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161214 caveiraResistir - [Rémy Herrera] Propomos aqui ao leitor uma série de reflexões sobre as evoluções recentes das relações Norte-Sul e Sul-Sul.


Para isso, partiremos de um facto incontornável, a hegemonia militar dos Estados Unidos, e de uma tendência, ligada à duração e à gravidade da crise sistémica actual, para o agravamento da confrontação entre o Norte e o Sul. Depois examinaremos a amplitude e a profundidade das recentes experiências de regionalizações alternativas e de avanço sociais na América Latina, antes de interrogar a pertinência da reaproximação, ou da reconexão, do continente latino-americano com a Ásia e a África, desenrolando o fio da Tricontinental até a uma eventual "extensão" destas regionalizações radicalmente novas para os continentes asiático e africano. No momento actual, os povos do Sul, e também do Lete, puseram-se em movimento. A importância deste acontecimento é amplamente e voluntariamente subestimada pelos media dominantes dos países do Norte, mas deve reter a atenção dos trabalhadores que desejam melhorar a natureza as relações que seus governos mantém com o Sul e o Leste e construir um "mundo melhor", portanto multipolar e justo. 

UM FACTO INCONTORNÁVEL: A HEGEMONIA MILITAR DOS EUA 

Para os países do Sul – e do Leste –, o contexto actual é extremamente difícil em primeiro lugar e sobretudo devido à hegemonia global incontestada dos Estados Unidos no plano militar. Apesar de situado atrás da China e da Índia, o efectivo dos diferentes corpos das forças armadas estado-unidenses no seu conjunto ( Army, Navy, Marine Corps, Air Force ), incluindo aquelas em actividade no território nacional metropolitano ( Continental United States ), ultrapassavam oficialmente 1 430 000 militares no fim de 2010, segundo dados do Ministério da Defesa dos EUA ( Active Duty Military Personnel Strengths by Regional Area and by Country 309A ). Mas o esforço de guerra efectuado em várias frentes implicaria muito mais pessoal. 

Bases militares e soldados estado-unidenses no mundo 

Os efectivos militares estado-unidense diminuíram fortemente logo após a explosão da URSS e do bloco soviético em 1991, para aproximar-se em 2000 dos 1 384 000 soldados. Os acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 travaram este recuo e, desde 2002, estes efectivos foram reorientados em alta, até exceder os 1 425 000 em 30 de Setembro de 2011. A isto acrescentam-se 770 000 empregados civis do Ministério da Defesa dos Estados Unidos. O número de pessoas que servem nas forças armadas e não têm a nacionalidade estado-unidense duplicou em cinco anos e atingiu cerca de 60 000 soldados em 2010. Esta inflexão desde 2001-2002 deve-se sobretudo à evolução do pessoal militar activo fora do território nacional, pelo que a proporção nos efectivos globais aumentou brutalmente com o desencadeamento das guerras contra o Afeganistão (2001) e o Iraque (2003), passando de 16,3% para 30,4% entre 2001 e 2003. Em 2007, esta parte ultrapassou mesmo os 39,0%, ou seja, mais do que em qualquer outro momento da história dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. No auge da guerra do Vietname, esta proporção não excedia os 36,0% (1967). Dois anos após a retirada do Iraque e da relocalização das tropas no Afeganistão, em 2010, a parte do pessoal militar activo no estrangeiro era de 34,9%, ou seja, mais que durante a guerra da Coreia (34,2% em 1954) ou que no fim da Guerra Fria (29,8% em 1990). 

Além de serem incompletas, as informações fornecidas pelo US Department of Defense não poderiam ser analisadas sem acrescentar as tropas estado-unidenses directamente implicadas nos conflitos do Iraque e do Afeganistão. Estas últimas são efectivamente contabilizadas à parte, num documento anexo disponível somente desde 2004 ( Deployments (not complete) ), o qual regista os efectivos militares deslocados no quadro das operações Iraqi Freedom (OIF, a partir de Março 2003), depois New Dawn (OND, a partir de Setembro 2010) no Iraque e Enduring Freedom (OEF, desde Dezembro 2004) no Afeganistão. 

Uma primeira estimativa do total dos efectivos das forças armadas estado-unidenses deslocados no mundo em 30 Setembro 2011 é dada adicionando aos 201 167 militares estacionados no território nacional fora do Continental United States (Alasca, Havai, Guam, Porto Rico…) e aos 205 118 outros soldados presentes em países estrangeiros, incluindo ai 59 680 "não repartidos", as tropas empregues no Iraque (92 200 militares no fim de 2011) e no Afeganistão (109 200 na mesma data), ou seja, 548 105 soldados. Este número deve ser revista em alta. São desejáveis reajustamentos para aproximar da realidade os efectivos contabilizados pelosActive Duty Military Personnel Strengths. O pessoal das forças armadas e serviços de informação implicados nas acções secretas é difícil de avaliar, mas provavelmente elevado. Tendo em conta esta dificuldade, optaremos por proceder a um ajustamento complementar, externo aos efectivos das forças armadas estado-unidenses propriamente ditas e relativo aos agentes das sociedades militares privadas que apoiam as intervenções das forças regulares. Estas sociedades privadas actualmente impõem-se como actores importantes na maior parte dos lugares de conflitos por todo o mundo; inclusive para o próprio Pentágono, que se tornou seu cliente principal. 

As guerras travadas no Iraque e no Afeganistão constituem exemplos da ascensão das actividades destas sociedades, em que a sua utilização pela administração estado-unidense é generalizada. Estes dois países são os terrenos de acção do "novo mercado da guerra" e de mercenários encarregados de missões tácticas. Assim, o número de agentes mobilizados por estas sociedade militares privadas poderia ser de 186 000 no Iraque (número disponível para 2008) e de 110 000 no Afeganistão (2009). Se estas estimativas forem fiáveis, os efectivos de agentes empregado por estas sociedades privadas teriam ultrapassado os das forças armadas dos Estados Unidos tanto no Iraque como no Afeganistão. Os mercenários estado-unidenses a participarem nos combates no Iraque seriam mais numerosos que os seus compatriotas a servirem nos corpos dos Marines , da Navy e da Air Force ; ao passo que o número daqueles empenhados na guerra do Afeganistão em 2009 teria excedido o dos soldados estado-unidenses adstritos à força aérea e à marinha. 

Propomos portanto dois reajustamentos possíveis, consistindo em incorporar ao cálculo dos efectivos militares estado-unidenses em actividade no estrangeiro o pessoal destas sociedade militares privadas envolvido nas guerras do Iraque e do Afeganistão (hipótese baixa) ou no mundo (hipótese alta), supondo um número médio de agentes privados de 100 a trabalhar em cada uma das 930 bases militares situadas fora do Iraque e do Afeganistão oficialmente reconhecidas pelo Departamento da Defesa. Sob a primeira hipótese, nós nos situaríamos em cerca de 843 200 pessoas, ou seja, um nível comparável àquele do tempo da intervenção no Vietname (entre os 832 364 militares além-mar em 1965 e os 875 432 em 1970). Sob a segunda, estaríamos, com mais de 935 700 pessoas afectadas em 2011, acima do recorde histórico do pós Segunda Guerra Mundial (927 851 soldados estado-unidenses em missão no exterior). 

Mas onde estão disseminados? E de quantas bases militares os Estados Unidos dispõem hoje no mundo? O US Department of Defense divulga informações relativas às bases dos EUA no mundo ( Base Structure Reports ). Em 2011, como vimos, o Ministério da Defesa reconhecia a existência de 930 bases, numa trintena de países estrangeiros e uma dezena de territórios não continentais dos EUA. A repartição destas bases mostra dentre os países mais destacados a Alemanha (194 bases), o Japão (119), a Coreia do Sul (82), o Reino Unido (33), Portugal (21), a Turquia (17), ... Estimativas do número de instalações (em torno de 70) utilizadas pelos EUA no Afeganistão e no Iraque, que não fazem parte desta lista, conduziriam a uma rede mundial de aproximadamente 1000 bases, ou seja, quase tanto quanto durante a fase de extensão máxima a guerra do Vietname. 

Evidentemente, as informações das Base Structure Reports minimizam o número de bases estado-unidenses, por várias razões. Os dados estatísticos estão em falta para numerosos países (somente cerca de 40 Estados independentes são contabilizados). A título de exemplos para 2011, citemos a Itália (a qual acolheria pelo menos 50 bases), Cuba (onde, desde 2001, a base de Guantánamo serve de lugar de detenção para centenas de prisioneiros de guerra do Afeganistão), Honduras (na qual não está integrada a base de Soto Cano, contudo em funcionamento durante o golpe de Estado de 2009), mas também o Qatar (pelo menos 9 bases)... Nos outros países, o número de instalações é subestimado: no Kuwait (apenas 1 base referenciada), na Colômbia (oficialmente 7), na Turquia... Certos países que acolhem bases militares dos Estados Unidos não são mencionados nestes documentos oficiais: Israel (pelo menos 5 bases em actividade), Filipinas (mínimo de 2) ou na ex-União Soviética. 

Efectuando as correcções exigidas sob hipótese minimalista – pela integração apenas das instalações mencionadas – e considerando uma hipótese média realista (de 180) para o número de instalações utilizadas no Iraque e no Afeganistão, chegamos a um total geral de bases militares estado-unidenses no mundo que em 2011 ultrapassa 1 150; ou seja, mais do que no ponto histórico mais alto registado desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1946). Isto, sem sequer falar das bases secretas. O meio milhão de soldados estado-unidenses disseminados nesta vasta rede de 1 150 bases militares pode também contar com as facilities militares postas à disposição pelos seus aliados do Norte, nomeadamente no quadro de operações conduzidas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ou em aplicação de outros acordos internacionais. 

O apoio dos outros países do Norte e a tendência à confrontação com o Sul 

Na rede de instalações que cobre todo o globo, o país da União Europeia mais estreitamente integrado ao dispositivo militar estado-unidense é o Reino Unido. Aspermanent joint operating bases britânicas estão localizadas em pontos estratégicos: extremidades ocidental e oriental do Mar Mediterrâneo (Gibraltar, Chipre), Atlântico Sul na proximidade do Estreito de Magalhães (ilhas Falkland), no meio do Oceano Índico (Diego Garcia). Esta rede é completada pela base da ilha de Ascensão no Atlântico e pelas instalações situadas em Singapura (à disposição das forças britânicas e de seus aliados). A implantação mais numerosa do Reino Unido é em Chipre, com um efectivo que se aproxima dos 3 000 soldados estacionados em permanência, ao passo que a Royal Navy está presente ao longo das costas cipriotas. O British Indian Ocean Territory de Diego Garcia é tão estratégico, nomeadamente para o acesso aos teatros de operação na Ásia, que a utilização das suas instalações foi cedida à US Air Force em 1966. 

Quanto às forças armadas francesas, as activas instaladas no resto do mundo compreendem três tipos de forças: "de soberania", dispersas nas colectividades que fazem parte do território nacional da França; "de presença", posicionadas em África, nas zonas marítimas dos Oceanos Índico e Pacífico e, mais recentemente (fim de 2009), na península arábica; finalmente, "operações externas", a título nacional (no continente africano, no essencial) ou multinacional (em quase todas as regiões). O dispositivo de controle militar posto em prática pela França situa-se numa faixa horizontal que cobre toda a circunferência do globo. Sem dispor de uma rede de amplitude comparável, outros países europeus também oferecem aos Estados Unidos pontos de apoio estratégicos: a Espanha (ao longo das costas marroquinas, com as ilhas Canárias, e à entrada do estreito de Gibraltar, graças aos enclaves de Ceuta e Melilla), Portugal (com os Açores e Madeira), a Itália (com as ilhas ao largo da Tunísia), a Grécia (Sauda), a Dinamarca (Gronelândia) ou os Países Baixos (com suas possessões caribenhas, Aruba, Curaçao e os conjuntos insulares das Antilhas holandesas que barram o Mar das Caraíbas desde o Norte das costas venezuelanas até o Leste de Porto Rico). 

Na outra extremidade do globo, a Austrália e a Nova Zelândia também desempenham um papel chave. À medida em que as bases estado-unidenses se foram reposicionando na direcção da Ásia, a Austrália tornou-se um aliado fundamental. Sua esfera de influência cobre o Pacífico Sul, assim como, no Sudeste da Ásia, Timor Oriental. A aceitação desta zona pelos outros países da triade não exclui rivalidades e tensões – nomeadamente com a França que tem possessões na região, ou o Reino Unido que mantém influência sobre suas antigas colonias. Esta missão de "polícia regional" é assegurada em parceria com a Nova Zelância, cujos interesses próprios situam-se sobretudo na Polinésia. Os Estados Unidos sujeitam o conjunto através de um gigantesco arco de círculo, para além do Hawai, dos atols Johnston, Wake e Midway sob administração militar e das Line Islands, graças ao controle sobre Palau, Guam, federação da Micronésia, Commonwealth das Marianas do Norte e as Samoa americanas. 

A vastidão do sector da defesa na economia estado-unidense não poderia ser subestimada. Hoje, as despesas militares da hegemonia mundial situam-se próximas dos 6% do PIB. Qualquer que seja o critério de militarização considerado, ressalta uma superioridade total dos Estados Unidos tanto em relação a seus aliados do Norte como a seus rivais do Leste e do Sul (Rússia, China, ...). Isso entretanto não quer dizer que saiam seguramente vencedores das guerras em curso (ou daquelas a vir: Síria, Irão, mesmo China?). Parecem reunidas as condições para que uma das consequências mais graves da crise sistémica que vivemos seja a aceleração da drenagem de capitais internacionais pelos Estados Unidos e o agravamento da confrontação Norte-Sul. Hoje, crise capitalista e guerra imperialista estão imbricadas. Elas assim estão sobretudo porque a guerra está integrada no ciclo, economicamente, enquanto forma extrema de destruição de capital, mas também politicamente pela própria reprodução das condições de manutenção do comando da alta finança – fracção dominante das classes dominantes – sobre o sistema mundial. O assalto que nos EUA os oligopólios financeiros lançaram sobre o complexo militar-industrial assegurou-lhes um controle do sector. Neste processo, o papel do Estado foi determinante para o capital – pois é este que entra em guerra por conta daquele. Sifonagem de recursos mundiais e utilização da força armada participam da mesma lógica, ao passo que a multiplicação das intervenções armadas travadas sob a condução dos Estados Unidos, directamente (por exemplo, no Iémen, onde o Pentágono e a CIA foram convidados pelo presidente Obama a colaborar) ou não (por intermédio da NATO, como na Líbia) exacerbam sempre mais as contradições internas do sistema capitalista. A situação presente assemelha-se menos ao começo do fim da crise do que ao começou de um longo processo de degradação da etapa actual do capitalismo financiarizado, a qual abre perspectivas de transição e insta a interrogações sobre as alternativas de transformações pós capitalistas. 

A AMÉRICA LATINA: NOVA INDEPENDÊNCIA E AVANÇOS SOCIAIS 

O espírito de uma "segunda independência" sopra hoje na América Latina. Ele é sentido nas experiências de regionalizações alternativas registadas desde há mais de uma década, assim como nos avanços de forças progressistas ao nível nacional e da solidariedade ao nível internacional. 

As regionalizações alternativas: a "segunda independência" 

A marcha rumo à união dos países latino-americanos experimentou etapas decisivas desde o princípio da década de 2000. Uma primeira vitória foi a rejeição do projecto ultra-liberal estado-unidense da Zona de Livre Comércio das Américas (ALCA), pela convergência de mobilizações populares das sociedades civis e a posição comum de resistência adoptada, apesar das suas diferenças, pelos governos progressistas do continente. A estocada contra a ALCA foi dada aquando da Cimeira de Mar del Plata em 2005, durante a qual os Estados do Mercado Comum do Sul (Mercosul, reunindo Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguais e Venezuela) disseram não às ambições de dominação de Washington. Um segundo avanço foi o lançamento quase simultâneo do ALBA (Alternativa bolivariana para os povos da nossa América) por Cuba e pela Venezuela – fim de 2004. É no seu seio que hoje está desenvolvida toda uma série de missões sociais destinadas a melhorar as condições de vidas dos povos, nos domínios da saúde, da educação, da alimentação, da habitação... Voltar-se-á ao assunto. Em paralelo, foram lançadas várias iniciativas regionais, como a criação de um Banco do Sul (BancoSur) ao qual estão associados dois pesos pesados do continente, Brasil e Argentina, mas também, desta vez no quadro do ALBA, o acordo instituindo um novo sistema de unidade de conta entre países membros, o "Sucre". 

No fim de 2004 foi assinada também a "Declaração de Cuzco", que preparava a criação de uma nova organização supranacional que deverá reunir os cinco países do Mercosul: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela, já citados, os membros da Comunidade Andina das Nações: Colômbia, Peru, Equador, Bolívia, Chile (que permanece muito ligado aos Estados Unidos), mas a Guiana e o Suriname. A União das Nações Sul-Americanas (UNASUR), reunindo 12 países da América do Sul, foi lançada em meados de 2008, em Brasília, com o objectivo de criar uma moeda, um passaporte e um parlamento comuns. O "Grupo do Rio" começa igualmente a desempenhar um papel importante, nomeadamente na resolução de conflitos regionais, como foi o caso, por exemplo, em Março de 2008, quando uma guerra entre a Colômbia, por um lado, o Equador e a Venezuela, por outro, foi evitada in extremis. 

É nesta dinâmica de apaziguamento das tensões e de tentativas de reaproximações que recentemente os acontecimentos ainda se aceleraram. No princípio de Dezembro de 2011, os chefes de Estado de 33 países da América Latina e das Cariba reuniram-se em Caracas para criar a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). A originalidade desta instituição é reunir pela primeira vez a totalidade dos países soberanos da região... sem ali associar os Estados Unidos (nem o Canadá). Se os avanços precisos que permitirão realizar a CELAC permanecem indistintos, e se ainda não é possível afirmar que suas orientações serão necessariamente progressistas, sua colocação em andamento constitui em si mesmo um acontecimento de alcance histórico. Finalmente, os povos latino-americanos e caribenhos propuseram-se conduzir sua regionalização numa perspectiva nova: a da tomada de distância e da independência em relação a seu(s) vizinho(s) do Norte. É portanto todo o Sul que está interessado nestas iniciativas. 

Até o princípio dos anos 2000, os processos de regionalização iniciados na América Latina sempre foram instrumentalizados ou neutralizados pelos Estados Unidos, quando estes últimos não eram eles próprios encarregados de os conceber. O facto é conhecido: os objectivos de dominação estado-unidense foram expressos desde o fim do século XVIII, depois sistematizados pela doutrina Monroe no século XIX. Suas agressões militares repetidas, lançadas sob o pretexto de "proteger as vias e os interesses americanos", haviam-lhes proporcionado uma zona de influência no hemisfério ocidental, quase exclusiva na América Central e nas Caraiba. O controle dos Estados Unidos sobre a região reforça-se no princípio da Guerra Fria com a criação em 1948 da Organização dos Estados Americanos (OEA), que para eles era um lugar de distorsão das políticas internas e externas dos países latino-americanos. A consequência da criação da CELAC é a marginalização de facto da OEA. Alguns, como o presidente Chavez, falaram em "substituição"; outros, do lado mexicano ou chileno, de "complementaridade". Mas o resultado está lá: a OEA, e através dela os Estados Unidos, não decidirão mais o destino da América Latina. Da maneira muito simbólica, os participantes entenderam-se, por unanimidade, para que o país hospedeiro do encontro seguinte da CELAC fosse... Cuba – país excluído da OEA desde 1962 por "incompatibilidade com o sistema interamericano" (sic). 

Se bem que a CELAC não tenha por enquanto nenhuma aplicação prática verdadeira e que ela se choque com múltiplos bloqueios – devidos em particular aos conflitos ideológicos existentes no seu seio e às arbitragens entre os benefícios desta comunidade e a rendas extraídas dos acordos comerciais bilaterais com os Estados Unidos –, imagina-se sem dificuldade o impacto positivo que poderia produzir a orientação progressista de uma tal integração. Mas a mudança está realmente em marcha. Pois é a América Latina e Caribenha que doravante recusa ver Washington impor suas decisões ao resto do hemisfério. Desenha-se uma ampla frente de resistência do Sul, o que permite prever a formação a prazo de um contrapeso ao hegemonismo estado-unidense, unipolar, e que hoje se esforça por minimizar tanto quanto possível a amplitude do sismo que está em vias de verificar-se. 

Avanços sociais e solidariedade internacionalista: dois exemplos 

A última vitória até à data das forças progressistas no continente sul-americano registou-se a 12 de Outubro de 2014, quando, com mais de 60% dos sufrágios, Evo Morales ganha a eleição presidencial e inicia seu terceiro mandato à testa da nova Bolívia; aquela que está em vias de se construir na dignidade e identidade reencontradas do seu povo; aquela da recuperação dos recursos naturais finalmente redistribuídos pelas políticas sociais do Bien Vivir (bem viver); aquela do respeito pelo ambiente (a Pachamama, a terra mãe). 

É princípio compreender desde o princípio: a Bolívia é, sobretudo, índia. Uma excepção na América do Sul: seu povo é constituído maioritariamente por "nativos"(originarios). Dois terços dos seus cidadãos reivindicam sua origem índia: quechua, aimara, guarani... Até há pouco, todos os poderes eram confiscados pelos 15% de bolivianos brancos de origem europeia. A história do país caracteriza-se ao mesmo tempo por uma instabilidade crónica, ligada às tendências putchistas de uma parte das forças armadas que as levaram a sustentar uma série de ditaduras (inclusive a junta do general Banzer de 1971 a 1978), e pela combatividade das lutas de um povo politizado, lúcido. Durante muito tempo, as reivindicações da esquerda foram impulsionadas pela Central Obrera Boliviana (COB), ligada ao Partido Comunista e organizando, em torno dos sindicatos de mineiros, experimentados e poderosos, amplas faixas do mundo do trabalho. 

No decorrer das décadas 1980-1990, os golpes assestados pelo neoliberalismo (da contracção dos orçamentos públicos à privatização de minas, passando pela liberalização da agricultura) desestruturaram ainda mais esta sociedade, uma das mais pobres do continente. A brutalidade destas medidas, impostas sob a férula do Fundo Monetário Internacional, foi ainda mais duramente ressentida porque a miséria ali era maciça, tanto na cidade como no campo. Um dos efeitos deste desastre económico foi engrossar o fluxo de migrações de famílias de desempregados das regiões mineiras e de camponeses arruinados dos altos planaltos para as favelas urbanas e as zonas rurais menos áridas. Sem recursos para sobreviver nem possibilidade de produções alternativas, muitos reconverteram-se na cultura das folhas de coca, organizando-se muitas vezes segundo o modelo sindical. Bastante rapidamente, estes novos movimentos índios dotaram-se de estruturas partidárias tendo em vista defenderem seus interesses no combate político para a transformação social. Os acontecimentos aceleraram-se nos anos 2000, neste contexto de mutações profundas e na sequência de descobertas de jazidas de hidrocarbonetos que incharam as reservas de gás e de petróleo do país e atraíram os investidores estrangeiros. A rebelião do mundo operário e camponês ganha o conjunto do povo e o dinamismo dos movimentos sociais coloca a Bolívia na primeira linha das exigências de controle público dos recursos naturais enquanto patrimónios ou bens comuns que devem estar sob a responsabilidade de toda a colectividade (manifestações contra a privatização da água, nomeadamente). 

Uma reivindicação das organizações de massa era, desde há muito, a nacionalização das reservas de petróleo e de gás, exploradas por firmas estrangeiras – e cuja contribuição ao orçamento do Estado lhes assegurava uma influência determinante sobre o país. A "ajuda" estado-unidense, que atingia até 10% do produto interno bruto e era destinada tanto a erradicar a produção de coca como a reprimir as "perturbações sociais", fazia o resto... Naquela Bolívia, o povo sonhava com direitos à auto-determinação, à democracia e ao desenvolvimento, mas em privado. O sonho não se tornou realidade senão com a ascensão de Evo Morales à presidência. As vitórias obtidas na eleição presidencial de Dezembro de 2005, e depois pelo seu partido, o Movimento para o Socialismo (MAS), nas legislativas seguintes, marcaram o arranque da revolução indígena. Estes acontecimentos de dimensão histórica têm uma ressonância universal e apresentam ao mundo o exemplo do ressurgimento e da emancipação de povos indígenas cuja inclusão limitada na vida política favorecia até então a fragmentação e a subordinação. Antes disso, foi-lhe necessário remover os representantes da oligarquia local obediente aos diktats estado-unidenses a fim de tornar possível a eleição à testa do Estado de um líder popular que restaura a esperança. 

O carácter autenticamente progressista do novo governo boliviano, anti-neoliberal e anti-imperialista, surgiu com clareza no momento da nacionalização dos hidrocarbonetos (Maio 2006). A recuperação dos recursos naturais, arrancados ao país pelo neoliberalismo, modifica as proporções detidas pelas transnacionais e o Estado na estrutura de propriedade do capital do sector: 82% para este, 18% para aquelas, contra o inverso que se verificava anteriormente. A intervenção sem confisco nem expulsão constrangeu as companhias petrolíferas em actividade no território boliviano a renegociar os contratos de concessão em curso. A retomada do controle da estratégia energética pelo Estado efectua-se por uma sociedade pública encarregada das operações de transformação, refinação, comercialização e transporte do petróleo e do gás do país. Ainda que esta – indispensável – reconquista da soberania nacional se tenha efectuado com dificuldades e oposições, doravante a grande parte das receitas decorrentes da gestão destes recursos naturais é dirigida para as prioridades do Estado a fim de melhorar a sorte do seu povo e o desenvolvimento da economia. 

O futuro dirá o que é possível transformar do Estado Plurinacional da Bolívia, no sentido de avanços mais pronunciados na transição socialista. Na expectativa, em 12 de Outubro, foi aos líderes internacionalistas emblemáticos das revoluções cubana e venezuelana, Fidel Castro e Hugo Chavez, assim como aos povos hoje em luta contra o capitalismo e o imperialismo, que Evo Morales, em nome dos bolivianos, dedicou sua vitória. 

O melhor exemplo de solidariedade internacionalista é o das missões médicas cubanas. Como se sabe, Cuba respondeu aos apelos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas (ONU) para o envio de equipes médicas a fim de lutar contra a epidemia de ébola que afecta a África Ocidental (sobretudo a Serra Leoa, a Libéria e a Guiné). Desde meados de Novembro de 2014, 165 profissionais de saúde cubanos especializados na luta anti-ébola estão a trabalhar na Serra Leoa, 50 na Libéria e 35 na Guiné – 15 outros devem chegar à Guiné-Bissau. A estratégia adoptada foi combater a epidemia em simultâneo sobre o terreno e de maneira preventiva, com formação de pessoal médico pronto a enfrentar uma eventual extensão da doença. Outros profissionais preparam-se para substituir as equipes no terreno. Também se mantém pronta para partir a brigada médica Henry Reeve especializada nas intervenções em caso de catástrofes naturais, que já efectuou missões em África, assim como no Paquistão e no Haiti. 

Esta é, até o momento, de longe, a oferta mais generosa de especialistas no controle de doenças infecciosas e epidemiológicas recebida pela OMS. Estes médicos e enfermeiros cubanos foram treinados intensamente no Instituto de Medicina Tropical Pedro Kouri, de Havana, para se prepararem quanto a protocolos de segurança e manipulação dos materiais de protecção. Aquelas e aqueles que partiram para lutar contra o ébola são voluntários. Para constituir estas brigadas, foi lançado um apelo: 15 mil cubanas e cubanos apresentaram-se como voluntários. Os 165 que foram enviados à África foram seleccionados entre estes 15 mil. Todos de alto nível e experimentados, optaram por deixar famílias e amigos para irem salvar o maior número possível de vidas no continente africano. Este é o sentido da sua existência e esta é a mensagem de coragem e de humanidade com que o povo de Cuba e seu governo se dirigem ao mundo. Apesar das dificuldades que tem de enfrentar (um bloqueio!), este país encontrou em si as forças, os recursos e as pessoas para assim agir. Cada um(a), no seu foro interior, julgará o que é preciso pensar. 

Para Cuba, esta decisão é a continuação da cooperação médica efectuada em acordo com os países africanos. Para além desta contribuição à luta contra o ébola, 4 048 trabalhadores cubanos da saúde, dentre os quais 2 269 médicos, participam actualmente em missões em 32 países do continente. Desde o arranque da revolução cubana, em 1959, cerca de 77 mil médicos e enfermeiros participaram de brigadas de saúde cubanas nos 39 países da África. Ainda recentemente, mais de 36 mil pacientes africanos beneficiaram da missão Milagro, pela qual puderam recuperar a vista ou melhorá-la, nomeadamente aqueles operados da catarata. A acrescentar-se a isto, numerosos estudantes originários da África são hoje formados nas escolas de medicina de Cuba ou, para outros, no seu próprio país. Desde 1959, 3 392 médicos africanos, originários de 45 países, foram formados em Cuba graças a bolsas de estudo concedidas pelo governo cubano. 

Cuba actualmente está presente em 66 países com mais de 55 mil trabalhadores da saúde, a metade sendo médicos. Dois terços dentre eles são mulheres, exercendo muitas vezes em condições extremamente difíceis, até nas montanhas do Paquistão. Resultados de 55 anos de solidariedade: 595 mil missões cumpridas em 158 países, 325 mil profissionais da saúde envolvidos, 12 milhões de crianças vacinadas, 8 milhões de intervenções cirúrgicas, 2,2 milhões de partos acompanhados, mais de 1 200 000 000 consultas médicas... Cuba fornece, por si só, mais pessoal médico aos países do Sul que o G7. Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá, ou seja, mais de 36 milhões de milhões de dólares de riquezas produzidas (cerca da metade do rendimento mundial, mas com 10% da população do globo)... contra apenas 65 mil milhões em Cuba (e 11 milhões de habitantes, menos que o Niger). "Dinheiro e material são importantes", declara o Sr. Chan, director-geral da OMS, "mas o mais importante são as pessoas, que experimentam compaixão, médicos e enfermeiros que sabem reconfortar seus pacientes. Cuba é mundialmente conhecida pela sua capacidade de formar excelentes médicos e enfermeiros. O país é reconhecido pela sua generosidade e sua solidariedade para com os países em marcha para o progresso. (...) Cuba é um exemplo". Os Estados Unidos, pela voz do presidente Obama, também permanecem fiéis à sua reputação: enviaram um contingente de 3 000 militares à África. 

RECONECTAR ÁSIA, ÁFRICA E AMÉRICA LATINA 

Da Tricontinental… a ALBAs africanos e asiáticos? 

Aquando da cimeira da ALBA, em Outubro 2014, foi decidido que os seus membros responderiam positivamente aos pedidos da OMS e da ONU enviando recursos financeiros e humanos, mas também preparando-se para enfrentar um eventual estado de crise sanitária. Profissionais cubanos estão em acção para formar equipes de especialistas bem preparados no México, na Bolívia, na Nicarágua... No fim de Outubro de 2014 houve também em Havana um encontro de cientistas dos países da ALBA e da CELAC, ao qual foram convidados especialistas originários da região e também do Canadá e dos Estados Unidos. Certamente, o espírito de Bandung sopra hoje na América Latina e Caribenha. 

Cuba teve um papel fundamental – pioneiro – na história da conexão das lutas da Ásia e da África com a América Latina, no rastro da conferência de Bandung (1955). De 3 a 12 de Janeiro de 1966 houve em Havana, "no olho o ciclone", a primeira Conferência de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e América Latina, ou "Tricontinental". A OSPAA, que reunia representantes dos povos da Ásia e da África, nascida uma década antes no Cairo, era ampliada para um novo continente, então a fervilhar desde a vitória da revolução cubana, e tornava-se a OSPAAL, que denunciava o imperialismo estado-unidense como o inimigo comum das jovens nações do Sul e seu principal agressor. Um ano e meio depois, de 31 de Julho a 10 de Agosto de 1967, novamente na capital cubana mas sob os retratos de Simon Bolivar e do che, reuniam-se os movimentos revolucionários de 22 países da América Latina (mais uma "delegação honorífica dos Estados Unidos" dirigida pelo futuro líder dos Black Panthers ), na reunião da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS). Este Sul, ou "Terceiro Mundo", não era nem melhor nem pior que hoje, mas estava de pé e procurava se unir para se libertar. Conhece-se suas grandes figuras, que encetaram a luta a contra a injustiça insuportável do sistema mundial capitalista: Sukarno, Hô Chi Minh, Zhou Enlai, Mehdi Ben Barka, Amilcar Cabral, Patrice Lumumba, Frantz Fanon, Julius Nyerere… e tantos outros. O povo de Burkina Faso, que hoje se levanta, recorda-se de Thomas Sankara e de todos eles. E se este tempo retornasse? Talvez, por exemplo, graças a uma reactivação da iniciativa América do Sul – África (ASA), concebida há alguns anos pelo presidente Chavez? Ou então pela difusão rumo à Ásia e África dos ideais que hoje animam o ALBA? 

Depois de ter impedido a entrada em vigor da ALCA, em alguns meses os povos da América Latina – pelo menos aqueles cujos governos se haviam inclinado à esquerda – chegaram a passar à contra-ofensiva, graças à ALBA. Esta aliança, imaginada desde o fim de 2001 como regionalização anti-ALCA, foi pensada como uma alternativa radical às integrações correias de transmissão da mundialização neoliberal, do tipo ALENA, o Acordo de Livre Comércio da América Norte que esmaga a economia mexicana. A ALBA foi lançada em Dezembro de 2004 em Havana por um acordo dos presidentes cubano e venezuelano, Fidel Castro e Hugo Chávez, colocando as condições para uma autonomia reforçada dos países latino-americanos. A base é a solidariedade entre povos soberanos, excluindo toda interferência dos Estados Unidos. Entrada em vigor em Abril de 2005, a ALBA foi ampliada pela integração da Bolívia do presidente Evo Morales (Abril 2006), da Nicarágua de Daniel Ortega (Janeiro 2007), depois da Dominica (Janeiro 2008) e de Honduras (Agosto 2008, graças ao presidente Zelaya, derrubado por um golpe de Estado militar em Junho de 2009 do qual uma das consequências foi a ruptura com a ALBA), de Saint-Vicent e Grenadines e Antigua e Barbuda (meados 2009) e do Equador do presidente Rafael Correa (Junho 2009). 

O acesso ao petróleo venezuelano e ao maná financeira que ele proporciona constitui evidentemente uma motivação de parceiros com recursos limitados. O importante está alhures, pois a ALBA é portadora de profundas transformações à escala continental. Na óptica bolivariana de uma "federação de nações", a ALBA busca o fundamento de uma estratégia de integração impulsionada não mais pelos princípios da maximização do lucro e das "vantagens comparativas", mas por aqueles da cooperação, da solidariedade e da complementaridade. Ela se inscreve no espírito da Carta das Nações Unidas sobre a cooperação internacional e da Declaração da Assembleia Geral sobre o direito ao desenvolvimento. Pela promoção das missões sociais (alimentação, saúde, educação, habitação, emprego, ...), o objectivo é de os continentalizar nos novos países membros, de os adaptar às exigências locais e de os colocar ao serviço dos povos. A prioridade imediata das acções conretas que são conduzidas vai para a melhoria das condições de existência do maior número e da participação popular no projecto de partilha mais justa das riquezas. Uma inovação consistiu num fundo de compensação para a convergência estrutural, cuja finalidade é tentar eliminar alguns dos obstáculos ao desenvolvimento e tratar de modo preferencial os países mais pobres. Assim, apoia-se financeiramente, com respeito pela soberania nacional dos Estados signatários, os esforços que desenvolvem seus governos nacionais e colectividades locais a fim de formular políticas que favoreçam o crescimento de sectores sociais e das infraestruturas, a reapropriação dos solos e dos recursos naturais, a diversificação da economia, o impulsionamento de agriculturas respeitosas das massas camponesas, das produções industriais orientadas mais para as necessidades internas ou certas exportações com forte valor acrescentados que possam por em causa a divisão internacional do trabalho. 

O motor da ALBA, processo de integração dos povos latino-americanos, é impulsionado pelos Estados. Mas a concepção das forças motrizes da regionalização foi ampliada de modo a associar às negociações, ao lado dos governos parceiros, o maior número possível de representantes de movimenos sociais solidários com esta dinâmica continental e activos, inclusive nos países não membros da ALBA. Aos princípios iniciais, como a autodeterminação e a complementaridade das economias parceiras, a igualdade e a justiça nos intercâmbios, a integração das políticas energéticas ou a cooperação tecnológica, vieram-se acrescentar novos objectivos, tais como a reactivação da solidariedade entre os países do continente, a busca da soberania alimentar, a luta contra a exclusão social, a defesa dos direitos humanos na acepção mais ampla (civis, políticos, económicos, sociais, pluri-culturais...), a preservanção do ambiente. O conceito de regionalização evoluiu assim no sentido de uma ultrapassagem da fragmentação das resistências e de uma convergências das lutas para a construção de uma frente unida dos povos. 

Face às disfunções do actual sisema mundial capitalista, pensar em alternativas com conteúdo social afirmado tornou-se hoje uma exigência para o bem estar dos povos. Uma das soluções passa pela ascensão dos intercâmbios entre países do Sul que sejam fundamentados sobre regionalizações alternativas, como é exactamente o caso da ALBA e de seus programas satélites (PetroSur na energia, Sucre para a moeda, TeleSur para a informação...). Para isso, as condições são numerosas, mas também difíceis de reunir: seriam necessários, em primeiro lugar, avanços populares nos países em causa e uma passagem das lutas da defensiva para a ofensiva; em seguida, o acesso ao poder de um governo progressista e seu controle efectivo do Estado; finalmente, a definição de uma estratégia de união dos países do Sul. 

Quais seriam, neste contexto, as possibilidade de êxito de uma versão asiática ou africana da ALBA? No momento actual, parecem muito fracas, mas não são inexistentes. Os obstáculos a ultrapassar são extremamente importantes na Ásia e talvez ainda mais em África. Estes dois continentes permanecem atravessados por contradições profundas e oposições múltiplas (na Ásia, por exemplo, entre Japão e China, Coreia do Sul e Coreia do Norte...). Estes conflitos locais são igualmente acentuados pela ingerência dos Estados Unidos – sem esquecer seu controle militar directo sobre vários países, como a Coreia do Sul, nem as guerras que prosseguem no Médio Oriente e na Ásia central. De facto, a maior parte dos esforços de institucionalização regional (na Ásia, por exemplo, em torno da ASEAN ou através de diversas propostas de integração monetária) têm permanecido bastante limitados. Tendo em conta seu peso demográfico, econonómico e diplomático, a China é provavelmente o único contrapeso potencial ao hegemonismo estado-unidense, mas permanece sempre imbricada no sistema de poder do Norte, especialmente dos Estados Unidos. Entretanto, não é totalmente inimaginável que uma inclinação à esquerda de um dos governos de direita num país da região (exemplo: uma vitória eleitoral das forças progressistas na Coreia do Sul) possa abrir a oportunidade de lançar uma (tentativa de) regionalização alternativa asiática, no rastro da ALBA. 

O futuro dirá se um tal cenário chegará a realizar-se – em torno de uma Coreia do Sul orientada à esquerda e aberta à ideia de uma reunificação com a Coreia do Norte e de uma reaproximação com a China e o Vietname, ou mesmo em associação com outros países com governos menos progressistas, mas que no passado souberam manifestar uma vontade de autonomia relativa face aos diktats do FMI (como a Malásia durante a crise de 1998) – ou não chegará... A menos que a agregação das forças na Ásia não se produz em torno do grupo de Shangai, na base de uma aliança estratégica entre a China e a Rússia, ampliada a vários parceiros chave da região. Este tipo de regionalizações alternativas mudaria de natureza as relações entre os países do Sul. Dir-se-á: isto é utópico! Sem dúvida, à vista do estado das relações de força actuais. Mas lembremo-nos de que apenas alguns meses antes do seu lançamento, a realidade da ALBA era simplesmente inconcebível para muitos observadores – e isto, mesmo na América Latina. 

Intercâmbios "equitativos" entre países do Sul? 

O fortalecimento dos intercâmbios Sul-Sul é um dos eixos fundamentais deste debate. E é a China que ocupa, de muito longe, a parte mais determinante neste fenómeno, em particular no que se refere às relações entre a Ásia e a África. Em 2010 ela assina cerca de 100 mil milhões de dólares de contratos comerciais com países africanos, ou seja, dez vezes mais do que uma década antes. Se bem que dificilmente calculável, o stock total dos investimentos directos chineses na África poderia hoje exceder 120 mil milhões de dólares. O continente africano representa doravante um terço dos aprovisionamento da China em hidrocarbonetos (Angola destronou a Arábia Saudita como primeiro fornecedor). Os bancos chineses entram em força no capital dos estabelecimentos bancários africaos, inclusive na África do Sul. Mas é de facto o conjunto dos fluxos de intercâmbios comerciais entre a África e a Ásia que aumentou fortemente. Para além das diferenças locais e das variações anuais, o facto marcante é que as economias da Ásia em geral, e da China em particular, tornaram-se para a África parceiros comerciais incontornáveis. 

Uma tal penetração levanta críticas – longe de serem todas fundamentadas – tanto no Norte como em África. Nos países industrializados do Norte, as condenações mais virulentas vêm de representantes das elites económicas, que gritam "perigo amarelo". Entretanto é forçoso constatar que um dos efeitos desta subida de potência da Ásia foi, imperceptivelmente, constranger a União Europeia a moderar o tom altaneiro a que desde há muito se habituara a dirigir-se aos africanos. Em África, são muitas vezes comerciantes ou intermediários influentes que fazem campanha contra os asiáticos; mas parece que grande parte das elites políticas, assim como grande das camadas populares, encontram muitas vantagens nisso. 

Apesar de problemas múltiplos e reais, que será preciso saber ultrapassar pela utilização bem pensada de ferramentos de política económica à disposição dos Estados, estas novas relações constituem no conjunto uma oportunidade a aproveitar pela África. É mesmo provável que a recuperação da taxa de crescimento económico dos países africanos entre 2000 e 2007 (ou seja até à explosão da crise sistémica global de 2008) seja positivamente correlacionado com o dinamismo observado nos seus intercâmbios com a Ásia neste período. Pois os efeitos positivos destes intercâmbios passam por multiplos canais: reforço do comércio em volume e em valor (uma vez que a procura asiática faz subir os preços das mercadorias exportadas); construção de infraestruturas (uma parte dos intercâmbios comportando uma rubrica recursos naturais contra trabalhos públicos); alívio de dívidas (os créditos chineses sendo frequentemente concedidos a taxas de juro baixas)... 

As consequências portanto são claramente benéficas para a África, que assim pode dispor de estradas asfaltadas (ligado o Cairo a Captown), pontes, caminhos de ferro, equipamentos portuários... A "colocação em concorrência" dos países clientes contribui também para orientar em alta os preços dos produtos exportados nos mercados mundiais, ao passo que se torna possível o emprego de recursos raros para satisfazer as necessidades de consumo locais. Estes intercâmbios são igualmente interessantes, certamente, para a China. Esta acede a recursos estratégicos para sustentar seu desenvolvimento acelerado, a começar pelo petróleo (Angola, Nigéria, Argélia), minerais e metais raros (Congo Kinshasa)... Ela encontra também a oportunidade de empregar uma parte da sua mão-de-obra excedentária e pode conservar suas reservas de divisas para afectá-los a outras utilizações – infelizmente ainda frequentemente para a compra de títulos da dívida estado-unidense. No total, um afrouxamento dos laços de dependência dos países do Sul em relação ao Norte pode ter sobre eles efeitos dinamizadores, multiformes. Diante de tudo isto, serão "equitativos" estes intercâmbios entre a Ásia e a África? Se, do ponto de vista africano, os benefícios destas relações parecem predominar sobre os seus inconvenientes, não é seguro que todos os empreendedores ou comerciantes chineses se tenham desembaraçado de todos os traços desagradáveis do comportamento de dominação dos país do Norte para com a África... 

A economia dominante, nas suas versões académicas (teoria das vantagens comparativas) ou vulgares (apologéticas do livre comércio), considera o intercâmbio como igual e verificando-se entre parceiros iguais, que sempre tirariam proveito de um comércio liberalizado visto como "jogo de soma positiva". Os modelos económicos neoclássicos, que servem de fundamento às recomendações políticas neoliberais das organizações internacionais e da maior parte dos governos actuais, desembocam quase todos em conclusões favoráveis ao livre comércio. Ora, no sistema mundial capitalista realmente existente, o funcionamento da esfera da circulação mercantil demonstrou sem ambiguidade, desde há mais de cinco séculos, que intervêm de modo decisivo relações de forças e de dominação interelacionados (entre países, classes...). O que os "heterodoxos" traduziram pelas teorias do intercâmbio desigual, da dependência, da deterioração dos termos de troca... Na África ou alhures, numerosos exemplos ilustram relações económicas internacionais a operarem em desfavor do Sul. Falar de comércio "equitativo" tornou-se moda – é um nicho com lucros sumarentos. Tratar-se-ia de introduzir a "ética" nas relações comerciais, o que equivale a reconhecer que o comércio tal qual ele é no sistema mundial capitalisa não é "equitativo", na verdade que o intercâmbio é desigual. Então, para alguns seria preciso "moralisar" o capitalismo... o que subentende que este que se apresenta como o melhor sistema, portanto sem alternativa, é de facto... imoral! 

Uma das soluções para os desequilíbrios das relações Norte-Sul poderia passar pela expansão dos intercâmbios Sul-Sul. As margens de progressão são enormes e isto a todos os níveis: comercial, financeiro, energético, tecnológico, científico... No entanto, isto só constituiria um factor de reequilíbrio na condição de que este comércio Sul-Sul fosse expurgado dos diversos "males" que caracterizam as relações Norte-Sul tais como operam tradicionalmente. Seria de facto aceitável que uma economia do Sul se comportasse em relação a um outro país do Sul como potência dominante ("sub-imperialista", poder-se-ia dizer)? Ou que ela viesse a exercer sobre o seu parceiro pressões no sentido de um despojamento dos seus recursos naturais (da terra) e de uma destruição do ambiente? O incremento dos intercâmbios comerciais pode certamente dopar a taxa de crescimento económico de um país, mas não significa em si mesmo o desencadeamento de um processo de desenvolvimento sócio-económico, algo mais complexo. Para a África de hoje, nada poderia substituir o reforço das suas formações sociais agrária e o apoio estatal local das produções agrícolas alimentares – ainda que pareça evidente que as importações de bens asiáticos permitem aos povos africanos viver melhor consumindo mais e ultrapassar crises alimentares. Uma vez cumprida a revolução agrícola – se necessário por verdadeiras reformas agrárias –, o impulso a seguir poderia ser dado a uma industrialização autocentrada e, quando possível, a certos sectores dos serviços com forte valor acrescentado. 

PARA UMA OUTRA POLÍTICA EXTERNA DO NORTE 

As condições hoje parecem reunidas para que uma das consequências maiores da crise sistémica actual seja o agravamento da confrontação entre o Norte o Sul – apesar das cooptações do G20. O poder institucionalizado dos oligopólios do centro entra cada vez mais frontalmente em conflito com os interesses dos novos actores que aumentam o seu poder nas periferias do sistema mundial. No seio deste último, as contradições multiplicam-se e complexificam-se, inclusive entre classes dirigentes. Neste contexto, projectos de cooperação Sul-Sul têm progredido, especialmente entre países emergentes. A reaproximação estratégica dos "BRICS" permite pensar que este conjunto chegaria, num futuro bastante próximo, a contrabalançar a dominação do "G5". A partir de agora, a soma dos PIB medidos em paridades de poder de compra da China, da Índia, da Rússia, do Brasil e da África do Sul aproxima-se, em estática, do nível de riquezas produzidas pelos Estados Unidos, contribuindo, em dinâmica, para dois terços do crescimento mundial actual. As últimos Cimeiras dos BRICS (representando no total 45% da população do planeta) marcaram a sua vontade de ultrapassar seus contenciosos e coordenar suas posições a fim de apelar a uma reforma da ordem mundial. Uma manifestação destas reaproximação foi o anúncio da exploração das condições de factibilidade e de viabilidade de uma nova instituição multilateral de crédito gerido por eles próprios. Este banco visa financiar projectos de desenvolvimento sustentável e infraestruturas nos países do Sul e do Leste (e talvez também do Norte), a busca de respostas coordenadas face à crise e a autonomização das decisões soberanas dos governos dos BRICS em relação às "soluções" das organizações internacionais. Um dos objectivos é atenuar a importância do dólar enquanto moeda internacional de pagamento e de reserva e um dos meios de atingir esta finalidade é a promoção dos intercâmbios comerciais bilaterais denominados em moedas locais. Mais um passo foi dado na direcção da construção de um mundo multipolar. Mesmo se este não foi dado com a intenção do sentido do progresso social e de uma democracia substancial, esta marcha para a multipolaridade poderia impulsionar um sistema mundial mais equilibrado e mais justo. 

Face a estas evoluções fundamentais que ocorrem no Sul e no Leste, várias questões apresentam-se aos progressistas e trabalhadores do Norte. Podem eles tolerar que estes países do Norte continuem a agir muito frequentemente ainda como potências imperialisas, mesmo neocoloniais, quando grandes componentes das suas elites dominantes, que outrora em nome dos seus povos cometeram crimes coloniais e escravocratas, submetem-se ao poder da alta finança e lançam seus exércitos fora das suas fronteiras e em muitos lugares do mundo em guerras – por assim dizer permanentes e na verdade sob comando militar estado-unidense – contra países do Sul? Aceitar a "fatalidade" de uma confrontação com o Sul e a ascensão das diversas variantes de extremas direitas políticas, comunitaristas, religiosas – todas igualmente pró sistémicas, ou seja, pró capitalistas – que a acompanha? Aceitar que muitos líderes de suas organizações partidárias e sindicais abandonem toda solidariedade internacionalista, ao mesmo tempo que toda posição de clase em defesa dos interesses das camadas populares? Estas dificuldades que enfrentam as forças progressistas do Norte são também complicadas pelos problemas, não menos numerosos, que vêm do Sul, dentre os quais a opção, para a maior parte das elites dirigentes destes países, da via capitalista como "estratégia de desenvolvimento". Para nós, é uma ilusão acreditar que o capitalismo seja uma "solução" para o Sul ou o Leste. 

Quais são as alternativas? Seria falso pensar que existem receitas miraculosas; mas falso igualmente acreditar que não há alternativas. Há, a discutir democraticamente. E para construí-las é preciso reabrir o debate sobre as opções possíveis, libertando-se da propaganda mediática dominante. Mas a urgência é travar a regulação do sistema capitalista mundial pela guerra, sob a hegemonia estado-unidense e a agressão contra o Sul. Para isso, é preciso sair da componente militar da NATO. Isso exige não opor mais os trabalhadores do Norte aos povos do Sul e sermos capazes de passar da construção de uma consciência colectiva àquela de actores colectivas, plurais, multipolares, a fim de por em causa a extraordinária potência conquistas pela finança. Esta solidariedade não pode passar senão pela superação (dépassement) dos valores e das leis do capitalismo. Desligar a máquina infernal destas guerras accionadas pela finança necessita impor aos oligopólios financeiros a obrigação de um controle público e democrático. É preciso nacionalizá-los e, com eles, os sectores estratégicos da economia para colocá-los ao serviço dos povos e reabrir margens de manobra para políticas de progreso social verdadeiro.

Rémy Herrera é economista, francês, investigador do CNRS, UMR 8174 Centre d'Économie de la Sorbonne.


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