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121213 primavera arabeEgito - Le Monde Diplomatique - [Claire Talon e Fadi Awad] Enquanto a repressão ganha força no Egito, eminentes figuras do mundo intelectual, nostálgicas do nasserismo e normalmente de esquerda, declaram apoio ao Exército. Essa antiga geração é contestada por escritores e artistas que recusam o retorno do “Estado profundo” e a traição dos ideais da revolução.


Improvável canção aquela entoada pelos pilares da literatura egípcia contemporânea em homenagem ao general Abdel Fatah Sissi, comandante do golpe que derrubou em 3 de julho de 2013 o presidente Mohamed Morsi. Enquanto o país vê o fantasma de um regime militar ganhar cada vez mais consistência, seus intelectuais mais célebres – os escritores Sonallah Ibrahim, Gamal Ghitany e Bahaa Taher, o poeta Ahmed Fouad Negm e outras figuras da geração conhecida como “dos anos 1960” – juntam-se à tendência de unanimidade que ganhou a classe política e a maior parte da opinião pública para celebrar Sissi como um “herói nacional”. Eles comungam com escritores de sucesso que pertencem à geração mais jovem, como Alaa Al Aswany e Khaled Alkhamissi.

Escritores outrora jogados na prisão por Gamal Abdel Nasser e Anwar Sadat e que há quase quarenta anos elaboram uma ácida crítica política e social dos regimes instalados passaram a aclamar a repressão sangrenta que se abateu sobre a Irmandade Muçulmana no dia 13 de julho de 2013: mais de 1.500 mortos, centenas de feridos, milhares de prisioneiros e centenas de desaparecidos. Al Aswany, sobretudo, famoso autor de O Edifício Yacubian– uma descrição do fim do reinado de Hosni Mubarak publicada em 2002 que se tornou um best-seller internacional1 –, contribuíra, no final dos anos 2000, para sensibilizar a opinião pública a respeito dos excessos do regime em editoriais semanais que prepararam o terreno para o movimento revolucionário de 25 de janeiro de 2011.

“A intelligentsia de esquerda egípcia tornou-se repentinamente ‘fascista’?”, perguntava o jornal Le Monde após a destituição de Mohamed Morsi.2 Mas isso é ignorar a onda de choque que o retorno dos militares causou entre os intelectuais, cujos debates são acalorados, embora não estejam na primeira página dos jornais, agora todos favoráveis ao Exército. Para além do conflito político entre partidários e opositores do general Sissi, o golpe de Estado de 3 de julho colocou em evidência uma divisão entre os artistas quanto ao papel do intelectual e à natureza do Estado.

“Montanhas de ilusões e mitos”

Ainda que possa parecer paradoxal ver ex-adversários tomarem o partido de um regime militar, há uma lógica no posicionamento desses escritores. Eles sempre foram grandes defensores do Estado, cuja figura alegórica está disseminada em suas obras; um Estado ameaçado, segundo eles, por duas chagas essenciais: a corrupção e os islamitas. Eles ajudaram a construir a grande narrativa que domina a Constituinte, assembleia para a qual o general Sissi oportunamente nomeou intelectuais partidários dessa visão, como Mohammed Salmawi, presidente da União dos Escritores, hoje porta-voz da comissão encarregada de redigir a Constituição. É esse Estado protetor e idealizado, livre da corrupção e dos islamitas, que seria encarnado pelo general Sissi – e que “triunfa”, como explica Ghitany nas páginas do Akhbar Al Youm.3

Essa grande narrativa de acentos nasseristas já era a de Naguib Mahfouz, Prêmio Nobel de Literatura em 1988, o modelo final desses autores. Mahfouz explicou em suas memórias: “Em 1954, quando Nasser conseguiu derrubar Mohammed Naguib4 [...], meus sentimentos por ele eram basicamente negativos. Eu não tive muita empatia quando ele foi vítima de uma tentativa de assassinato na Praça Manshia, em Alexandria, em 1954; mas, ao mesmo tempo, também não simpatizava com a Irmandade Muçulmana [...]. Por essas razões, embora eu estivesse descontente com a decisão tomada por Nasser após a revolução de 1952 de proibir os partidos políticos com exceção da Irmandade Muçulmana, fiquei satisfeito quando ele a baniu, depois da tentativa de assassinato”.5

Essa fidelidade ao Estado valeu a seus defensores o título de “intelectuais das luzes”. Mas, apesar de terem sido o emblema da cultura independente, já faz muito tempo que integram o corpusda cultura reconhecida pelas instituições. Recusar um prêmio literário concedido pelo Ministério da Cultura, como fez Ibrahim em 2003, ou insultar o ministro da Cultura nas páginas do Akhbar Al Adab, como fazia Ghitany, não os impediu de se juntar ao panteão celebrado pelo Conselho Superior de Cultura, a União dos Escritores Egípcios ou os palcos de televisão, todas instituições “oficiais”, por assim dizer.

Pode-se dizer que eles sempre criticaram o Estado por dentro, reativando, de passagem, o modelo do intelectual “esclarecido” que guia o povo e carrega uma alta missão social.6 É nesse sentido também que Al Aswany, a despeito de seu papel na revolução de janeiro de 2011, liga-se mais à geração da década de 1960 – e a seus modelos literários – que à da década de 1990.

Porque surgiu depois uma nova geração de escritores, sobretudo romancistas, que, se não teve a sorte comercial de seus veteranos, se manteve deliberadamente fora das instituições. Um universo vanguardista amplamente ignorado pelas editoras ocidentais, que combina crítica aos dogmas e renovação formal.

Mustafa Zikri, Yasser Abdel Latif, Haytham Al Wardany, May Telmissany, Youssef Rakha, Ihab Abdel Hamid, Wael Ashri, Basma Abdelaziz, Nael El Toukhy, Ahmed Nagy, Ahmed Alaidy, Mohamed Kheyr, Mohamed Rabie e Mansura Azzedine são representantes dessa vanguarda literária. Em suas obras, os intelectuais nasseristas e de esquerda dominantes só veem “espécies de restos deixados pela catástrofe da globalização e bobagens de crianças mimadas da cidade”, na frase do poeta e romancista Yasser Abdel Latif.

Para além da diversidade de gêneros, uma sensibilidade comum une esses autores, que se afastaram do modelo mahfouziano e do romance histórico adotado por seus veteranos. Com uma predileção pelo anti-herói, pelos marginalizados e os vagabundos, essas histórias “bastardas” e curtas, às vezes intercaladas com desenhos, florescem sob as ruínas das grandes narrativas – nacionalismo, nasserismo, comunismo, socialismo, pan-arabismo, islamismo –, pisoteando alegremente a pátria e o Estado, e dessacralizando o papel do artista. Uma “literatura incompleta”, de acordo com Haytham Al Wardany,7 ou “imatura”, segundo Mustafa Zikri, que defende, por exemplo, uma arte da narrativa espontânea, sem plano predefinido.8

Ainda que sonhem muitas vezes abertamente em abolir o Ministério da Cultura, esses autores não hesitam em desenvolver uma sátira da história oficial e dos mitos que constituem o Estado egípcio, cuja destruição imaginam com ampla ajuda de contrautopias, catástrofes, universos fora da lei geridos por vagabundos.9

“Continuar repetindo os delírios dos xeques do nasserismo sobre o Estado central protegido pelos militares e por um líder que os faz lembrar Nasser é como ter alucinações de Tramadol”,10 afirma o jovem romancista Ahmed Nagy, cujo próximo romance,IstikhdamAlHayat(O uso da vida), descreve o Cairo como uma pletora de comunidades subterrâneas varridas por ventos superpotentes. “Talvez agrade aos velhos intelectuais voltar aos militares, mas os jovens que serviram o Exército ou foram presos pelos militares não se deixam enganar por essas mentiras. Eles não vão aceitar que um grupo imponha sua visão de identidade, seja ela islâmica ou civil de terno cáqui. O Egito é muito vasto para ser resumido em uma palavra de ordem, como ‘o povo quer isto ou aquilo’. É preciso ter coragem para propor representações radicais do desastre no qual viemos a viver. Há uma necessidade urgente de destruir essas representações patéticas de identidade egípcia, construídas sobre montanhas de ilusões e mitos, e parar de impô-las às pessoas. O Estado nacionalista militar morreu, o islamismo político fracassou antes mesmo de ter começado e a democracia não é nada mais do que uma forma de administrar os assuntos do país e separar os poderes” – não uma nova ideologia.

Essa nova onda continuaria, com poucas exceções, confinada a uma vanguarda, se não entrasse em ressonância com um grande movimento alternativo que perturba as relações entre o Estado e a cultura; um movimento apoiado pela chegada à cena de artistas marginalizados pelas instituições. Essa cena dita “independente” desenvolveu-se no fim dos anos 1990, em um fervilhamento de gêneros e grupos: desenho animado, cinema, rap, música eletrônica, canção, teatro, arte de rua, grafite. Multidões de jovens têm se embrenhado na cena “independente”, em companhias e lugares financiados por organizações de defesa dos direitos humanos e diversos mecenas.

Fora do Estado e da mídia

Suas primeiras referências não são Naguib Mahfouz nem os cantores Abdel Halim Hafez e Umm Kulthum, mas Ahmed Adaweyah e Sheikh Imam, cantores underground ignorados pela cultura do Estado e do mercado. Seus meios de divulgação: internet e YouTube. A música electro chaabi (denominada mahragan) que dominou o Egito, encarnada principalmente pelos músicos Wezza, Okka e Ortega, também se desenvolveu em chips eletrônicos trocados pelos condutores de riquixás motorizados das favelas, até chegar ao topo das paradas de sucessos.

Assim como a prática do grafite e a cultura dos torcedores de futebol (os ultras), a culturamahragan, pelo uso do corpo na rua e pela subversão das normas, é portadora de mudanças sociais e culturais muito mais profundas que os discursos sobre a corrupção e o islamismo dos apologistas do general Sissi.

Se o golpe de Estado de 3 de julho, apoiado pela maioria da população, revelou as múltiplas facetas da revolução egípcia – algumas pedindo a queda do regime, enquanto outras sonhavam em reinventar o Estado –, ele contribuiu principalmente para definir novos “locais de cultura”, cuja influência se tornou potencialmente enorme para o uso de novas tecnologias.

“A revolução revelou o conluio de muitos ‘adversários’ no meio artístico com os símbolos do regime que eles supostamente combatiam”, afirma o escritor Youssef Rakha. “Ela também ajudou a definir os verdadeiros lugares da cultura, sejam eles em ato ou potência. Esses lugares estão agora fora do Estado e das mídias, inclusive as mídias não oficiais, e fora do meio cultural de esquerda que se identifica com o Estado, com ideias e tradições as quais não há dúvida – embora hostis à globalização – de que se oponham à transformação.” 


Claire Talon e Fadi Awad, respectivamente, jornalista e linguista, Cairo.

1 Alaa El Aswany, L’Immeuble Yacoubian, Actes Sud, Paris, 2006 [Ed. bras.: O Edifício Yacubian, Companhia das Letras, São Paulo, 2009].

2 Christophe Ayad, “Les intellectuels égyptiens justifient le coup de force mené par l’armée” [Intelectuais egípcios justificam golpe do Exército], Le Monde, 13 ago. 2013.

3 “Al Dawala Tantaser” (O Estado triunfa), Akhbar Al Youm, Cairo, 3 nov. 2013.

4 Primeiro presidente do Egito após o golpe de Estado dos “oficiais livres”, de 23 jul. 1952, e o estabelecimento da República.

5 Naguib Mahfouz, Memórias (em árabe), Dar Al Shorouk, Cairo, 2011.

6 Richard Jacquemond, Entre scribes et écrivains. Le champ littéraire dans l’Égypte contemporaine [Entre escribas e escritores. O campo literário no Egito contemporâneo], Sindbad-Actes Sud, 2002.

7 Os caras da literatura incompleta (em árabe), Dar Merrit, Cairo, 2003.

8 “A literatura imatura”, prefácio de Aquilo que Amin sabe e cinco outras histórias (em árabe), Dar Al Tanouir, Cairo, 2012.

9 Nael Al Toukhy, A quarentena (em árabe), Dar Merrit, Cairo 2013.

10 Analgésico comumente utilizado como droga no Egito.


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