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História Sumária do Racismo no Brasil (Segunda Parte)

Mário Maestri

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História Sumária do Racismo no Brasil (Segunda Parte)

Mário Maestri - Publicado: Domingo, 28 Novembro 2010 01:00

Mário Maestri

4. A Racionalização da Escravidão Negro-Africana

Com a defesa da justiça, inevitabilidade, interesse social, etc. da opressão, almeja-se consolidar a sociedade de classes, obtendo-se assim mais fácil submissão dos subordinados.


A operação procura também superar contradições entre concepções gerais das classes dominantes que se oponham à violência social instituída – racionalismo, universalismo, humanismo, etc. A unidade e identidade da espécie humana são realidades objetivas registradas fortemente nas práticas sociais, com destaque para o ato produtivo. As teses justificativas são em geral engendradas pelas classes dominadoras, no contexto do esforço permanente de reprodução das relações sociais em que se apóiam, e selecionadas e refinadas por seus intelectuais orgânicos – clérigos, artistas, intelectuais, etc. Com a consolidação da América escravista, a intelectualidade portuguesa e, a seguir, européia, desenvolveu refinadas racionalizações da escravidão negro-africana.

Nos primeiros tempos, as justificativas da escravidão negra apoiaram comumente a escravidão negra na Bíblia. Segundo a Gênesis, ao sair da arca, Noé tinha três filhos – Sam, Cam e Jafet. Ao criar a vinha e o vinho, Noé embriagou-se e "despiu-se completamente dentro de sua tenda". Cam teria comentado a nudez do pai com os irmãos ou feito coisa pior. Ao recuperar-se do porre primordial, Noé amaldiçoou Canaã, pelo pecado do seu pai Cam, determinando que fosse "escravo" dos tios. Um registro claro da visão e então da responsabilidade da família e do clã pelos atos de um de seus membros. Entretanto, a Bíblia não ligava os descendentes de Canaã aos negro-africanos.

Explicara-se a escravização dos muçulmanos pela rejeição ímpia do cristianismo. Entretanto, o negro-africano desconhecia totalmente a palavra divina, jamais anunciada nessas paragens do mundo. Não podia ser acusado de desprezar a verdadeira fé. Isso não foi um grande empecilho. Com a bênção explícita de Roma, a escravização do africano livre foi compreendida como indenização necessária dos gastos dos cristãos para levar a fé verdadeira a esses territórios exóticos. Os ideólogos da época lembravam que era carga pequena a "sujeição" do corpo, na breve existência terrena, pois o negro-africano ganharia a possibilidade da eterna "soltura", na infindável vida eterna. Um ótimo negócio, portanto, para o escravizado!

A escravidão seria igualmente o pagamento pelos gastos com o "resgate" do negro-africano destinado ao sacrifício ou à escravidão na África. O cativo viveria em melhores condições nas Américas, servindo ao cristão, do que na África, ao serviço de um bárbaro. As boas condições de vida na escravidão colonial e a existência de escravidão na África são teses dos escravistas defendidas por historiadores atuais, em apologias da sociedade de classes do passado. A escravização do africano em "guerra justa" foi argumento de uso decrescente quando o tráfico transformou-se em atividade comercial de grande vulto e deixou necessariamente de depender de razias européias na costa.

Já no século 16, essas explicações eram questionadas pelos raros intelectuais, como Domingo de Soto, Martín de Ledesma e Fernão de Oliveira, para assinalarmos aos ativos em Portugal. Em geral, eles foram duramente punidos por se porem, direta ou indiretamente, ao lado dos trabalhadores escravizados, em um mundo fortemente coerido pelo tráfico negreiro e pela exploração escravista. Entretanto, a grande justificativa da escravidão do negro-africano foi a tese aristotélica de sua pretensa inferioridade natural. Ele seria um ser bruto, de razão limitada, incapaz de viver por si só em sociedade. Devia, portanto, também em seu proveito, submeter-se à autoridade de um amo.

O teólogo católico italiano Aegidius Romanus (c.1247-1316) definira as características do homem semibestial, destinado naturalmente à escravidão, segundo Aristóteles. Sua essência inferior expressava-se sobretudo na incapacidade de distinguir-se claramente dos animais "pela alimentação, pelo vestuário, pela fala e pelos meios de defesa". O fato de não possuir leis e governo claramente instituídos era igualmente prova de limitação de um homem e uma comunidade. Para essa visão essencialista e a-histórica, tais características assinalariam uma razão humana limitada.

Em Crónica da Guiné, de meados do século 15, Gomes Eanes de Zurara apontou os sinais de bestialidade do negro-africano do litoral da África. Ele não se alimentava com comidas complexas e mais nobres, como o pão e o vinho; desconhecia as vestimentas, andando nu; tinha linguagem, armas, moradias, instrumentos, etc. rústicos. O cronista real português lembra que a nudez identificava a "bestialidade", pois os homens com razão plena seguiam a "natureza", "cobrindo aquelas partes". Sobretudo, os negro-africanos não conheciam autoridade superior, ou seja, rei ou senhor, não formavam sociedade complexa, e, mais grave ainda, viviam em "ociosidade bestial".

Zurara lembrava que, em Portugal, o negro-africano aprenderia o português, superando os falares bárbaros; cobriria suas vergonhas, vestindo-se, ainda que minimamente; não passaria fome, comendo pão e bebendo vinho, alimentos civilizados; trocaria seu tugúrio por casas de homens; se submeteria a governo legítimo e não viveria à margem da lei, como os animais. Principalmente, ele se dedicaria a um trabalho produtivo sistemático, sob a autoridade [e o proveito, é lógico] de um senhor. A colaboração entre escravizador europeu branco, nascido para mandar, e o escravizado africano negro, surgido para o trabalho, realizaria desígnio imposto pela natureza, constituindo-se sociedade harmônica e feliz. Mutatis mutandis, tese retomada atualmente pela historiografia da escravidão, através da proposta de convergência de interesses, através da negociação e transição entre escravizados e escravizados.

As visões de mundo dos exploradores determinam que selecionem, enfatizem, organizem etc. os fenômenos perceptíveis segundo suas necessidades sociais. A visão européia do negro-africano inferior constituiu-se a partir de apreciação preconceituosa e de classe das sociedades negro-africanas aldeãs do litoral do Continente Negro, de grande simplicidade. Mais tarde, os europeus tiveram notícias ou estabeleceram contatos com o que restava dos magníficos reinos e impérios do interior da África – Ghana, Mali, Songaí, etc. Então, simplesmente, neutralizaram o impacto dessas descobertas, sobre a proposta da insuficiência racional do negro-africano, definindo aquelas construções sociais como reprodução abastardadas, no interior do continente, das civilizações da orla mediterrânica da África.

5. O Negro da Terra e o Negro da África

A escravidão americana não se deveu à incapacidade dos europeus de trabalharem fisicamente nas Américas, necessitando portanto de um ser apto ao trabalho rústico, como propuseram explicações racistas, tais como as abraçadas por Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala. Também não é pertinente a tese do recurso à mão de obra servil africana devido à insuficiência de braços na Europa. A França contava com multidões de indigentes sem ocupação e lançou igualmente mão ao trabalho escravizado em suas colônias açucareiras.

A poderosa refundação do escravismo no alvorecer dos tempos modernos deveu-se à impossibilidade dos exploradores de submeter o europeu à dura exploração da empresa colonial. Com a abundância de terras, ao homem livre pobre era preferível – e possível – viver economia de subsistência, do que ir trabalhar na plantagem ou na mineração por pouco mais do que um prato de farinha. Como já dito, para que haja exploração, quando a terra é livre, o trabalho deve ser necessariamente escravizado. Apenas com a plena apropriação da terra o trabalho pode ser libertado da coerção física.

A escravidão americana, produto de exigência econômicas, não foi uma mera refundação americana do escravismo da Antiguidade. Em seu trabalho clássico O escravismo colonial, Jacob Gorender lembrava que o escravismo americano foi superação qualitativa da escravidão antiga. Quando da descoberta das Américas, estavam dadas plenamente as condições gerais necessárias para que a produção escravista superasse o nível pequeno-mercantil que conhecera, quando da agonia do Império romano, assumindo o caráter de grande exploração dirigida para o mercado.

Os avanços na navegação permitiam que grandes quantidades de homens e de mercadorias fossem transportadas através do Atlântico com relativa segurança. Os avanços técnicos na produção forneceram o maquinário complexo exigido, por exemplo, pelos engenhos açucareiros, para organizar grandes plantéis de produtores feitorizados. Havia igualmente suficiente acumulação mercantil de capitais para financiar a empresa colonial. E, sobretudo, a expansão da economia européia criara mercado em contínua expansão tendencial, capaz de absorver incessantemente valorizados produtos coloniais, em geral incapazes de serem produzidos na Europa.

Havia igualmente mão-de-obra abundante capaz de sustentar a produção escravista americana; Quando da chegada dos europeus ao Caribe, em outubro de 1492, havia já meio século que negro-africanos haviam começado a ser capturados nas costas mediterrâneas da África e transportados para Portugal, para serem vendidos como cativos, substituindo crescentemente o muçulmano escravizado – mouro. Entretanto, nos primeiros tempos, não foi o negro-africano que labutou até a morte no Novo Mundo, para encher os bolsos dos comerciantes, proprietários fundiários e aristocratas europeus.

A exploração colonial das Américas inaugurou-se com a submissão brutal dos povos nativos, o que ensejou um decréscimo populacional abismal, mesmo de regiões densamente habitadas. Essa hecatombe demográfica foi explicada apologeticamente por amplos setores da historiografia contemporânea como devido a causas epidemiológicas. O tráfico de trabalhadores negro-africanos começou a ser desviado para as Américas em forma substancial apenas quando a população autóctone dizimada mostrou-se incapaz de sustentar economia apoiada na exploração despótica do trabalho forçado.

A divisão da costa brasílica em colônias, entregues a donatários, objetivava uma procura sistemática das magníficas minas que se acreditava possuir essas regiões, ao igual que as possessões andinas de Espanha. Muito logo, porém, conveio-se que o ouro dessas regiões não era dourado, mas branco. A grande e única diferença era que não seria arrancado das entranhas da terra, mas cultivado, colhido, beneficiado, tudo com o esforço do trabalhador escravizado, duramente expropriado dos frutos de seu trabalho. Por décadas, como nas colônias espanholas, também na faixa litorânea brasílica, o produtor feitorizado foi o nativo americano. E, como, nesse então, a palavra negro já assumira em Portugal o sentido de trabalhador escravizado, o americano feitorizado foi chamado de negro da terra..

São construções ideológicas as explicações da substituição da escravidão do americano pelo cativeiro do negro-africano como resultado da fragilidade física, da resistência indômita ou da incapacidade congênita ao trabalho sistemático do nativo brasílico; Essas teses racistas foram também abraçadas por Gilberto Freyre em Casa grande & senzala, obra nos últimos tempos objeto de enorme movimento de legitimação acadêmica. Após serem exterminadas as reservas de braços da faixa litorânea, os colonos portugueses iniciaram as chamadas descidas de populações nativas que haviam se homiziado nas terras do interior, até sua igual exaustão relativa.

Apenas quando o braço americano mostrou-se já definitivamente incapaz de saciar a fome pantagruélica de trabalhadores e trabalhadoras, o tráfico internacional começou a desembarcar, ao longo do litoral, trabalhadores africanos escravizados destinados a labutarem comumente até a morte em um mundo que se chamou de Novo. Uma substituição que se deu, essencialmente, nas colônias da costa vinculadas ao comércio colonial e, portanto, capazes de pagarem pelos caros cativos negros. Nas colônias mais pobres, seguiu a feitorização do nativo americano, em forma apenas disfarçadas, mesmo após sua definitiva proibição.

6. A Produção Africana de Cativos Coloniais

Em mais de três séculos e meio, o tráfico transatlântico arrancou do continente negro talvez quinze milhões de homens e mulheres, em geral muito jovens, no maior deslocamento forçado e permanente de trabalhadores conhecido pela humanidade. Esse processo multitudinário foi possível apenas devido sobretudo à importante população africana disponível, posta à disposição do tráfico por importantes instituições africanas. A cor da pele não teve qualquer interferência inicial nesse processo, de sentido essencialmente social e econômico. O racismo anti-negro foi conseqüência e jamais causa do tráfico e da escravidão americana.

No século 15, por razões sanitárias, econômicas, de comunicação, etc., era o interior – e não as costas – as regiões mais densamente habitadas da África Negra. Nesse então, em forma geral, as sociedades negro-africanas praticavam múltiplas formas de organização familiar-aldeã [modo de produção aldeão-doméstico, segmentar, de linhagem, etc.], sobre as quais se levantavam pequenos, médios e grandes Estados. Em raras regiões esboçava-se apenas a propriedade privada da terra. Bem comunal, a terra era possuída e explorada pela comunidade aldeã, que a disponibilizava para todos os seus membros plenos.

As aldeias africanas constituíam-se a partir de múltiplas famílias ampliadas, formadas pelo patriarca, suas esposas, filhos, noras, netos, agregados. A família celular e a divisão sexual do trabalho desempenhavam função de base nessa organização social. Era mais comum que a mulher se dedicasse à agricultura enquanto o homem praticava a caça, a pesca, a grande coleta, a guerra, etc. O homem rico possuía diversas esposas e muitos filhos; os jovens esforçavam-se para conseguir uma esposa e fundar uma família.

Nas aldeias, um patriarca exercia o poder político, pouco se diferenciando dos outros membros da comunidade. Nas federações de diversas aldeias – cheferias –, o mando era monopólio de membro de famílias aristocráticas, que se apartava crescentemente da produção, segundo seu maior ou menor poder. Pequenos, médios e grandes Estados praticavam a tributação do comércio, do direito de circulação, das comunidades aldeãs, etc. Os suseranos africanos, pertencentes a famílias singulares, apoiavam seus poderes na tributação da comunidade familiar-aldeã, do comércio e da mineração, sobretudo.

O núcleo familiar-aldeão possuía acesso pleno à terra e orientava sua produção para a subsistência. Em geral, todas as famílias produziam os mesmo produtos. Realidade que limitada fortemente as trocas inter-familiares e inter-comunitárias. O comércio local, regional e internacional intercambiava sobretudo a produção dos setores especializados, ou seja, de produtos não produzidos localmente pela economia aldeã – caça, pesca, peixe, sal, cola, etc.

O casamento delimitava as obrigações dos esposos, desequilibradas em favor dos homens. Mesmo não constituindo sociedade classista, a organização familiar-aldeã praticava a exploração das esposas, dos filhos, dos agregados em favor dos patriarcas, dos homens e dos esposos. As trocas matrimoniais davam-se entre as famílias e aldeias, preferindo-se as esposas de comunidades distantes, mais flexíveis às exigências dos consortes e de seus parentes, pois não podiam se apoiar em seus familiares.

Não havia espaço social para membros não vinculados a uma comunidade aldeã. Órfãos, prisioneiros, refugiados, etc. eram inseridos em uma família ampliada, em situação de subordinação, como filhos do patriarca, a quem deviam obrigações, das quais não se livraram sequer relativamente ao se casarem. Seus filhos seguiam sendo filhos do patriarca e não dos pais biológicos. A distância da região natal de um agregado dificultava uma fuga e aumentava seu valor.

A comunidade aldeã não conhecia a prisão, praticando como penas as multas, a morte, a perda da liberdade, etc. Aldeões e aldeãs condenados por feitiçaria, adultério, mortes, dívidas, etc., perdiam a liberdade e eram introduzidos em importante sistema de trocas que tendia a afastá-los, como as esposas, de suas regiões natais, para serem incorporados a famílias ampliadas como agregados. Esse movimento tendia a aumentar a produtividade da força do trabalho, ao radicalizar o grau de exploração dos indivíduos objetos desse processo. Esse movimento abria caminho da sociedade africana em direção à sociedade de classes.

Essa situação de dependência não pode ser identificada à escravidão. Os deveres do agregado para com o patriarca eram delimitados consuetudinariamente. O cativo incorporado a uma família ampliada como agregado podia casar, ter filhos, nos limites assinalados. Sua servidão – relativamente branda – extinguia-se na terceira ou quarta geração, ao diluir o estranhamento comunitário dos descendentes dos seus descendentes, permanecendo apenas uma origem genealógica desabonadora, já que não entranhada profundamente no passado comunitário local.

Com a organização do tráfico atlântico, importante parte da multitudinária circulação de esposas e, sobretudo, de cativos, foi desviada do interior para as feitorias européias da costa, para serem enviada às Américas, para conhecer o inferno da escravidão colonial. A produção de cativos, através de razias, de assaltos, da aplicação patológica da Justiça, etc., por africanos, envolveu enormes regiões da África Negra, que perdeu para as Américas multidões de seus mais jovens e saudáveis filhos. Nas costas africanas surgiram poderosos Estados africanos destinados à captura e exportação de cativos, que se locupletaram da expatriação de milhões de cativos para as Américas – Daomé, Oió, Benin, etc.

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História Sumária do Racismo no Brasil (Primeira Parte)


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