Passo ao largo da escola onde estudava e vislumbro fugazmente o canto onde eu e outros fumadores, que não sei onde hoje fumarão, fumávamos. Não estarão por cá, pelo interior do país. Ou então camuflaram-se, ou a vida os transformou com as operações cosméticas ou, muito pior, com a domesticação da adultez. Tenho a impressão que o conservadorismo às vezes galopa como os cavalos sobre os jovens, que se vão embora pisoteados. Os poucos que ficam são os que têm empregos, ou os que não têm outro remédio. E como se tem emprego numa cidade assim, senão vestindo o corpo e as ideias com roupas a condizer? Lembro-me de estar a acabar a faculdade e de um amigo me contar que se inscrevera na JS, para arranjar um “empreguinho”. Coitado, entristeci-me pela imbecilidade de um companheiro que, ainda para mais, era um amigo: nem sequer era um emprego, havia ali um inho a denunciar a tarouquice.
Na adolescência, tal como em outras estações do curso da vida, os fumadores encontram-se fora, a um canto, e geralmente é lá que trocam ideias, tão originais quanto banais, vistas agora à distância de alguns anos. Ideias para mudar o mundo, pois claro. Lembro-me dos freaks que ali estavam, anglicismo que traduzia melhor a rebeldia de subculturas globais, em tempos em que a Internet dava os primeiros passos na distribuição para as massas em Portugal, e que soavam ainda os ecos da criatividade do humor de Herman José, num Portugal ainda deserto de humoristas com gabarito nacional. Em 1996, o Herman Zap, satirizava o episódio bíblico da “Última Ceia”[1], recebendo um exasperado e ofensivo retorno em tom de repreensão paternal de instituições e partidos conservadores. Uma das gritantes vozes, espantemo-nos, vinha do hoje candidato presidencial e então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, que via “com preocupação que, num canal com serviço público, se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e de instituições particularmente relevantes como a Igreja Católica”.
Felizmente rir ou fazer rir não é crime, mas as sociedades conservadoras têm outros mecanismos fortíssimos de higienização social, começando pelos pedagogos e pela própria escola, que não nos deixava fumar. E por isso fumávamos mais.
Devagar, no silêncio da chuva, pergunto-me onde foram parar as ideias. Que força tem a cidade que afasta para longe todas as mudanças possíveis, que ali discutiam entre o fumo, com roupas desajustadas, ou cabelos desgrenhados, ou pior que tudo ideias revoltadas. Ideias que levavam para dentro das salas de aula, que se assumiam perante os adultos que nos educavam para anti-ideias. Se antigamente a velha Chica dizia "Xé menino, não fala política"[2], ela hoje ainda ressona, qual banda sonora ajustada a esses cus sentados no conforto preguiçoso da idade, calando jovens que desenham nos cadernos pentagramas, estrelas vermelhas, números misteriosos, que liam nos livros desconhecidos e ouviam nos álbuns de heavy-metal, punk, ska ou de música clássica, por ser ela ainda mais revolucionária que todas as outras, explicavam-se.
Essa pequena massa era apenas homogénea na idade e na partilha da transgressão, mas enorme e disconforme em tudo o resto. Quando vives numa cidade pequena não há como encontrares muitos grupos de jovens diferenciados ou subculturas pelo que, essa heterogeneidade toda, é um pequeno grupo de putos revoltados que não querem aprender a ser adultos.
Aos 16, lembra o Rui Reininho, esse intrépido adolescente que na cabeça, só o cabelo acusa a idade, falta pouco para sentir os 96. Talvez seja na adolescência que mais azo se dá à prazerosa parte da vida e talvez se pense mesmo que salvar o mundo é uma prazerosa arte. Se assim se continuar, com sorte faltará pouco para os 96, porque o que é bom passa sempre rápido.
Conquanto, aos 20 já poucos sabem que o mundo pode ser salvo. Aos 30, os poucos que sobram, já estarão resistentes e manter-se-ão provavelmente afastados da domesticação tradicionalista deste vale bucólico, no Tâmega.
O estatuto social que a idade aufere, sempre me pareceu das mais ridículas diferenciações sociais. Uma professora de História, super conservadora, que diziam tratar os filhos por você, mas que contudo se dava bem com a discussão de ideias, o que é respeitável, dizia que me iria passar com a idade, provocando-me lá do alto dos 50 anos a mim, um miúdo de 17. Como se a idade, per si, fosse detentora de sabedoria. Há animais mais velhos que eu, respondia-lhe, que não conseguem dizer uma só palavra, para lhe contrariar o argumento. A diferença que existe entre os seres humanos comuns e o super homem, será a mesma diferença que entre um ser humano comum e um macaco, parafraseava atabalhoadamente o Zaratustra, de Nietzsche.
Hoje, vendo os putos aprenderem a ser mulheres e homens, sem que se tornem adultos, dou-me razão. Vejo-os na política, na ciência, e também a conduzir camiões, a levar os filhos à escola, a vender e comprar pão, com 20 e 30 e mais anos anos, a lutar contra os adultos do dinheiro conformado, que compra luxos e carros alemães. Vivam os putos, que assumiram o estigma que lhes era colocado, para enfrentarem os betos e os netos das senhoras donas e dos senhores doutores.
Ser adulto é esconder-se das perguntas e das dúvidas que sobressaltam o socialmente correto, dizendo não à mudança. Como naquela história que Savater nos conta, de um proprietário judeu de cavalos de corrida, que chama ao seu cavalo campeão Never Say Die e à sua melhor égua Never Say No (no sentido de renúncia ao prazer). O cruzamento dos dois deu origem a um cavalo ao qual deu o nome de Adolescência. Provavelmente, o seu melhor cavalo de corrida...
Se hoje fumasse, apagava o cigarro adolescente com estas palavras. Como não fumo, deixo o texto esfumar-se na rede, com ganas que incomode mais que o fumo, a alguém por aí.
[1] Herman Zap, no qual se apresentou o quadro da Última Ceia: https://vimeo.com/73539982
[2] Waldemar Bastos, em https://www.youtube.com/watch?v=Kl8mLhXyGis
Foto de Pedro Monterroso