mais uma vez, nada se percebe de inexorabilidade histórica no texto marxiano. Ao invés disso, percebe-se uma grande sensibilidade e uma acentuada receptividade teórica para a diversidade, para o específico, sem sua dissolução em abstrações20. E essa idéia é reforçada quando, indo a detalhes sobre o objeto de que trata, Marx assevera:

É justamente graças à contemporaneidade da produção capitalista que ela pode apropriar-se de todas as conquistas positivas desta última, sem passar por suas peripécias terríveis. A Rússia não vive isolada do mundo moderno, nem é presa de um conquistador estrangeiro, como as Índias Orientais.

Após essa passagem, em que se nota o esforço do autor em não tomar seu objeto como avulso, reconhecendo-o como inserido em um todo, com o qual se relaciona, determinando e sendo determinado, vê-se a reiteração da possibilidade de a comuna russa vir a servir de base para uma revolução, não só restrita à Rússia, mas de abrangência global21. E, contra uma possível objeção no sentido de interditar à realidade russa uma absorção efetiva e positiva dos avanços produtivos materiais e intelectuais, bem como referentes à organização política dos trabalhadores ocidentais, dada sua especificidade cultural marcante, argumenta:

Se os porta-vozes dos novos pilares sociais negassem a possibilidade teórica dessa evolução da comuna rural moderna, poder-se-ia perguntar-lhes se a Rússia teve que passar, como o Ocidente, por um longo período de incubação da indústria mecânica para chegar às máquinas, aos barcos a vapor, às estradas de ferro etc. Também se perguntaria como fizeram para introduzir entre eles, num piscar de olhos, todo o mecanismo de trocas (bancos, sociedades por ações etc.) cuja elaboração (alhures) custou séculos ao Ocidente.

Trazendo à tona que “o Estado serviu de intermediário” no “desenvolvimento precoce dos meios técnicos e econômicos mais apropriados para facilitar a exploração do cultivador”, ou seja, “da maior força produtiva da Rússia”, com vistas a “enriquecer os ‘novos pilares sociais’”, Marx conclui suas considerações sustentando que “o que ameaça a vida da comuna russa não é uma inevitabilidade histórica, nem uma teoria”, mas “a opressão, e exploração pelos capitalistas intrusos cujo Estado tornou poderosos a expensas dos camponeses”. Tal afirmação evidencia a inadequação do esquema economicista para compreender suas idéias sobre o tema das relações entre economia e política, por ressaltar o papel da lei e da espada na constituição de dado modo de vida – repercutindo procedimento adotado já em O Capital, na seção destinada a tratar-lhe a “acumulação primitiva” (MARX, 1982 b, p.).

O prefácio escrito em 1882 para a edição russa do Manifesto Comunista merece ser trazido aqui à baila, neste último momento, por dois motivos: ele permite ressaltar mais uma vez o caráter globalmente articulado da história humana, por um lado; bem como permite trazer à tona o acurado conhecimento que Marx tinha dos Estados Unidos, de sua importância para a história humana e de seu potencial revolucionário, o qual nos permite mais uma vez questionar a validade da crítica que Arendt lhe direciona.

Quanto à questão da comuna russa, basta apresentar a indagação formulada por Marx a seu respeito, acompanhada de sua resposta. Primeiro, questiona Marx:

...poderia a comunidade rural russa – forma por certo já muito desnaturada da primitiva propriedade comum da terra – passar diretamente à forma superior da propriedade coletiva, à forma comunista ou, pelo contrário, deverá primeiramente passar pelo mesmo processo de dissolução que constitui o desenvolvimento histórico do Ocidente? (MARX, 1977, p.16)

Então, ele responde:

...se a revolução russa dá o sinal para uma revolução proletária no Ocidente, de modo que ambas se completem, a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma desenvolvimento comunista. (MARX & ENGELS, 1977, p.16)

Nessa reapresentação do Manifesto mais de trinta anos depois de sua primeira aparição, justifica-se a ausência da “Rússia e os Estados Unidos” do texto, em função do momento específico de sua elaboração, “em que a Rússia constituía a última grande reserva de toda a reação européia”, enquanto que “a emigração para os Estados Unidos absorvia o excesso de forças do proletariado da Europa”. Naquele tempo, segundo se relembra, “estes dois países proviam a Europa de matérias-primas e eram, ao mesmo tempo, mercados para a venda de sua produção industrial”, consistindo “ambos, de um modo ou de outro, esteios da ordem vigente na Europa”. Mas, tudo mudou muitíssimo nessas três décadas: condicionado pela “emigração européia”, verificou-se na América do Norte um “colossal desenvolvimento da agricultura”, “cuja concorrência abala os próprios alicerces da grande e da pequena propriedade territorial na Europa”; verificou-se também “a possibilidade de empreender a exploração dos seus imensos recursos industriais” com um vigor e em proporções tais que “muito cedo” havia “de acabar com o monopólio industrial do Ocidente europeu e especialmente com o da Inglaterra” (MARX & ENGELS, 1977, p.15). Acentuando exatamente o que se obscurece na obra de Arendt, o autor nos esclarece que:

Estas duas circunstâncias repercutem por sua vez, de um modo revolucionário, sobre a própria América do Norte. A pequena e média propriedade agrária dos granjeiros, pedra angular de todo o regime político norte-americano, sucumbe continuamente diante da concorrência das gigantescas fazendas, enquanto em regiões industriais se forma, pela primeira vez, um poderoso proletariado ao lado de uma fabulosa concentração de capitais.

Essa última passagem reforça que, não só em termos históricos, mas também filosóficos22, a compreensão marxiana do fenômeno norte-americano, com suas especificidades e generalidades, em sua dinâmica própria e em sua inserção interativa global, se mostra mais fecunda que aquela de Hannah Arendt, que pretende superá-la por atinência aos fatos.

Conclusão

Tomando como base o que fora arrolado, acredita-se poder defender que, de um modo geral, a obra de Marx se mostra mais fecunda que aquela de Arendt para a compreensão do fenômeno revolucionário, bem como assim se evidencia no tocante à liberdade, à individualidade, à sociabilidade e à historicidade humanas. Não cindindo o homem em instâncias definitivas de atividade, que são incomunicáveis (como o faz Arendt em outras obras23, mas com impacto no livro aqui em pauta – embora seu pensamento permita que a razão econômica invada a política, desnaturando-a, evidenciando mais um de seus inúmeros paradoxos), mas compreendendo-o na multiplicidade cambiante de seus âmbitos interativos de ação, Marx não o aprisiona por emaranhado de idéias em dado momento histórico (em grande parte inventado24), que é naturalizado ou sobrenaturalizado, mas o reconhece imerso em um complexo ambiente material e imaterial produzido por ele mesmo ao longo de gerações (através da apropriação cooperativa da natureza, à sua volta e em si), em meio ao qual cada indivíduo se produz, como resultado de sua interação concreta singular (embora configurada por inúmeras particularidades e universalidades) com os demais. A pretensa crítica que a autora direciona ao filósofo revela, portanto, muitíssimo mais de sua própria debilidade e inconsciência dos próprios limites do que a ingenuidade e a eventual perversidade de um discípulo que nunca chegou a mestre, a quem apraz escamotear a história motivado por intenções escusas e cujo maior impacto foi sublevar as massas a uma “libertação” que faria malograr a Revolução dos Livres Proprietários (cognominados de O Povo), de que aquela norte-americana seria o exemplo maior (a idéia platônica em roupagem “materialista”) – “revolução” que deveria ter na “populaça” apenas o seu exército, para lutar por eles contra quem constrangia a ambos, o Rei e sua corte. Marx ter-lhes-ia roubado aos Livres o exército de “sociais” que eles tinham à sua disposição, para usá-lo em seu projeto totalitário próprio. Se lida por tal viés, talvez a filosofia arendtiana se mostre muito mais próxima daquilo que diz combater do que crê a própria autora. Essa é a proposta deste texto.

Referências

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983.

_____. Da Revolução. São Paulo: Ática, 1990.

_____. The Jew as Pariah. New York: Grove Press, 1978, pp.245-246.

MARX, Karl. À Redação de Otietchestvienniie Zapiski. In: Fernandes, R.C. Dilemas do Socialismo: A controvérsia entre Marx, Engels e os Populistas Russos, pp.165-168. São Paulo: Paz e Terra, 1982.

_____. Primeiro rascunho de carta a V. Zasulich. In: FERNANDES, Rubem César. Dilemas do socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 1982 b.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

_____. A ideologia alemã (I Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 2002.

_____. Prefácio à Edição Russa de 1882 [ao Manifesto Comunista]. In: Karl Marx e Friedrich Engels: Textos 3. São Paulo: Edições Sociais, 1977.

Notas

1 ARENDT, Hannah. The Jew as Pariah. New York: Grove Press, 1978, pp.245-246.

2 MARX & ENGELS, A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 2002, p.18

3Toma-se aqui como pertinente a periodização da obra de Marx feita por J. Chasin, em seu livro Marx:Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica (São Paulo: Boitempo, 2009), segundo a qual não há quaisquer rupturas fundamentais na obra marxiana após 1843.

4Não só em Da Revolução, mas por toda a sua obra, Hannah Arendt tece, sistemática ou acidentalmente, de modo esparso ou articulado, considerações que desaprovam o filósofo em vários aspectos de seu pensamento, tal como ela o concebe. De todas as porções críticas, que têm como característica comum a precariedade da sustentação textual para as afirmações apresentadas, trata-se aqui apenas daquelas presentes naquele livro.

5 Ver WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História. São Paulo: Edusp, 2004

6 Para a caracterização dos “Pais Fundadores” e de seu contexto específico, remeto o leitor a “Who Wrote the Constitution? The Economic Interests of the ‘Founding Fathers’”, compilação feita por Bill Bigelow, em que aqueles personagens são apresentados com suas respectivas posições sociais, ocupações e fortunas. Este documento, de que se pode inferir algo acerca dos interesses econômicos que motivaram sua participação no processo de independência, encontra-se em: http://www.rethinkingschools.org/static/publication/roc2/sla2roc2.pdf. Também acerca dos chamados “Pais fundadores”, é relevante levar em conta a forte influência exercida sobre eles pela constituição da confederação indígena iroquesa, a qual Benjamin Franklin teria tomado como modelo. Para uma primeira aproximação da temática, negligenciada por Arendt, pode-se acessar com proveito: http://www.ratical.org/many_worlds/6Nations/index.html#FF.

7 Comum nas obras da autora e notadamente no livro em questão é o arremesso de asserções acerca da posição filosófica ou política de terceiros sem qualquer amparo textual. Vítima freqüente desse procedimento no referido livro é Jean-Jaques Rousseau.

8 Vê-se que o pequeno apreço que a autora tem para com as determinações históricas específicas impediu-a não só de discernir traços importantes da realidade que se propôs a compreender, mas também de reconhecer o que é central no pensamento de Marx, a saber, seu esforço em capturar a especificidade do modo de produção em vigor nesse ou naquele contexto analisado.

9De fato ela inverte as coisas, dado que essa economia “científica”, pretensamente isenta, nasceu justamente como reação à crítica de Marx à economia política.

10Cumpre salientar aqui que Marx jamais propõe a revolução senão como apropriação por parte dos produtores de uma riqueza produzida, mas deles alijada, em função da forma social pela qual essa riqueza mesma riqueza se produz; não propõe em parte alguma a revolução a partir da miséria.

11À possível objeção de que a autora reconhece adequada e conseqüentemente o caráter artificial do ambiente material humano, sob suas categorias relacionadas de “homo faber” e de “fabricação”, pode-se retorquir que estas idéias, por conferirem caráter natural àquilo a que se referem (a produção de um mundo de objetos úteis) e a descolarem de tudo o que seja especificamente humano, esvaziam qualquer possibilidade de sua articulação com as demais dimensões do fazer-se histórico do homem. Isso se pode notar no terceiro capítulo de A Condição Humana.

12 Em nota à primeira página de seu ensaio “O público e o privado em Hannah Arendt”, Marco António Antunes, afirma que “A contemplação é o último elemento conceptual da antropologia filosófica de Hannah Arendt” [e] “consiste na relação do homem com o mundo físico na tentativa de apreender leis eternas semelhantes às leis da Matemática e da Física. Este conceito é tematizado em The life of the spirit. Compreende reflexão filosófica e religiosa”. O texto de Antunes está disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/antunes-marco-publico-privado.pdf.

13 Ver A Condição Humana, em que se expõe a atividade política, a ação, como a “prerrogativa exclusiva do homem”, de modo que “nem um animal nem um deus é capaz de ação”, e que “só a ação depende inteiramente da constante presença de outros” (ARENDT, 1983, p.31), o que de modo algum é um fato, como se percebe na obra de Marx e por meio da experiência cotidiana.

14 Cabe aqui o comentário de que nem mesmo a mais rudimentar expedição de coleta cooperativa pode operar-se sem que haja comunicação entre seus partícipes, de modo que a linguagem não se restringe à “esfera pública”, instância historicamente recente que apenas o mais crasso anacronismo poderia remeter aos primórdios da humanidade, à pré-história – na qual, diga-se, já se encontra altíssimo grau de elaboração lingüística e espiritual em geral, acentuadamente de caráter moral.

15 Para um tratamento mais aprofundado da questão, que não recaia na atribuição de uma “teoria da ideologia” a Marx, mas reconheça a complexidade do tratamento que o autor dá ao tema, consultar o artigo de Ester Vaisman, “A usina onto-societária do pensamento” (em: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 4, Ano II, Abril de 2006, periodicidade semestral – Edição Especial: Dossiê Marx; disponível em: http://www.verinotio.org/Verinotio_revistas/n4/r4artigo8.pdf). Ver também, de Leônidas Dias de Faria, “A determinação sócio-histórica das formações ideais na teorias da mais-valia de Karl Marx”. Dissertação de mestrado em filosofia, Fafich – UFMG, 2003.

16 Ellen Wood, em seu Class ideology and ancient political theory, ressalta que, na filosofia dos socráticos (Sócrates, Platão e Aristóteles, dentre outros menores), “os homens na polis que são incapazes de ser sábios por causa de seu trabalho árduo, sua falta de ócio e sua prisão à necessidade material são algo menos que humanos e são serventes naturais daqueles que são superiores” (p.109). Desbancando a idéia corrente de que a polis grega era fundada no trabalho escravo e que por isso essa atividade era vista como indigna, basilar para o pensamento político de Arendt, Wood defende, em seu livro Democracia contra capitalismo, que “o trabalhador livre, com o status de cidadão numa cidade estratificada, especificamente o cidadão camponês, com a liberdade jurídica e política implícita e a liberação de formas de exploração por coação direta dos donos de terra ou do Estado, era certamente uma formação distintiva que indicava uma relação única entre classes apropriadoras e produtoras” e que “essa formação única está no centro de grande parte do que caracteriza a polis grega e especialmente a democracia ateniense”, afetando todo o seu desenvolvimento cultural e político, aí incluída “a filosofia grega clássica” (p.157). No mesmo diapasão, Vernant ensina que Platão teve sua “concepção do homem” afetada por esse contexto, mas apenas negativamente, uma vez que nenhum dos “aspectos psicológicos” da técnica “lhe parece apresentar conteúdo humano válido”, de modo que o filósofo tem o “cuidado de separar e de opor a inteligência técnica e seu ideal de homem, como ele separa e opõe na cidade a função técnica e as outras duas”, a de defender e a de governar (p.320). Com base nisso, Wood pode afirmar sobre Arendt, em seu livro Peasant-Citizen and Slave, que “ela constrói toda uma filosofia política” com base na identificação da realidade com a sugestão aristotélica de que os cidadãos, apenas por serem “livres da necessidade de trabalhar para viver, eram capazes de uma verdadeira consciência política”. Assim, Arendt seria forçada pelos fatos, pelos quais afirma ter apreço, a retratar-se filosoficamente e “atribuir as glórias da antiga Atenas não ao seu espírito agônico, mas à influência nefasta do cidadãos banáusicos” (pp.40-41); ou assumir o caráter apolgético, poranto estreitamente instrumental, de seu pensamento político – incorrendo em mais um pardoxo.

17 E é essa a solução marxiana para a problemática kantiana da causalidade livre.

18 Nem poderia merecer, dado que as revoluções, para ela, ocorrem inadvertidamente aos seus protagonistas, que têm de assumi-la já em curso – afirmação que se choca frontalmente com aquela segundo a qual um processo revolucionário se empreende sob a motivação de um anseio consciente e aguerrido por liberdade pública, que a autora defende em todo o livro Da Revolução.

19 Em resposta a uma resenha feita acerca de seu livro O Capital, que estava recém-editado na Rússia e vinha sendo objeto de um fervoroso debate, principalmente acerca da noção de história ali contida e de sua fecundidade para a análise do caso russo.

20 Outro ponto a notar no texto é o fato de que nele Marx traz para seu campo de reflexão o conhecimento que então se produzia na etnologia e na investigação sobre a pré-história, para incorporá-lo produtivamente em seu discurso, tornando-o assim, em troca, mais apto a orientar a investigação empírica. A análise da “vitalidade da comuna européia”, que deixou profundas marcas mesmo depois de extinta, bem como do potencial revolucionário da comuna russa (MARX, 1982 b., p.), não se pode empreender com base nas idéias de Arendt, para quem a esfera da produção econômica se rege pela mera necessidade biológica ou pela violência, que não é senão uma “função da necessidade” (ARENDT, 1990, p.52).

21 Quanto à sua especificidade e ao seu contexto mais amplo, nos diz o autor que “a Rússia é o único país europeu onde a comuna agrícola manteve-se em escala nacional até os nossos dias”, “não é presa de um conquistador estrangeiro tampouco vive isolada do mundo moderno”; “a propriedade comum da terra permite-lhe transformar direta e gradualmente a agricultura parcelar e individualista em agricultura coletiva” e os “camponeses russos já a praticam nas pradarias indivisas” e “a configuração física do seu solo convida à exploração mecânica em grande escala”. Outros dois pontos a destacar são: “a contemporaneidade da produção capitalista no Ocidente, com o qual ela mantém relações materiais e intelectuais” e o compromisso da sociedade russa e de sua Intelligentsia para com os camponeses, a cujas custas viviam e a quem deviam “os avanços necessários a tal transição” (MARX, 1982 b, p.)

22 A filosofia, na obra de Marx, deve ser entendida como a dimensão mais abstrata de uma análise multidimensional e integral da realidade, que não se arroga uma pretensa compreensão do todo, mas uma cautelosa compreensão dessa mesma realidade como sendo um todo; a filosofia deve ser entendida como um discurso que não é autônomo, mas que se integra (ou deve integrar-se), como elemento específico em outro mais amplo (em que se articulam aos filosóficos aqueles saberes de caráter científico, bem como técnicos e mesmo de senso comum, cuja legitimidade em seu âmbito próprio é inquestionável, embora aí se deva reconhecer a abertura para superstições etc.). Tal articulação de enunciados dotada de níveis diversos de abstração e de vários recortes da realidade, tendo como objeto a totalidade do ser, em sua intrincada interação efetiva de complexos heterogêneos, é o que Marx chamou de “ciência da história” e se constitui, como qualquer conhecimento, sob impulso de necessidades práticas. É essa a sua empreitada teórica.

23 Ela o faz, notadamente, em sua obra A Condição Humana, em que detalha sua concepção tripartite do homem.

24 Segundo Hobsbawm, Da Revolução, de Arendt, deve ser visto como bom ou mau “não pelas descobertas da autora ou por sua percepção em relação a certos fenômenos históricos específicos, mas pelo interesse de suas idéias e interpretações gerais”, como se podia esperar do livro de uma filósofa. Uma ressalva, no entanto, deve ser feita, segundo o historiador: uma vez que tais generalizações não têm lastro em “estudo adequado da matéria que pretendem interpretar”, o texto consiste em uma trama de “percepções ocasionais sumamente penetrantes”; próprias, porém, “ao terreno difuso que existe entre a literatura, a psicologia e o que, na falta de uma palavra melhor, poderia chamar-se de profecia social”, distanciando-se das “ciências sociais como são atualmente estruturadas.” (p.202). Prosseguindo em sua resenha, o autor afirma, mostrando mais uma vez reconhecer o caráter do texto em exame: “A primeira dificuldade encontrada em Hannah Arendt pelo historiador ou sociólogo dedicado ao estudo das revoluções é um certo matiz metafísico e normativo do seu pensamento, que se combina com um antiquado idealismo filosófico às vezes plenamente explícito” (p.202.). Ver: HOBSBAWM, Eric. “Hannah Arendt e a Revolução”. Em: Revolucionários. São Paulo: Paz e Terra, 2003. pp.201-208.


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