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Márcia Mendonça

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Em coluna

Mephisto no 'Eldorado' brasileiro

Márcia Mendonça - Publicado: Quinta, 14 Outubro 2010 12:55

Márcia Mendonça

Quarenta e três anos após o lançamento de Terra em Transe, o filme de Glauber Rocha, continua surpreendendo não só pela temática ousada e contundente, mas também por permanecer extremamente atual.


Ao expor alguns dos vícios e mazelas da política brasileira, o cineasta baiano o fez de forma ousada, demolidora, radical, através de uma crítica ácida a políticos conservadores, oportunistas e inocentes úteis.

Alegórico, irreverente e visionário, Terra em Transe incomodou os setores dominantes e acabou sendo censurado. Por outro lado, recebeu o Prêmio de Crítica do Festival de Cannes, o Prêmio Luís Buñuel na Espanha e o Golfinho de Ouro, no Rio de Janeiro, todos no ano do lançamento da obra, em 1967.

Eldorado, o fictício (fictício?) país retratado no filme, é e metáfora não só do Brasil, como de muitos países, sobretudo os latino-americanos, duramente atingidos, entres as décadas de 1950, 1960 e 1970, por problemas ligados ao subdesenvolvimento e com elites conservadoras e subservientes aos Estados Unidos. Países que experimentaram golpes de estado e longas ditaduras.

O filme apresenta, discute e problematiza instâncias seculares de poder no Brasil, seja por meio da representação alegórica de um certo populismo, ainda presente em discursos políticos completamente anacrônicos, seja pela crítica ao intelectual de "esquerda" e às instâncias, instituições como a Igreja, a Câmara e o Senado.

Glauber faz uma síntese, um diagnóstico político, cultural, social e religioso de personagens que representam os diferentes extratos e agentes históricos brasileiros presentes em pleno século XXI. Não por acaso desfilam em Eldorado personificações como o ditador Porfírio Diaz, encarnação do caudilho latino-americano, e o nacionalista Vieira, um coronel com verniz urbano. As aparições de Diaz são marcadas pelo uso do manto, do cetro, da cruz e da bandeira, símbolos de um poder arcaico que sobrevive e se mistura ao moderno.

Nos dias atuais, a realidade se mostra ainda mais contraditória, pois o anacronismo, o atraso e o oportunismo se misturam aos mecanismos da contemporaneidade, como o progresso tecnológico, a e dita estética pós-moderna, entre outras "promessas de felicidade" deste século. Daí confusões e retrocessos que voltam a ser estimulados, como a do retorno à unidade entre Estado e religião.

Se para alguns o Brasil/Eldorado é coisa que ficou no passado, como algo datado dos anos 1960, o cenário político atual ainda nos surpreende. Ao lado das muitas conquistas na área social, da redução drástica da fome e da desigualdade social, o país sofre de um sintoma grave, o da crescente evangelização, que, por sua vez, tem esvaziado e desviado assuntos pertinentes, como a descriminalização do aborto, para o âmbito da religião, como o faz a candidata-missionária Marina Silva.

Ao levantar a bandeira da questão ambiental (ecocapitalista) e se colocar contra o aborto, a candidata empreende um discurso hipócrita, despolitiza a questão e parece não querer enxergar que essa prática, mesmo ilegal no Brasil, cresce enormemente a cada dia, induz as clínicas que agem livremente a uma prática proibida, com o acesso às intervenções cirúrgicas restrito às mulheres de classes média e alta. Marina ignora os dados de mortalidade de mulheres que pertencem às camadas baixas e, pior, criminaliza uma prática que é legalizada em países como o México, Canadá, China, Índia, Dinamarca, Cuba, entre tantos outros que souberam separar saúde pública de religião.

Marina retrocede 500 anos. De forma deliberada ou não, acaba agradando a todas as igrejas que, em nome de deus, estimulam a ignorância. Possuidoras de mentalidade e espírito medievais, os templos procuram conquistar a população com discursos que lhes anestesia em nome de um suposto conforto espiritual. Estes templos poderiam, se não fossem tão atrasados e apegados à tradição, promover um amplo e franco debate não só sobre o aborto, mas sobre todas as mazelas enfrentadas pela população mais pobre. Aí, sim, estariam cumprindo o compromisso com a verdade e a seriedade que deveria pautar suas ações.

Em Terra Transe, nem a figura do tão intelectual fugiu ao olhar crítico e demolidor do cineasta. A contradição está presente no personagem Paulo Martins, interpretado por Jardel Filho, um jornalista revolucionário, dono de uma retórica esquerdista e ao mesmo tempo conservadora, como, aliás, acontece com grande parte da chamada intelectualidade brasileira.

Antológica é a cena presente no bloco Encontro do líder com o povo em que, no terraço do líder populista Vieira, presenças díspares desfilam numa festa pretensamente popular. A saber: um padre, um militante a empunhar uma metralhadora, ativistas de esquerda, sambistas, seguranças e uma "figura senatorial, um político de província", que, num dado momento, apresenta o líder sindical Jerônimo como o "representante do povo". Frases de efeito e clichês largamente usados em épocas de campanha.

O que dizer do outrora revolucionário Fernando Gabeira, que se mostra hoje tão convincente em suas posições neoliberais e seu compromisso assumido com o PSDB? Seu PV e o de Marina Silva apresentam um amontoado de propostas que atendem e agradam aos setores dominantes. Radicais no passado, conformistas aburguesados no presente.

Essas personagens glauberianas, que deveriam fazer parte do passado brasileiro, ganham novamente vida e voltam a desfilar, seja no Congresso, com personagens que parecem saídos direto da Casa Grande e ainda pertencem ao passado colonial brasileiro, seja na mídia oportunista e golpista. A mídia deu muito espaço ao Tiririca, o palhaço eleito deputado. Mas quantos deputados palhaços foram eleitos e reeleitos e são levados a sério? Ficção e realidade parecem se misturar no Brasil.

Outro filme, muito oportuno e que merece ser mencionado é Mephisto, do diretor húngaro István Szabó. Baseado na obra "Doutor Fausto", de autoria de Klauss Mann, o filme retrata a ascensão de Hendrik Hoefgen, um ator que permanece na Alemanha após a subida de Hitler ao poder, na década de 1930, tornando-se um símbolo cultural do regime nazista principalmente por sua atuação do personagem Mefistóteles da peça "Fausto", de Goethe, uma das poucas permitidas na época. Hoefgen é um ator ambicioso que quer o sucesso a todo custo, e para isso abandona seus ideais e princípios ideológicos para se tornar o maior ator da Alemanha no período e, posteriormente, diretor do Teatro Nacional Alemão, interpretando peças de propaganda política para o Reich.

A analogia é pertinente na medida em que muitos políticos, tanto à direita quanto à esquerda "esquecem" de seus compromisso éticos, políticos, partidários e, à exemplo do personagem Fausto, "vendem a alma ao diabo".

É o que faz o personagem Hoefgen, no filme, ao travar um pacto com o diabo para ascender como ator na Alemanha nazista. Porém, sua glória é efêmera, e com a anunciada queda do regime, o ator é e abandonado por todos que até então o cortejavam. Seu triste e melancólico fim é resumido na última frase proferida por ele, ao final do filme, "O que querem de mim? Eu sou só um ator".

Mephisto foi rodado nos 80, década marcada pela globalização, pela política neoliberal e pela queda dos regimes do Leste europeu. Ao retratar a trajetória do ator que "vende a alma ao diabo" em troca de "novos valores", Szabó vê nessa nova ordem mundial uma crítica que não está circunscrita somente ao nazismo, mas, sobretudo, aos dias atuais. Ainda em tempos de neoliberalismo, do culto ao "Deus Mercado", a busca pelo lucro a todo custo, o individualismo exacerbado, a vaidade e a ambição desmedidas se constituem no cerne dessa discussão política tão atual.

Os dois filmes, duas obras contundentes, servem como uma luva para reflexões em períodos nos quais a ética e suposta coerência político-ideológica têm sido abandonadas e/ou substituídas por interesses vários. Tudo dentro da mais absoluta naturalidade e ordem. A ordem conservadora, é claro.


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