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Veneza Paulo Pinto Fotos PúblicasItália - Opera Mundi - [Janaina Cesar] Com 74 mil visitantes diários — um terço a mais do que o número de venezianos —, cidade sofre com perda de identidade cultural e miopia de políticas públicas


Quem em sã consciência conseguiria imaginar que um dos lugares mais lindos e românticos do mundo estivesse mor­rendo? A teatralidade espetacular de Ve­neza está sendo devorada e a cidade es­tá se transformando em uma espécie de Disneylândia italiana, onde tudo é feito e pensado para o turismo, apenas para su­as necessidades e exigências.

Os impactos na cidade são diversos: a gradual transformação do tecido urba­no e comercial; a expulsão dos venezia­nos originários por falta de políticas pú­blicas em emprego e habitação; ou ainda a destruição do Canal Grande para facili­tar a passagem dos monstruosos cruzei­ros marítimos — que, em proporção e ta­manho, fazem Veneza se sentir pequena.

Somente no ano passado, Veneza re­cebeu, segundo dados da Secretaria Mu­nicipal de Turismo, cerca de 27 milhões de visitantes, algo como 74 mil por dia. O número é bem maior do que os 36 mil tu­ristas diários, quantidade indicada como limite pelo professor e pesquisador Paolo Costa, ex-reitor da Universidade Ca'Fos­cari, autor do trabalho "Um modelo line­ar para a programação do turismo: sobre a capacidade máxima de acolhimento do Centro Histórico de Veneza" (em tradu­ção livre).

Para o acadêmico, ir além deste núme­ro seria devastador para a cidade, tida como uma das mais frágeis do mundo e que, desde 1987, faz parte do patrimônio histórico mundial da Unesco (órgão da ONU para Educação, Ciência e Cultura).

Para enfrentar a questão, surgiram propostas mirabolantes — e rejeitadas pelo poder público — como restringir o acesso à cidade com um número fecha­do de visitantes por dia e divulgar ou­tros campos (praças venezianas) para ti­rar o fluxo dos principais pontos turísti­cos da cidade.

A única ideia que o governo local topou foi a criação de uma taxa de turismo, es­tipulada em 3 euros por dia. No entan­to, como a cobrança é paga diretamente no hotel, ficam de fora da arrecadação os milhões de turistas que, embora passem o dia desfrutando da beleza de Veneza, não pernoitam na cidade.

Ciao, ciao Venezia

Em pleno contraste com a invasão de turistas, Veneza nunca teve tão poucos habitantes como agora. E pior, o número tende a diminuir. Hoje vivem na cidade 56 mil pessoas, quantidade bem inferior aos 98 mil que sobreviveram à epidemia de peste bubônica em 1631.

Segundo as últimas estatísticas mu­nicipais, a cada ano cerca de 1.000 mo­radores deixam a cidade e, se o esvazia­mento continuar, em duas décadas, não haverá mais venezianos na Laguna — no­me afetuoso que a cidade-lagoa recebeu de seus amantes.

Para chamar atenção ao problema, o farmacêutico Andrea Morelli, 57, fez al­go inusitado: instalou em uma vitrine da farmácia um contador luminoso regres­sivo que indica o número de habitantes de Veneza. "Este problema tinha que sair do gueto e ser escancarado aos quatro cantos do mundo", explicou.

Fuga de jovens

Sem perspectiva de trabalho, os jo­vens são os primeiros a deixar a cidade. "Muitos vão embora porque, além de não encontrarem um trabalho que não seja ligado ao turismo, não acham imó­veis com aluguéis acessíveis", assinala Tommaso Cacciari, ativista do Labora­tório Ocupado Morion. E completa: "Os valores praticados pelo mercado imobi­liário são impensáveis para um jovem precarizado".

Para ele, há duas raízes para o proble­ma da falta de moradia para os jovens lo­cais. De um lado, as casas particulares fo­ram sendo transformadas em pequenos hotéis ou em alojamentos para turistas. Do outro, há uma enormidade de resi­dências abandonadas pela Prefeitura lo­cal. Por serem antigas, não podem pas­sar por reformas de adequação para se ajustar aos parâmetros mínimos de se­gurança — reformá-las custaria uma for­tuna aos cofres venezianos, dinheiro que as autoridades não possuem em meio à política de austeridade em voga desde a crise de 2008.

Território envelhecido

Com a saída dos mais jovens, Veneza está se tornando um território envelhe­cido: a idade média dos venezianos é de 50 anos, segundo dados da Prefeitura.

Quem fica por lá, sofre com as mu­danças do local. "Veneza não foi pen­sada para os mais velhos, é uma cida­de sem serviços, que exclui quem atin­ge certa idade. Basta pensar que aqui tu­do é feito a pé. Para ir de uma calla [rua] a outra é preciso atravessar uma ponte com escadas; e bem poucas têm rampas de acesso para cadeiras de roda ou carri­nhos que ajudam os idosos a se locomo­ver", diz Morelli.

Para Salvatori Settis, escritor italiano e autor do livro Se Veneza morre, é a fal­ta de reação dos venezianos que preocu­pa. "Falta uma comunidade crítica e ati­va que não seja serva do turismo. Exis­te uma vontade de mudança, de ruptura com os paradigmas atuais, mas ainda é muito silenciosa", afirma.

"Veneza está perdendo a identidade cultural, está em guerra com sua histó­ria. Se o presente esquecer o passado, aí sim tudo estará perdido", reforça Settis.

A supressão da essência veneziana também está ligada ao enfraquecimento do tecido produtivo local, que fez desapa­recer, por exemplo, as tradicionais ofici­nas artesanais que produziam máscaras e vidros — produtos que agora são co­mercializados na cidade por meio de im­portações made in China.

Navios de cruzeiros

"Hoje ficou muito fácil economica­mente fazer um cruzeiro por aqui. Tan­to, que a cidade virou destino preferido para quem faz esse tipo de viagem", assi­nala Tommaso Cacciari, que também mi­lita na ONG Não-Grandes navios, comi­tê que luta contra a passagem dos gigan­tescos cruzeiros pelos canais de Vene­za. Com a popularização dos pacotes de cruzeiros, uma viagem marítima de oito dias, partindo de Veneza, sai por cerca de R$ 1.500.

O problema, segundo Cacciari, é que, para satisfazer os olhos de quem sempre sonhou com tal viagem, as companhias não hesitam em fazer passar as enormes embarcações pelo Canal Grande, causan­do graves danos a uma das regiões cen­trais do polo turístico.

Estudos feitos no local revelam que os grandes navios produzem enormes mas­sas de água que geram intensas ondas e acabam empurrando a água para os ca­nais mais internos. Esse movimento cau­sa danos às fundações de edifícios e le­vanta quantidades de sedimentos que ca­vam ainda mais a pista por onde passam os grandes navios. E tudo isso ajuda o fe­nômeno da água alta em Veneza. No ano passado, os navios de cruzeiros tinham sido impedidos de passarem pelo Canal Grande, mas uma decisão da Justiça ita­liana derrubou a liminar.

Veneza sob intervenção

Desde junho do ano passado, os vene­zianos sentiram-se ainda mais abando­nados pela classe política, após o pre­feito Giorgio Orsoni renunciar ao man­dato. O político era um dos envolvidos no escândalo de corrupção da megaobra MoSE (módulo experimental eletrome­cânico, na sigla, em italiano), sistema de diques móveis construídos no mar para frear as inundações regulares na cidade.

Para substituir o ex-prefeito e colocar em ordem o caixa da cidade, o escolhi­do foi Vittorio Zappalorto, que assumiu o controle da cidade com ares de xerife mandado pela Troika.

A reportagem de Opera Mundi tentou, em diversas ocasiões, entrar em contato com o chefe interino do Executivo muni­cipal, mas, segundo a assessoria de im­prensa da Prefeitura, "o comissário não fala sobre aspectos de importância polí­tica porque poderiam ter um impacto so­bre as escolhas do próximo prefeito".

Se Zappalorto não fala com a impren­sa, quem fala é o Comitê dos Trabalha­dores Auto-organizados do Município de Veneza, organização criada pelos funcio­nários públicos locais em defesa da ma­nutenção dos direitos.

Analisando o balanço financeiro anu­al referente a 2014, a ONG denuncia que cortes no valor de 47 milhões de euros foram feitos no orçamento de Veneza — cultura e serviço social foram as áre­as mais atingidas. O comissário só não conseguiu arrochar os salários dos em­pregados públicos porque os ativistas se mobilizaram e pressionaram contra os cortes.


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