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040213 fotografia na china chinesesChina - Le Monde Diplomatique - [Johan Heilbron , Philippe Pataud Célérier] Por muito tempo reduzidos a magnificar as figuras triunfantes do realismo revolucionário, a fotografia chinesa explodiu a partir dos anos 1980. Para expor o descolamento entre a realidade e o discurso dominante, alguns artistas carregam a tinta naqueles que sofrem, outros se colocam na cena que pretendem retratar...


Cabelo espesso, parecido com os planaltos tibetanos cheios de arbustos da região de onde vem, Mo Yi expira a fumaça de seu cigarro com a indolência altiva dos velhos sábios ao desvanecer na bruma. As imagens fora de foco são frequentemente seu reino. Problemas de duração da exposição diante das mudanças sociais muito rápidas? “Eu recorro à falta de foco quando não sei como expressar as coisas”, responde o fotógrafo. Ainda mais quando elas provocam severas reações por parte das autoridades. Estas últimas não denunciaram nos anos 1980 suas fotografias de figuras resignadas, diametralmente opostas aos rostos radiantes que tinham sido impostos pela grande narração maoísta? Durante a Revolução Cultural (1966-1976), essa dupla visão lhe valeu uma impiedosa reeducação. Mas, na relativa abertura dos anos que precederam a repressão do movimento estudantil de 4 de junho de 1989, Mo substituiu a autocrítica por uma interrogação mais teórica: para ver o mundo como ele é, não valeria mais a pena fotografá-lo sem vê-lo? Nuca, costas, canelas: em todas essas partes inacessíveis a seu próprio olhar ele prende uma máquina fotográfica e aperta o botão a cada cinco passos. Mesmo que o enquadramento seja insólito, as mesmas figuras tristes reaparecem. A constatação é clara.

Entre 1966 e 1976, apenas as montanhas podiam ser enquadradas sem enquadramento; sua grandeza advogava por um patriotismo natural. Informativa ou artística, a fotografia deveria servir a um único propósito: construir a imagem plena do realismo revolucionário por meio das três figuras triunfantes do camponês, do soldado e do operário.

Foi preciso esperar a manifestação de Tienanmen de 5 de abril de 1976 e sua brutal repressão pelo “bando dos quatro”1 para ver surgir enfim os primeiros testemunhos fotográficos de um acontecimento político não controlado pelo Estado. Um momento histórico que diversos fotógrafos desejaram imortalizar. Alguns, como Li Xiaobin, organizaram no maior sigilo – as gravações eram passíveis de pena de morte – um comitê editorial encarregado de selecionar cerca de cinquenta fotografias entre as 20 mil e 30 mil coletadas. Sucessor de Mao, Hua Guofeng (1921-2008), que acabara de colocar na prisão o “bando dos quatro” e de reabilitar o movimento de 5 de abril, apadrinhou o projeto. “Essa publicidade oficial traria uma glória inesperada aos fotógrafos-editores, que continuaram sua carreira fora dos planos governamentais”, explica Wu Hu, historiador da arte.2 Sob a égide de seu clube, The April Photo Society, sua primeira exposição, intitulada “Natureza, sociedade e homem”, inaugurada em abril de 1979, foi um sucesso: 8 mil pessoas em um único domingo, para ver trezentas fotografias. “Em um país onde a arte tinha sido apenas propaganda política, qualquer representação de amor privado, de beleza abstrata ou de sátira social era considerada revolucionária”, continua Wu.

Dois movimentos se desenharam entre os fotógrafos que pretendiam enfim encarar o real. Para os que desejavam retornar às fontes (Zhu Xianmin, Yu Deshui), reagrupados sob o nome de Terra Natal, a forma se adornou com todas as virtudes do fundo. Então eles partiram para o berço da civilização chinesa para fotografar homens comuns (camponeses, habitantes das montanhas, membros de minorias étnicas...) que viviam, pensavam eles, o mais naturalmente possível ao longo do Rio Amarelo. Nessa utopia documental, o estético caía frequentemente na magnificação por vezes condescendente de uma alteridade romantizada.

Enquanto isso, outros esperavam encontrar nas margens da sociedade uma linguagem em ruptura com as convenções estéticas dominantes. Esse segundo movimento, batizado de Scar Art, testemunhava esse ordinário oculto, na linha direta de uma “literatura das cicatrizes” que, desde o fim dos anos 1970, revelava todas as violências da Revolução Cultural. Li Xiaobin foi um dos primeiros a fotografar, entre 1977 e 1980, a vida cotidiana dos camponeses que foram a Pequim pedir ao poder central a reparação dos prejuízos sofridos durante esse período. Assim, enquanto Zhang Xinmin se interessava pelos camponeses que migravam para as cidades, Zhou Hai focalizava a marginalização progressiva da classe operária submetida às novas reformas econômicas. E, enquanto Yang Yankang observava aqueles que a fé cristã enraizava desesperadamente em sua terra, Lu Nan procurava os que tinham perdido qualquer ligação, revelando, por meio dos retratos de 14 mil pacientes psiquiátricos, uma China desconhecida.

No entanto, foi na direção da destruição brutal do estilo de vida tradicional que a maioria dos olhares convergiu. Pressentindo desde o fim dos anos 1980 o desaparecimento doshutongs, bairros tradicionais de passagens e ruelas, Xu Yong os registrou metodicamente, dando nascimento à sua famosa série 101 retratos dos hutongs. Ele fotografava as ruelas tradicionais de Pequim fora de qualquer atividade humana, compondo uma documentação patrimonial que desejava a mais neutra possível, ao passo que Lu Yuanmin mostrava em sua série Shanghailanders como os habitantes de Xangai dos anos 1990 continuavam a viver apesar dos transtornos urbanos provocados pelas reformas econômicas.

Onipresentes no cotidiano

Tanto para um quanto para o outro, cada um em seu registro, histórico e social, o interesse documental prevaleceu, mesmo que, em Lu, tenha dominado a empatia do fotógrafo com seu assunto − uma tendência que Zhang Hai’er levou ao limite do paroxismo, manifestando, por seu olhar sobre as prostitutas, sua grande conivência com elas. A percepção subjetiva se tornou o filtro de toda reflexão sobre a realidade. A fotografia documental se libertou de sua função para se transformar em um projeto conceitual que Liu Zheng sublimou em The Chinese.3

Percorrendo o país, Liu foi tocado pelos chineses que encontrou. Prisioneiros, transexuais, monges, ladrões, operários, homens de negócios, prostitutas, deficientes físicos e acidentados desfilaram durante quase dez anos (1994-2002) diante de sua Hasselblad. Onipresentes no cotidiano, esses homens e mulheres estão ausentes da história oficial que molda o imaginário chinês. O fotógrafo os retratou acompanhados por manequins de cera que encarnavam, nos locais onde se elabora a mitologia nacional, como museus, memoriais ou praças, as cenas históricas (massacre de Nanquim, operário-modelo...) que cada um conhece desde a escolarização. Ao misturar personagens reais, cuja invisibilidade na narração oficial é questionada, e personagens fictícios, cuja autenticidade nenhum chinês poderia questionar e que alimentam a memória coletiva, Liu modelou em 120 retratos, todos tirados em preto e branco e no mesmo formato, uma nova história coletiva para ser compartilhada. Quando de sua publicação, em 2004, o livro The Chineseprovocou a ira das autoridades, que viram nele uma visão fabricada e negativa da China.

Quando a pequena colônia de artistas, pintores e escultores se instalou longe do poder central, na periferia de Pequim, ela encontrou inicialmente na performance o meio de expressão mais adaptado à sua raiva e à sua privação de meios. Baseada em materiais simples, a colônia, por um engajamento corporal forte de seus executores, serviu de válvula de escape para o sentimento de impotência que os minou depois da sangrenta repressão de 4 de junho de 1989. O performer não se encontra no centro de um acontecimento que ele mesmo orquestrou? Com o corpo nu, pincelado de mel, Zhuang Huan se fechou dentro de banheiros públicos. As moscas vieram. Metáfora do indivíduo sufocado sob um regime opressor? Rong Rong teve apenas de fotografar a performance. Em memória do 4 de Junho, Sheng Qi cortou o dedinho da mão esquerda. Sobre sua palma aberta, uma foto de identidade amarelada. Se as lembranças se apagam, o corpo mutilado permanece. O clichê deu a volta ao mundo. Arte do efêmero por natureza, a performance toma a fotografia como suporte de registro, sem duvidar que essas reproduções de uma realidade encenada se tornarão no mundo da arte contemporânea os ícones da fotografia chinesa pós-Tiananmen. A relação decisiva não une mais o fotógrafoe seu assunto, mas o performer – ou sua imagem – e o espectador.

Imagens fabricadas

Wang Qingsong “marca uma virada importante na história da fotografia chinesa contemporânea, que passou com ele do registro da realidade a uma fabricação completa das imagens”, ressalta o crítico de arte Gu Zheng.4 Uma de suas obras mais emblemáticas (Night revels of Lao Li, 2000) retoma uma obra-prima da pintura tradicional chinesa: O banquete noturno de Han Xizai. Esse poderoso funcionário do período das Cinco Dinastias (907-960) preocupava tanto o imperador que este decidiu mandar espioná-lo pelo grande pintor da época, Gu Hongzhong (937-975). Em cinco sequências narrativas separadas umas das outras por um hábil dispositivo de telas, o pintor contou sobre o imenso rolo os fatos e gestos do funcionário. Com uma minúcia quase fotográfica, seu pincel descreveu as noites artísticas do espionado. Se ele manifestou pouca espirituosidade, sua presença prova ao menos que não estava preparando um complô. Onze séculos depois, Wang Qingsong retomou o papel de Gu para dar testemunho de uma modernidade transbordando de vulgaridade. Cortesãs vestidas como prostitutas rodeiam um alto funcionário tão apático quanto Han Xizai. “Se as dinastias chinesas se sucederam ao longo dos séculos, o statusdos intelectuais não evoluiu nada. Não são ainda condenados a se distrair em vez de poder intervir na construção do país?” interroga.5“Artistas e intelectuais compartilham uma coisa”, continua um editor de Pequim. “Eles entenderam que era mais fácil construir uma nova representação do mundo do que construir outro mundo.”

“A encenação é esta ficção que vai me permitir decodificar a realidade apresentada”, explica por sua vez Chen Jiagang. Durante muitos anos ele fotografou os locais militares industriais do que se chama de “terceiro front”.6 Nos anos 1960, depois de sua ruptura com a União Soviética, a China, desconfiando de um ataque de Taiwan apoiado pelos Estados Unidos, transferiu seus gigantescos complexos das regiões costeiras para o centro dos maciços de montanhas − um esforço colossal (mais da metade do investimento nacional entre 1966 e 1970), abandonado a partir de 1971, em favor de um novo dado geopolítico. Em cada um desses locais, Chen colocou diversas moças vestidas com trajes tradicionais. A “bela consumível” parece responder à “fera produtiva”. “Antes era preciso produzir, hoje é preciso consumir”, resume o fotógrafo, que gosta de provocar ressonâncias entre as certezas passadas e presentes.

Ao “terceiro front” hoje fazem eco a Barragem das Três Gargantas e todas as “cidades doentes” – Diseased cities, título de seu último trabalho – construídas na precipitação ao longo do Rio Yang-tsé. Mas, como questiona Fei Dawei, especialista em arte contemporânea chinesa (encarregado-geral do festival de foto de Lianzhou em 2010), “por que mostrar nesses locais moças com trajes tradicionais?”. Subterfúgio para tornar a realidade mais desejável? Mais espetacular? É uma tendência frequente no meio da imagem chinesa atual: o termo “fotografia” se tornou muito restritivo para essa nova geração de imagens digitais, em que retoques e manipulação reinam. A fotografia documental sendo, por natureza, menos sedutora, “a maioria das encenações que agora invadem a fotografia chinesa produzem imagens superficiais e espetaculares, em total adequação com as expectativas do mercado da arte”, precisa Fei. Mesma opinião de Jean Loh, da galeria de Xangai Beaugeste, que vê nessas incontáveis imagens manipuladas por programas de computador “a tentativa do fotógrafo de se transformar em artista e abrir dessa forma um mercado da arte mais promissor”. Uma evolução que acompanha a que conheceu a fotografia ocidental. Para François Cheval, diretor do museu Nepce e responsável pelo festival de Lianzhou em 2012, “a televisão e a internet nos dão tudo ao vivo. A partir daí, aqueles que quiserem participar da história do mundo em imagem serão os que perderão tempo construindo, contando histórias, oferecendo contos que nos surpreendam e nos permitam revisitar acontecimentos que já conhecemos. Eu não acredito mais na relação entre a fotografia e o imediato”.

Hoje, dois campos se enfrentam na China: o que toma o real como material de uma ficção por vir e o que se confronta a ele, sem manipulação digital, pelo prisma direto de sua sensibilidade. Se esse último confronto alimenta frequentemente a semente mais fecunda, a profusão de imagens teatralizadas levanta a questão: essas encenações, muitas vezes espetaculares, seriam a única realidade à qual nossos sentidos estão cada vez mais permeáveis hoje em dia?

Johan Heilbron é pesquisador do Centro de Sociologia Europeia.

Philippe Pataud Célérier é jornalista.

Ilustração: Liu Zheng / Yossi Milo Gallery, New York www.yossimilo.com

 

1 Chamavam-se assim os membros da direção do Partido Comunista Chinês, entre os quais a mulher de Mao Tsé-tung, acusados de serem os instigadores da Revolução Cultural e presos no dia seguinte à morte do Grande Timoneiro.
2 Christophe Phillips e Wu Hung, Between past and future: new photography and video from China [Entre passado e futuro: nova fotografia e vídeo da China], Smart Museum Of Art, Universidade de Chicago, 2004.
3 Liu Zheng, The Chinese, com os comentários de Gu Zheng, Meg Maggio e Christopher Phillips.
4 Gu Zheng, La photo chinoise contemporaine [A foto chinesa contemporânea], Eyrolles, Paris, 2011.
5 Ver: <www.wangqingsong.com>.
6 Chen Jiagang, The great third front [O grande terceiro front], Timezone 8/Galerie Paris/Pequim, Hong Kong, 2008.


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