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Pedro Monterroso

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O diabo revisitado

O ato de contrição das classes médias despolitizadas e desinteressadas

Pedro Monterroso - Publicado: Sábado, 18 Outubro 2014 02:00

Oh , não, outra vez os desintegrados, os isolados, os revoltados, os morenos, os gordos, os sem-chinelos e os amarelos, os fora do sistema. Sempre eles! Os que não crescem, não passam da adolescência, não sabem o que querem. São os desempregados, os parados, os frustrados, os desdentados. Não, sempre eles! Porque não são todos brancos, organizados, um metro e oitenta, de classe média educada e sapatos bem cuidados? Porque cheiram, porque arrotam, porque gritam se têm fome. E não os civilizados. Antes os desgraçados, sempre os diferentes, que se queixam, os revoltados.


Que não se integram, sei lá, que se exasperam, enfim... que levantem a cabeça, caramba. O mundo não está para queixas, que se olhem ao espelho e sorriam. Isso. Sim! Atitude positiva! Transformadora, pró-ativa. Ah, esses hiperbólicos mal agradecidos, que rogam pragas ao mundo, ao mundo onde tudo está tão bem, ou poderia estar, não fossem eles.

Não sou racista mas não os suporto, não me ouso opor nem me importo: que se mudem, que se encontrem, que vão deste país, que nasçam noutro lugar, ou então, que nem nasçam, que desnaçam, que se mudem. Não é o que se diz para quem está mal? Pois então, se não estão contentes, não expressem descontentamento, não tragam mau karma, que que quem não expressa o seu descontentamento, é como se não o tivesse. Que assumam a culpa, a frustração e deixem o mundo ser feliz. O mundo: de gente alegre, sem culpa, que o aceita, que vai à missa, que crê em deuses e tabuadas e economia, que sabe que tudo vai melhorar senão agora, algum dia. Outro dia.

Tenham a responsabilidade de se mudar, de não esperar que o sistema mude, porque-sempre-foi-assim-não-é, de aceitar o acaso como ele é. Aceitação. Um livro de auto-ajuda. Mais um. Não interessa. Tem um pássaro na capa a voar sobre as nuvens? Ótimo! Mais uma sessão de yoga, para aliviar. Mais um produto bio para sarar. Deita fora o cigarro que te estás a matar. Deita fora a chiclete que te causa úlceras no estômago. Uma corrida pela manhã, para manter o corpo ideal, saudável, forte, como manda o doutor formado na faculdade. Não vês tu no Facebook como tudo está bem? Como as pessoas riem com as piadas que leem, como são fofos os animais que têm. E os namorados, as relações e os corações?

Só está errado, no sítio errado, na hora errada, quem tem azar. Esses que se ajudem a si mesmo, afinal cada um é responsável por si. Eu, tu, ele. Nunca nós, nem vós. Não falemos de plurais quando falamos de seres individuais. O mundo, ninguém tem culpa de ser como é. Vai às prateleiras da Fnac, da Bertrand, de qualquer livraria que venda livros, novinhos em folha, compra um livro do Paulo Coelhos, do Osho, ou do Tolle, que são bons. Tudo é julgado pelo mercado: são dos mais vendidos, então é verdade. Têm capas que sugerem a paz, para quê guerras? De preferência também uma flor. Iluminada, um símbolo sacro, já sei, um anjo! A paz interior. A exterior não há como mudar, afinal o-mundo-é-como-é, já não tinha dito? Não o podes salvar. Ninguém o pode.

A violência só leva à violência. Vê mais um vídeo, ouve mais um líder motivacional a falar no TED, com maravilhosas ideias para te salvar. Tu és extraordinário, se tu o queres, se tu o desejas. Sê a transformação que queres ver no mundo, isso, repete muitas vezes a mentira para ser verdade! O mundo que existe és tu e nada mais. Vá, deixa-te de lamechices, com o mal dos outros vive-se bem, é só pensar como eles estão mal, para ver que estás bem. Energia positiva vá, faz pilatos, uma massagem de pedras quentes, cinquenta euros no spa do vizinho. Está atento aos sinais! Compra mais uma essência, uma música  tibetana para o iPhone e desliga-te da política: são todos iguais. Lê alguma coisa de quem sabe, de preferência de alguém com um título de Dr., formado numa universidade qualquer nos Estados Unidos, que perceba de ciência, de religião, de finanças e conspiração, de tudo. Faz um crédito, arrisca, compra a casa dos teus sonhos. Compra uma viagem para as ilhas desertas não sei onde, compra, arrisca com o pouco dinheiro que tens para fazer muito. Arrisca com a mulher que não tens, procura o verdadeiro amor e, se não tiveres, acredita que vais ter e fica com a tua namorada que para já é a melhor que tu tens. Compra um carro novo, de acordo contigo, uma roupa que te faça bem, te traga boas energias, que condiga com o teu estado de espírito. Lembra-te que o bem atrai o bem e que  o mal atrai o mal, lembra-te então que se estiveres mal, tens de parecer bem que é para trocares as voltas ao cosmos e continuares bem. Sorri. Compra uma bicicleta, uns dentes novos e corta bem o cabelo. Sorri. Sê simpático porque ninguém tem culpa da tua má disposição e não passes energias negativas. Vá, liga o computador, vai ao Amazon e compra algo que acalmas.

E por fim, deixa que a noite chegue. Que a vida passe e tu também. Deita-te no sofá e adormece. Mereces estar bem porque este é o melhor dos mundos, e não se sabe quem, é o que deus nos deu e é assim, vem. Agradece. Sessão de reiki, rejuvenesce. Procura a paz interior e não te queixes. Pensa nas oportunidades que tens, na saúde que tens e se não tens, liga a TV para adormecer, as notícias da Síria, da Palestina, da Ucrânia. Vá, é um bom soporíforo para viver, que o importante é sentires-te feliz por não dizer. Não revoltar, não contradizer. E por fim, se não estás feliz, senta-te à beira-rio, agradece ao todo poderoso, num ato de contrição, porque a culpa nunca poderá ser tua, por o mundo ser o que é.


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