Não deixa indiferente pela sua beleza, pela simpatia e vitalidade do seu povo, como também não deixa indiferente a sua complexa sociedade baseada no sectarismo religioso, a sua violenta e dramática história e as profundas pegadas que esta tem deixado por todo o lado.
Beirute, a capital deste pequeno país, é o melhor paradigma dos contrastes que criam uma identidade única e muita particular no contexto do Meio Oriente e do Mundo Árabe.
A sociedade libanesa é uma sociedade muito ocidentalizada e muito aberta no seu contexto geográfico e cultural. No entanto, baseia-se num sistema político conservador e reflexo da realidade multiétnico-religiosa: muçulmanos sunitas, muçulmanos xiitas, cristãos (maronitas, gregos católicos, gregos ortodoxos, arménios,...), drusos e alguma outra minoria como a judia. 4.224.000 habitantes aos quais devemos somar uma última realidade, o de última em todo o seu amplo sentido, a de mais de 400.000 refugiadas e refugiados palestinianos. “Apátridas” sem qualquer direito básico reconhecido.
Esta pequena crónica não pretende aprofundar em análises históricas ou sócio-políticas mas apenas abrir uma janela sobre Beirute, a capital libanesa.
A “Paris do Meio Oriente” como era conhecida Beirute na chamada “Idade Dourada” libanesa, (na década de 1960 até 1975) é hoje uma cidade ainda em reconstrução.
Como magnificamente cantou a “embaixadora das estrelas” a grandíssima cantora libanesa e árabe Fairuz: “apagou a minha cidade a sua candeia , fechou a sua porta e ficou pela tarde sozinha, sozinha com a noite”. Uma noite de 15 anos de destrutiva guerra civil que modificou para sempre a fisionomia da capital libanesa.
As marcas visíveis da guerra ainda estão muito presentes nos prédios, na estruturação urbana, ... As marcas invisíveis, as dos corações dos participantes activos e passivos (a totalidade do povo libanês) essas dificilmente poderão ser reconstruídas.
E o fantasma da guerra está sempre presente, lembremos a crise acontecida há só dois anos entre o governo e Hizbollah, que trouxe os disparos novamente às ruas beirutis, ou a continua ameaça do terrorismo sionista. Sem irmos mais longe no sábado aviões israelitas violavam o espaço aéreo libanês, algo que se está a tornar comum, e sobrevoaram Beirute.
Para podermos visualizar o que significou a guerra na cidade, é interessante observarmos a evolução da Praça dos Mártires, o antigo agitado centro, cheio de cafés, cinemas, teatros,... de vida. Ainda hoje um espaço semivazio que continua a dividir Beirute Este (cristão) de Beirute Oeste (muçulmano).
A baixa da cidade num processo muito avançado de (re)construção coloca um novo Beirute de lojas chique, restaurantes requintados e sedes bancárias exemplo do capitalismo brutal que caracteriza o país.
Grande quantidade de carros particulares, muitos de luxo e as buzinas incansáveis dos táxis (quase único meio de transporte na cidade) só interrompidas pelo adhan (chamada para a oração) das mesquitas de Hamra ou os sinos das igrejas de Achrafieh.
Beirute já teve uma rede de autocarros urbanos e o Líbano uns caminhos de ferro que comunicavam a capital com Trípoli (norte), Damasco e Haifa (Palestina). Hoje os comboios são também parte da história.
Esse novo Beirute convive com ruínas e restos de metralha, com a velha propaganda política de hoje e de sempre e uma grande presença militar, especialmente à volta das sedes do governo libanês.
Este último elemento faz-se rapidamente quotidiano, sobretudo pela naturalidade com que os libaneses convivem com polícias armados com metralhadoras em cada rua, com checkpoints e manobras militares em ruas do centro.
Tudo lado a lado com a sempre alegre e imparável noite beiruti e um trânsito autenticamente maluco. E neste ambiente intenso e contrastado a vida é surpreendentemente aprazível.
Beirute tem mais do que bem merecido o apelativo de “cidade que nunca se rende”.
Ângelo Meraio
Beirute, 20 de Abril de 2010