A terrível transferência de riqueza de baixo para cima nas três últimas décadas, junto à sobreprodução e o hiperconsumo, a radical desregulamentação fiscal, laboral e ambiental, a terrível queda de impostos aos mais ricos e a irresponsável "desmaterialização" da economia, com imaginativos fenômenos como a financiarização e a alavancagem financeira, ou acesso singelo ao crédito, só podia ter como resultado o colapso deste modelo fundamentalista de mercado. Este não foi capaz de se autorregular nem um pouco que fosse, como defenderam em seu dia aqueles golpistas de luva branca que davam pelo nome de Chicago Boys.
Porém, quem olhar além de seus próprios interesses também sabe que a crise não é só económico-financeira, mas poliédrica, de modo que, talvez, a financeira é a menos doente das suas múltiplas aristas. Também é uma crise ecológica, uma crise alimentar, uma crise de acesso à terra e aos recursos naturais, uma crise energética, uma crise de direitos humanos -entre os que podemos incluir a democracia no seu sentido mais amplo- e sobretudo uma crise de desigualdade.
Esta última é sem dúvida a que está a dar combustível os acontecimentos políticos mais destacáveis das últimas semanas no planeta, as revoltas nos países árabes, que configuram pela vez primeira uma nova crise, a política, como apontava estes dias Fidel Castro. Uma crise que está a surpreender os ideólogos neocons, porquanto assistem a rebeliões nas ditaduras árabes amigas, em algumas "democracias" da Europa intervinda, como a grega, islandesa ou mesmo a italiana -e as que vão vir- e não na "ditadura interminável", como chamam em "Libertad Digital" ao sistema político cubano, que por outra parte nunca se disfarçou de suposta democracia, consistindo num governo de economia planificada enfrentado faz décadas aos sistemas de governo de livre mercado, de modo que deve ser muito cuidadoso nas suas manobras políticas. Eis a chave.
A politóloga iraniana Nazanín Amirian, sem dúvida de critério mais fiável que os "todólogos" das tertulias televisivas, afirma que "a sublevação da Tunísia, Egipto, Argélia e Iémen têm a mesma natureza que o Movimento Verde de milhões de iranianos, que em 2009 se alçaram contra o abuso do poder, a tortura, o neoliberalismo e o desemprego". É verdade que na Tunísia, Iémen ou Egipto -também na Jordânia ou mesmo em Marrocos" coincidem mandatários, bem autoritários ou totalitários em simultâneo, que levam muitos anos governando, mas com o inestimável apoio ocidental aos seus disfarces democráticos. Porém, o detonante fundamental está sem dúvida em modos de governar que esqueceram por completo a redistribuição da riqueza. Esta é a diferença fundamental, daí que as revoltas comecem por onde começam.
O pior de todo isto é que as ânsias dos movimentos árabes contra o seu também intermináveis governos não parecem passar pela emancipação, por se libertarem de ditaduras, mas por mudarem reigmes políticos autoritários ou totalitários por regimes económicos da mesma ordem, que são os que nos governam a nós próprios.