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200713 patentesOutras Palavras - [Joseph Stiglitz] Proibir a privatização de genes humanos foi só o primeiro passo. Para estimular a ciência e a inovação tecnológica, as sociedades não precisam de produzir desigualdades.


No meio da guerra contra a desigualdade, acostumamo-nos tanto com más notícias que quase entramos em choque quando surge algo positivo. E depois que o Supremo tribunal dos EUA decidiu que gente rica e grandes corporações têm o direito constitucional de comprar as eleições, quem esperaria que este tribunal produzisse alguma notícia boa? Mas uma decisão, no fim do primeiro semestre, resultou em algo mais precioso que apenas dinheiro: o direito de viver.

À primeira vista, a ação da Association for Molecular Pathology (Associação para Patologias Moleculares) contra a corporação Myriad Genetics parece um mistério científico. O tribunal decidiu, sem unanimidade, que os genes humanos não podem ser patenteados – embora o DNA sintético, criado em laboratório, possa. Mas o buraco é muito mais em baixo: as bases e os problemas desta questão são muito mais profundos do que é comumente entendido. Foi uma batalha entre aqueles que privatizariam a boa saúde, tornando-a um privilégio a ser desfrutado na proporção da riqueza, contra os que veem a saúde como um direito de todos – e um componente central de uma sociedade justa e de uma economia que funciona bem. De uma maneira ainda mais ampla, tem a ver com a maneira pela qual a desigualdade está a definir a política, as instituições legais e a saúde da população.

Diferentemente das batalhas amargas entre Samsung e Apple, nas quais os juízes, enquanto mostram-se pretensamente equilibrados parecem na verdade sempre estar a favor da equipa da casa, este caso foi maior do que apenas uma grande batalha entre gigantes corporativos. É uma lupa, por meio da qual podemos enxergar os efeitos perniciosos e de longo alcance da desigualdade; qual o sentido de uma vitória sobre o comportamento normal das corporações; e – não menos importante – o quanto ainda arriscamos perder nestas batalhas.

É evidente que o tribunal e os partidos não enxergam os problemas desta maneira nos seus argumentos e decisões. A Myriad Genetics, uma empresa originária de Utah, tinha isolado dois genes humanos – BRCA1 e BRCA2. Eles são importantes porque podem conter mutações capazes de significar uma pré-disposição ao cancro da mama. Conhecer a sua presença é crucial para diagnósticos em fase inicial, e também para a prevenção. A Myriad Genetics já tinha obtido as patentes para esses genes. O facto de "possuir" os genes deu-lhe o direito de privar outras companhias de testá-los. A grande questão desta disputa era aparentemente técnica: quando isolados, genes que podem surgir naturalmente são algo que possa ser patenteado?

Mas as patentes têm implicações devastadoras também no mundo real, uma vez que elas mantêm o preço dos diagnósticos extremamente alto. Testes genéticos podem ser realizados a custo baixo. Uma pessoa pode ter todos os seus 20 mil genes sequenciados por aproximadamente 760 euros – para não falar de testes muito mais baratos, para patologias específicas. A Myriad, no entanto, cobrava cerca de 3 mil euros pelo teste de apenas dois genes. Cientistas argumentaram que não havia nada inerentemente especial ou superior nos métodos da Myriad – eles simplesmente examinavam os genes que a companhia alegava possuir, e fazia-o apoiada nos dados que não estavam disponíveis às outras, por conta de suas patentes.

Horas após o Supremo Tribunal ter decidido em favor dos queixosos – um grupo de universidades, pesquisadores e advogados de pacientes, representados pela União das Liberdades Civis Americanas (American Civil Liberties Union) e pela Fundação da Patente Pública (Public Patent Foundation) –, outros laboratórios rapidamente anunciaram que também começariam a oferecer os exames para os genes do cancro da mama. Isso deixou claro que a "inovação" da Myriad era identificar genes existentes e não desenvolver um exame para eles (a Myriad não cessou de lutar neste caso e ainda moveu duas novas ações judiciais neste mês que visam impedir as companhias Ambry Genetics e Gene by Gene de realizar os seus próprios exames de BRCA, sob o argumento de que violam outras patentes que supostamente detêm).

Não deveria ser muito surpreendente o facto de a Myriad fazer todo o possível para evitar que a receita proveniente desses exames sofresse concorrência. Depois de se recuperarem parcialmente de uma queda de aproximadamente 30%, logo após a decisão do tribunal, as ações da companhia ainda continuam cerca de 20% abaixo do que eram. A empresa possuía os genes e não queriam ninguém a invadir a sua propriedade. Ao obter a patente, a Myriad, como a maioria das corporações, parecia mais motivada pela maximização dos lucros do que por salvar vidas. Se realmente estivessem preocupadas com este segundo aspeto, poderia oferecer exames menos caros, além de encorajar outras companhias a desenvolver exames melhores, mais precisos e mais baratos. Sem surpresa, a companhia alegou que as suas patentes, que permitiram preços monopolísticos e práticas excludentes, eram essenciais para incentivar futuras pesquisas. Mas quando os efeitos devastadores destas patentes ficaram claros e ela permaneceu inflexível no exercício dos direitos do seu monopólio, as pretensões de que agia em favor do bem comum não foram mais capazes de convencer.

A indústria farmacêutica, como sempre, alegou que sem a proteção de patentes não haveria incentivos para pesquisas – portanto, todos perderiam. Procurei a argumentação de um perito (pro bono) junto ao tribunal. Ele explica por que os argumentos da indústria estão errados e por que estas patentes, e outras similares, na verdade impediram a inovação, ao invés de fomentá-la. Outros grupos que apresentaram argumentos a favor dos pleiteantes, como a Associação Norte Americana de Aposentados (AARP), apontaram que as patentes da Myriad impediam os pacientes de obter uma revisão dos seus exames ou mesmo uma confirmação de diagnóstico. Recentemente, a Myriad comprometeu-se a não impedir estes exames – um compromisso revertido ao mover ações judiciais contra a Ambry Genetics e a Gene by Gene.

A Myriad negou o exame a duas mulheres, ao rejeitar o seguro de saúde delas – segundo os pleiteantes, pelo facto de o valor do reembolso ser muito baixo. Outra mulher, após uma rodada de exames da Myriad, foi obrigada a tomar decisões agonizantes sobre fazer uma única ou dupla mastectomia ou ter os seus ovários removidos, com completa falta de informação. O custo de um exame adicional de mutação de BRCA era inacessível (a Myriad cobra 532 euros a mais por informações que as orientações nacionais dizem que devem ser fornecidas aos pacientes). E a revisão dos exames era impossível devido às patentes da Myriad.

A boa notícia que vem do Supremo Tribunal é que, nos Estados Unidos, os genes não poderiam ser patenteados. De certa maneira, o tribunal devolveu às mulheres algo que elas pensavam que já tinham. Isto teve duas grandes implicações práticas: uma é que agora pode haver competição para o desenvolvimento de exames mais precisos e menos caros para o gene. Poderemos novamente ter um mercado competitivo movendo a inovação. A outra é que mulheres pobres terão oportunidades mais igualitárias de vida – neste caso, de diagnosticar o cancro de mama.

Mesmo sendo extremamente importante, esta vitória é apenas um fragmento do cenário de propriedade intelectual que é pesadamente definido pelos interesses corporativos – frequentemente norte-americanos. Os Estados Unidos tentaram aplicar o seu regime de propriedade intelectual a outros países, através da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de outros acordos bilaterais e multilaterais de comércio. Atualmente, o mesmo objetivo é perseguido por meio do chamado Acordo Estratégico Trans-Pacífico de Associação Económica ("Trans-Pacific Partnership"). Acordos de comércio são, teoricamente, um importante instrumento de diplomacia: a integração no comércio promove outros acordos, noutras dimensões. Mas as tentativas do escritório de representação do comércio dos Estados Unidos de convencer os outros estão voltadas para os que consideram os lucros corporativos mais importantes do que a vida humana. Isto assinala o posicionamento internacional norte americano: o estereótipo do norte americano estúpido.

O poder económico normalmente fala mais alto do que valores morais. Em muitas instâncias nas quais os interesses corporativos americanos prevalecem, em relação à propriedade intelectual, as nossas políticas ajudam a aumentar a desigualdade no exterior. Na maioria dos países é muito parecido com os Estados Unidos: as vidas da população mais pobre são sacrificadas no altar dos lucros corporativos. Mas mesmo naqueles onde, digamos, o governo proveria um exame como o da Myriad com preços acessíveis para todos, há um custo: quando um governo paga preços de monopólio por exames médicos, ele gasta dinheiro que poderia ser gasto para salvar outras vidas.

O caso da Myriad representou a materialização de três mensagens-chave de meu livro O Preço da Desigualdade. Primeiro, argumento que a desigualdade social foi um resultado não somente das leis económicas, mas também de como formatamos a nossa economia – por meio da política, incluindo quase todos os aspetos no nosso sistema legal. Aqui, é nosso regime de propriedade intelectual que contribui desnecessariamente à forma mais grave de desigualdade. O direito à vida não deveria estar subordinado à possibilidade de pagar por ele.

O segundo é que alguns dos aspetos mais perversos de criação de desigualdade no nosso sistema económico são um resultado de rent-seeking [busca de renda]. São lucros e desigualdade gerados pela manipulação social, ou das condições políticas, para obter um pedaço maior da fatia de bolo da economia – ao invés de fazer o bolo crescer. E a parte mais injusta desta apropriação de riqueza ocorre quando os lucros de quem está no topo são gerados às custas de quem está na base. Os esforços da Myriad satisfaziam ambas condições: os lucros que a companhia auferia pela cobrança dos exames não adicionavam nada ao crescimento e ao dinamismo da economia e, simultaneamente, diminuíam a riqueza dos que não podiam pagar por eles.

Enquanto todos os segurados contribuíam para os lucros da Myriad – os "premiums" tinham que subir de categoria e milhões de norte-americanos com rendimento médio e sem seguro tinham que pagar os preços monopolísticos da Myriad – os dessegurados na base da pirâmide eram os que tinham que pagar os preços mais altos. Com o preço inacessível do exame, foram eles que enfrentaram maior risco de morte precoce.

Os defensores dos direitos de propriedade intelectual dizem que este é simplesmente o preço que temos que pagar para produzir inovação que a longo prazo salvarão vidas. Seria uma troca: a vida de mulheres relativamente pobres hoje versus a vida de muitas outras mulheres, em algum momento do futuro. Mas esta alegação está errada em vários aspetos. Neste caso em particular, é especialmente errado pelo facto de que havia grandes oportunidades de estes dois genes serem isolados ("descobertos", na terminologia da Myriad) sem muita demora, como parte do projeto global "Projeto Genoma Humano". Mas é errado em outros aspetos também. Pesquisadores genéticos argumentaram que esta patente impedia o desenvolvimento de melhores exames e também interferia no avanço da ciência. Todo o conhecimento é baseado em conhecimentos anteriores. Se eles tornam-se menos acessíveis, a inovação fica comprometida. A própria descoberta da Myriad – como qualquer outra ciência – usou tecnologias e ideias que também foram desenvolvidas por outras companhias. Se estes conhecimentos prévios não estivessem disponíveis publicamente, a Myriad não poderia ter feito o que fez.

E este é o terceiro grande tema. Chamei o meu livro de O preço da desigualdade para enfatizar que ela não é apenas moralmente repugnante mas também tem custos materiais. Quando o regime legal que governa os direitos de propriedade intelectual é precário, ele facilita o rent-seeking – e o nosso regime é precário, embora esta e outras decisões recentes do Supremo Tribunal conduziram a um regime que já é melhor do que poderia ser. E o resultado é que existe, na verdade, menos inovação e mais desigualdade.

Na verdade, um importante insight de Robert W. Fogel, historiador económico e vencedor de um prémio Nobel que morreu no mês passado, foi que a sinergia entre melhorias na saúde e a tecnologia é responsável por uma grande parte da explosão do crescimento económico desde o século XIX. É por isso que os regimes de propriedade intelectual que criam rendas monopolistas e bloqueiam o acesso à saúde provocam desigualdades e dificultam o crescimento de forma generalizada.

Existem alternativas. Advogados de direitos da propriedade intelectual têm superestimado o seu papel de promotora da inovação. A maioria das inovações-chave – das ideias básicas que levaram aos computadores aos transistores, lasers ou a descoberta do DNA – não foram motivadas por lucros financeiros. Foram provocadas pela busca do conhecimento. É evidente: recursos precisam estar disponíveis. Mas o sistema de patentes é apenas uma maneira, e frequentemente não é a melhor, de prover esses recursos. As pesquisas financiadas pelos governos, fundações e o sistema de premiações (que oferece um prêmio a quem faz a descoberta e depois a torna amplamente acessível usando o poder dos mercados para benefícios reais) são alternativas, com maiores vantagens e sem as desvantagens do aumento de desigualdades do atual sistema de direitos de propriedade intelectual.

O esforço da Myriad para patentear o DNA humano foi uma das piores manifestações das desigualdades no acesso à saúde e das sociais nos Estados Unidos. O facto de a decisão do Supremo Tribunal ter mantido direitos e valores preciosos é motivo para um breve alívio. Mas é apenas uma vitória na grande luta por uma sociedade e economia mais igualitárias.

Tradução: Cristiana Martin


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