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Anotações para um estudo histórico sobre o PT do Brasil

Valério Arcary

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Anotações para um estudo histórico sobre o PT do Brasil

Valério Arcary - Publicado: Domingo, 10 Outubro 2010 14:07

Valério Arcary

Estamos de punhos fechados, mas com as mãos nos bolsos. Rosa Luxemburgo


Fala-se de capitães sem exército, mas, na realidade, é mais fácil formar um exército do que formar capitães. Tanto isto é verdade que um exército já existente é destruído se faltam os capitães, ao passo que a existência de um grupo de capitães, harmonizados, de acordo entre si, com objetivos comuns, não demora a formar um exército, até mesmo onde ele não existe.

Antonio Gramsci [1]

Corra camarada, o velho mundo está atrás de nós

Pichação do Maio de 1968 francês

Uma parcela significativa dos militantes da esquerda brasileira que viveu a vaga de greves a partir de 1978, e a reorganização dos movimentos sociais e da esquerda que levou à construção da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Partido dos Trabalhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT), e do Movimento dos Sem Terra (MST) e que permanecem politicamente ativos, mas sem cargos nas administrações do Estado, nos aparelhos políticos e sindicais, estão inconsoláveis. Decepção, desencanto, e até desmoralização. Na verdade, são várias as gerações de ativistas das últimas décadas que estão perplexas diante do balanço político de oito anos de governo do PT.

Em contrapartida, os elogios das autoridades do Fundo Monetário Internacional (FMI), e dos governos das principais potências imperialistas que dominam o mundo – unânimes, sejam mais liberais, como Obama, ou conservadores, como Ângela Merkel - não poderiam ser mais magnânimos. Seria injusto esquecer que uma parte da liderança burguesa brasileira não tem sido ingrata e reconheceu publicamente o apreço pelo governo Lula.

Paradoxalmente, o apoio ao Governo Lula nas pesquisas de opinião de 2010 tem sido espetacular, embora, como sempre, seja necessária uma mediação, porque as circunstâncias da campanha eleitoral são excepcionais, se considerarmos que a candidatura que unificou a direita desistiu de fazer oposição, e as candidaturas de esquerda anticapitalistas foram silenciadas. É interessante lembrar que taxas de aprovação também positivas, embora mais baixas, não impediram que o PT tivesse um resultado adverso nas eleições municipais de 2008, perdendo na cidade de São Paulo e Porto Alegre, e vendo sua influência diminuir na região sudeste - onde se concentra a industrialização – e nas grandes cidades, embora tenha mantido, ou até ampliado, posições no nordeste e crescesse nos interiores do país.

Muitos se perguntam se o governo Lula e o possível governo de sua sucessora, Dilma Rousseff, com uma política macro-econômica neoliberal e políticas públicas focadas não seria o enterro da esquerda por um longo período histórico. O argumento deste texto poderá chocar, mas procura demonstrar o inverso. Há mais de uma década que a situação brasileira não era tão prometedora quanto agora, apesar do governo Lula. São duas as razões que permitem prognosticar que já se iniciou um processo de superação da influência do PT sobre os setores chaves da classe trabalhadora brasileira: o primeiro, e mais importante, é a própria experiência do governo Lula, ainda que seja uma experiência incompleta; o segundo é a profundidade da crise econômica internacional do capitalismo que não deixará de ter consequências político-sociais nos anos que vêem. O paralelo histórico mais produtivo deveria ser feito com o final dos anos setenta – quando o PCB perdeu a posição de partido majoritário na esquerda -, e não com o começo dos anos sessenta – quando a derrota diante da contra-revolução em 1964 destruiu as esperanças reformistas da geração do pós-guerra. A esquerda já começou a ser reconstruída, não está na iminência de ser destruída. Ainda que fragmentada política e sindicalmente, a esquerda anticapitalista pode se colocar o desafio de ajudar a classe trabalhadora a superar os limites que o PT representou.

Dois caminhos teóricos para uma explicação marxista da evolução do PT

Permanecem vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Partidos podem ser julgados pela história de suas linhas políticas, as campanhas públicas em que se engajam, e de suas lutas políticas internas; pelo confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando estão no poder; pelo programa para a transformação da sociedade, ou até pelos valores e idéias que inspiram sua identidade; pela composição social de seus membros - militantes ou simpatizantes - ou dos seus eleitores, ou da sua direção; pelo regime interno do seu funcionamento; pelas formas de seu financiamento; ou pelas suas relações internacionais.

Todos estes critérios são válidos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução. Porque, como tudo que existe, os partidos se transformam e, não poucas vezes, estas mudanças são de tal forma qualitativas, ou estarrecedoras, que eles se tornam irreconhecíveis, quando comparados ao que foram originalmente. Só não se pode é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio. Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é, finalmente, inescapável, para um juízo dos partidos políticos.

Existem, grosso modo, dois caminhos teóricos para o marxismo tentar explicar como o PT se transformou em um apêndice do lulismo, ou seja, em um partido que consegue atrair um volume maior de doações dos capitalistas, nas eleições presidenciais de 2010, para a candidata que Lula escolheu e impôs ao partido, Dilma Rousseff, do que a candidatura Serra. Estes dois caminhos não se excluem, ao contrário, se completam.

Para se decifrar o PT, reconhecendo-o como uma singularidade histórica, ou seja, como um problema instigante, porque original, pode-se recorrer aos instrumentos de uma análise político-sociológica: essa análise, mais atenta às mudanças estruturais da natureza social do partido, vai recortar no objeto de estudo, por exemplo, as posições políticas do partido e a evolução de suas bases sociais de apoio, entre eles o apoio eleitoral, e de financiamento, para concluir o que mudou no caráter de classe do partido.

Considerado este ângulo político-sociológico, o PT nasceu como um partido operário com influência minoritária de massas; com uma corrente majoritária na direção, desde a fundação, liderada por uma fração da burocracia sindical com aspirações de classe pequeno-burguesas; um núcleo dirigente que aceitava o papel de caudilho de Lula, simultaneamente, como porta-voz público e como Bonaparte interno de suas frações; um programa democrático-radical de reformas, ou seja, de regulação social do capitalismo, que se convencionou denominar de democrático-popular; relações internacionais híbridas que uniam o apoio de uma parcela da hierarquia católica, via Holanda e Alemanha (com relações institucionais minoritárias no Vaticano), o apoio de uma parcela da social-democracia internacional (via PS francês e SPD alemão), o apoio de uma parcela do aparelho estalinista internacional (via Cuba e, posteriormente, o Estado da Alemanha Oriental). Ao longo destes trinta anos, o PT se manteve como o partido de maior influência no movimento operário e sindical, porém, com uma perda de apoio entre os setores mais combativos. Entre os anos oitenta e noventa o PT ampliou a sua audiência nas classes médias urbanas e, sobretudo, deixou de ser uma preocupação para a burguesia brasileira que já o sustentou nas eleições presidenciais de 1994. Entre 1994 e 2002, via Fundos de Pensão e através das participações na gestão de Fundos públicos, a burocracia sindical da CUT, ainda o principal aparelho de apoio social da direção do PT, entrou no mundo dos negócios. Depois da eleição de 2002, o PT passou a ter relações orgânicas com o grande capital brasileiro, e passou a aceitar, sobretudo depois de 2005, com a crise do mensalão, o novo papel cesarista de Lula como líder incondicional.

Outro caminho seria uma análise histórico-política do partido: essa análise, mais atenta às transformações programáticas e à localização político-social, vai recortar no objeto de estudo a periodização da relação do partido com o Estado, o regime político e os governos, para concluir o que mudou na posição que o partido ocupa na sociedade. Considerado este ângulo histórico social, a história do PT pode ser dividida em cinco fases qualitativamente distintas: (a) entre 1980 e 1985, o PT foi um partido de oposição ao regime militar e ao governo Figueiredo, e principal impulsionador de todas as lutas sociais contra a ditadura e, assim, conquistou a liderança nos movimentos sociais, deslocando o papel que antes de 1964 pertencia ao PCB; (b) depois da eleição de Sarney no Colégio Eleitoral e, sobretudo, depois da eleição da Constituinte em 1986, o PT deixou de ser um partido de oposição ao regime, agora um regime democrático-eleitoral, mas continuou sendo um partido de oposição intransigente ao governo, ainda que a eleição para Prefeitura de São Paulo em 1988 o tivesse pressionado à colaboração institucional nos limites da ordem legal; (c) depois da eleição de Collor em 1989 e, sobretudo, depois das eleições para os governos estaduais de 1990, com a eleição de Vitor Buaiz no Espírito Santo, o PT deixou de ser um partido de oposição sistemática ao governo Collor, por isso, a sua direção se recusou a tomar a iniciativa para começar uma campanha pelo Fora Collor em 1991, mas depois que a campanha ganhou sustentação de massas nas ruas, apesar do PT, a apoiou; (d) depois da eleição de FHC em 1994, até 2002, o PT manteve a posição de oposição parlamentar, porém, recusando-se a mobilizar a sua base social de apoio para tentar impedir o governo FHC de governar, mesmo quando em 1999, se abriu a possibilidade de fazer contra FHC um movimento semelhante ao que foi feito contra Collor; (e) finalmente, depois da vitória de Lula, ou mais precisamente depois da Carta aos brasileiros em julho de 2002, ao se transformar em partido de governo, o PT passou a ser o principal suporte da contenção social para garantir a governabilidade de Lula.

Seguindo o primeiro caminho, repercutiu o artigo de André Singer, Raízes sociais e ideológicas do lulismo, na Revista do CEBRAP. A hipótese instigante – e, essencialmente, correta - de Singer repousa na interpretação da diferença entre os apoios sociais do petismo e do lulismo. Enquanto o voto petista teria sido, pelo menos até à eleição de 2002, um voto dos setores organizados dos assalariados – unindo as camadas mais especializadas da classe operária (metalúrgicos, químicos, petroleiros), e os trabalhadores urbanos com escolaridade mais elevada (bancários, professores, funcionários públicos) – o voto lulista, já em 2006, remete ao subproletariado, a massa popular que veio a ser beneficiada por programas sociais focados como o Bolsa Família:

Em trabalhos sobre a eleição de 1989, notei, entretanto, que a vitória de Collor não decorria apenas de promessas fáceis. Havia uma hostilidade as greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 ate as vésperas da primeira eleição direta para presidente, e da qual Lula era, então, o símbolo maior. Observava-se um aumento linear da concordância com o uso de tropas para acabar com as greves conforme declinava a renda do entrevistado, indo de um mínimo de 8,6%, entre os que tinham renda familiar acima de vinte salários mínimos, a um máximo de 41,6% entre os que pertenciam a famílias cujo ingresso era de apenas dois salários mínimos. Em outras palavras, ao contrario do esperado, os mais pobres eram mais hostis às greves do que os mais ricos. Em parte, e essa inversão que faz a nova hegemonia parecer "as avessas".[2]

É verdade que os mais pobres eram mais hostis às greves do que os menos pobres e os remediados, porque esses eram, e permanecem sendo, os setores sociais entre os assalariados que conseguiram, pelo menos, alguma forma de representação sindical. Por outro lado, o universo de pesquisa ao fazer a estratificação social pela renda medida em salários mínimos, desconsidera a classe média proprietária que vive de aplicações e aluguéis, e os verdadeiramente ricos, ou seja, os capitalistas, que nunca apoiaram greves e, nos anos oitenta, não tiveram qualquer simpatia pelo PT.

É interessante observar que essa base social nova do lulismo foi, como admite Singer, a base eleitoral que, no passado de vinte anos atrás, foi atraída por Collor – na verdade, foi a mesma que sustentou depois a eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso – porque consiste em um massa popular com escolaridade muito baixa, sindicalmente, desorganizada, portanto, politicamente, mais vulnerável, e dependente do clientelismo. Não por acaso o PT de 1989 não podia depender de doações dos grandes bancos e monopólios, e o PT de 2010 não poderia nem começar a fazer campanha eleitoral sem os recursos de dezenas de milhões de reais que recebe das grandes empresas.

A inversão da dinâmica social do voto petista é tão significativa quanto a mudança social nas suas fontes de financiamento. Já foi observado o deslocamento do voto do subproletariado (aqueles que ganham menos de dois salários mínimos) na direção do lulismo, mas não foi destacado, na mesma proporção, o giro da simpatia pelo petismo na classe trabalhadora para os partidos mais à esquerda, essencialmente, PSol e PSTU. Foi esse giro que permitiu a reorganização sindical que originou a Conlutas e as Intersindicais, e à Frente de Esquerda, com a candidatura de Heloísa Helena, atingir os 7% em 2006, depois de ter alcançado, antes do primeiro turno, a preferência de mais de 12%.

Essa dinâmica social e política de ruptura de setores de massas da classe trabalhadora mais organizada, e com salários menos miseráveis – os mesmos que deram ao PT e a Lula a sua confiança nos anos oitenta - com o PT, foi desacelerada desde 2006, mas não foi bloqueada. Embora os dois processos sejam simultâneos, têm, evidentemente, dimensões e ritmos diferentes. As novas bases eleitorais que o lulismo vem ganhando são, eleitoralmente, muito maiores que as bases eleitorais que o petismo vem perdendo, porém, social e politicamente, menos influentes. O segundo fenômeno, portanto, poderá ser mais importante do que o primeiro para compreendermos a dinâmica política social do Brasil depois das eleições. A lulização do voto petista, ou seja, a dependência da votação dos setores populares que, historicamente, foram a base eleitoral do clientelismo dos partidos burgueses à frente da gestão do Estado torna o PT mais frágil, não mais forte, porque depende do controle de uma parcela do aparelho do Estado para existir.

O dilema histórico da esquerda marxista: participar ou não em governos de colaboração de classes?

As pressões que despedaçam a esquerda brasileira oito anos depois da posse do Governo do PT antecipam questões estratégicas que se colocarão à escala internacional para todas as forças que se reivindicam anticapitalistas. Quando partidos de base operaria e popular chegam ao poder pela eleições e abraçam um programa de reformas, o lugar político das forças socialistas deveria ser do lado da governabilidade, ou na oposição? Nessa dimensão, embora resguardadas as inúmeras desproporções, um desafio semelhante esteve colocado há cem anos atrás, tanto na Alemanha - para Rosa Luxemburgo e a esquerda do SPD (Social Democartic Party) - quanto na Rússia - para Lênin e os bolcheviques - quando o desafio foi, primeiro, a separação e disputa de influência com os dirigentes reformistas e, depois, a atitude face aos governos Ebert/Scheidemann em Berlim, e Kerensky em Petrogrado.

Ainda quando mantiveram diferenças sobre o momento da ruptura com a Segunda Internacional, nem os spartakistas nem os bolcheviques hesitaram em escolher o campo de uma irreconciliável oposição de esquerda a esses governos. Mas, tanto na esquerda alemã quanto no bolchevismo, a relocalização não foi indolor. Exigiu uma intensa luta política interna. As questões colocadas pelas rupturas não foram nem simples, nem ligeiras. Em ambos os países, as circunstâncias da luta quase aniquilaram as alas revolucionárias. Nem lembrar que na maioria dos outros países uma ínfima minoria de marxistas permaneceu internacionalista. Parece sugestiva, portanto, uma comparação histórica que remete ao terremoto que destruiu a esquerda alemã quando da I Grande Guerra Mundial, para compreender os dilemas de hoje da esquerda brasileira.

A discussão sobre as perspectivas da crise - se improvável ou iminente – sobre a natureza da época contemporânea - se reformista ou revolucionária - e sobre características da transição - se gradualista ou rupturista - se abriu no interior da II Internacional, ou melhor, do SPD pela iniciativa de Bernstein na virada do XIX par o XX. Esta discussão ficou conhecida como a querela do revisionismo.

Bernstein fez no campo do marxismo, pela primeira vez, o que depois seria recorrente pelos mais inesperados caminhos, da social democracia aos eurocomunistas, dos petistas aos tupamaros: a estrategização programática do que antes era somente uma tática eleitoral. A utilização da legalidade era o eixo central de sua política: a participação eleitoral, as coligações, o fortalecimento dos sindicatos, tudo estava subordinado a uma escolha programática prévia e confessa: respeitar os limites da democracia monárquica prussiana como um campo progressivo, onde as reformas eram possíveis. Eis Bernstein, com suas próprias palavras:

La frase (...) que Plejánov me echa en cara, dice que si se abandona la afirmación de que la situación del obrero en la sociedad moderna no tiene esperanza, el socialismo pierde sus estímulos revolucionarios y termina por dedicarse a un programa de reivindicaciones legales(..) Plejánov(...) me coloca entre los "adversarios del socialismo científico", porque no juzgo desesperada la situación del obrero y porque acepto la posibilidad de mejorarla. [3]

O capitalismo atravessava, segundo Bernstein, uma época de prosperidade. O SPD seria oposição aos partidos burgueses no governo, mas não ao regime da democracia monárquica. As mobilizações no terreno da luta de classes - impulsionadas sobre controle, para não desbordarem - deveriam se subordinar à lógica de quem procura a conquista de mais reformas. A acumulação de forças conduziria, lentamente, à maioria eleitoral – e uma correspondente maioria no Reichtag, o parlamento - e o perigo que a ameaçava seriam ações esquerdistas, que serviriam de pretexto para um golpe dos junkers e a destruição da democracia.

Esta nova teoria política campista - a defesa de um campo policlassista para preservar a democracia liberal - aceitando o Kaiser e a monarquia como um regime político progressivo, diante do perigo maior de uma ditadura ultra-nacionalista, era justificada por Bernstein em função das mudanças na realidade objetiva. O capitalismo teria mudado e tornava obsoleta a velha estratégia que priorizava, acima de todos os outros antagonismos, as contradições entre capital e trabalho que, em uma época de crise histórica do Capital, se traduziria segundo os marxistas, em um enfrentamento entre revolução e contra-revolução. Na seqüência, a critica a Marx:

La tesis de la "situación desespera­da" del obrero se lanzó hace más de cincuenta años (...) en "Las luchas de clases" que dice que el más pequeño mejoramiento de la situación del obrero "en el ámbito de la república burguesa sigue siendo una utopia(...)Se me puede objetar que, si Marx ha reconocido sin duda la existencia de esos progresos, el capitulo final del primer libro de El capital, concerniente a la tendencia histórica de la acumulación capitalista, demuestra sin embargo qué poco habían influido estos detalles en su concepción básica..(...) En mi opinión, el capítulo revela más bien un dualismo que circula por toda la obra monumental de Marx(...) Un dualismo que consiste en esto: en que la obra pretende ser un análisis científico a pesar de tratar de demostrar una tesis ya bien definida mucho antes de que la obra hubiera sido concebida; en que ésta se basa en un esquema en el que el resultado, al que debía conducir el desarrollo ya se ha conseguido de manera anticipada. El retorno al Manifiesto comunista denota aquí un residuo efectivo de utopismo en el sistema de Marx.[4]

Segundo Bernstein, a história não tinha confirmado a teoria da crise econômica formulada por Marx, interpretada em alguns círculos socialistas da Segunda Internacional como teoria do colapso, e não era surpreendente que a questão da conquista do poder não tivesse sido colocada em nenhum país. Retirava como conclusão prospectiva que a época histórica de reformas progressivas continuaria aberta, para um horizonte indeterminado. Os avanços obtidos na luta por mais direitos democráticos, em franco progresso desde 1890 com a suspensão das leis anti-socialistas, os progressos do movimento sindical e cooperativo, os sucessos eleitorais da social democracia eram, em si mesmos, a melhor demonstração das possibilidades de garantir de forma sustentada novas conquistas sociais dos trabalhadores.

Para Bernstein, essas mudanças, permitiriam uma crescente redução das desigualdades, e ampliação do mercado de consumo, incorporando as massas a novos patamares de vida material e cultural que atenuariam os efeitos mais severos das crises de superprodução. A hipótese política estratégica que defendia a perspectiva de um desmoronamento da ordem política, sob o impulso de uma crise social incontrolável provocada pela irrupção de uma crise econômica catastrófica, seria uma quimera. A revolução não estava mais no horizonte. Admitamos: um importante acerto de balanço do passado e um erro fatal de previsão do futuro imediato. Afinal, quinze anos depois, a Europa mergulhava na Primeira Guerra Mundial, uma hecatombe, incompatível com os prognósticos otimistas de Bernstein. Esta é uma das ironias do debate sobre época: Marx previa uma época revolucionária em 1848 e abriu-se uma época de reformas até 1914, Bernstein previa uma época de reformas em 1899 e abriu-se uma época revolucionária em 1917.

A teoria dos campos surgiu no movimento operário alemão, mas depois se transformou na coluna vertebral teórica de todos os reformismos contemporâneos. O campo do governo republicano na França, em função do "affaire Dreyfus" contra o campo de um suposto golpe militar "monarquista", justificando para Jaurés a adesão de Millerand; o campo da democracia prussiana contra a ameaça de uma ditadura dos junkers na Alemanha; o campo defensivo da França contra a guerra de anexações alemã entre 1914/18, ou vice-versa; o campo da república contra a monarquia e o fascismo, na Espanha em 1936/39; o campo da independência nacional em todos os países periféricos depois de 1945; ou o campo dos governos que promoviam o desenvolvimento industrial contra a estagnação agrária; por último, em seu grand-finale, o campo da estabilidade monetária contra a inflação na versão petista.

Os marxistas nunca ignoraram, por suposto, que sempre existem em qualquer sociedade e em qualquer situação política, não importa a relação de forças entre as classes, inúmeros conflitos políticos e antagonismos sociais que não se resumem à contradição capital/trabalho ou revolução social e contra-revolução – lutas contra a discriminação racial e de gênero, lutas ambientais e democráticas, etc.. - e que merecem apoio e justificam alianças. A questão central programática que permanece, todavia, é saber se o combate de classe continua sendo ou não, a linha divisória que define uma identidade socialista. Os campistas renunciaram ao programa anticapitalista de luta pelo poder, para constituir frentes em defesa de um programa unitário e projetos de reformas com frações do capital.

O significado da armadilha democrática

Cem anos depois da experiência do SPD alemão, na aurora do século XXI, não se devem ignorar os efeitos devastadores das pressões do regime democrático sobre as organizações socialistas. A socialdemocratização do PT no Brasil só pode ser compreendida, plenamente, quando inserida em uma perspectiva mais ampla. Não foi muito distinta a dinâmica das organizações nacionalistas guerrilheiras na Nicarágua, em El Salvador ou no Uruguai: Sandinismo, Farabundo e Tupamaros seguem na mesma dinâmica. Nos anos setenta, a socialdemocratização do PCI na Itália foi a ante-sala do eurocomunismo. A II Internacional sucumbiu diante dos regimes democrático-eleitorais. A discussão do significado histórico da democracia-liberal contemporânea parece, portanto, inadiável. Talvez seja um atrevimento do nosso olhar pretender, desde o Brasil - um país da periferia do sistema - procurar uma nova explicação para um processo que foi internacional, e já tem uma dimensão histórica. Mas, por outro lado, a crise da democracia na América Latina talvez nos ajude a ver, antecipadamente, o que pode estar se desenhando como uma tendência.

O calendário eleitoral do regime democrático burguês exerce, há pelo menos 100 anos, uma força de pressão terrível sobre todas as organizações revolucionárias. No Brasil, de dois em dois anos há eleições, e se cria a ilusão de que se pode mudar a vida mudando o partido que está no Governo. Em maior ou menor medida, a agenda das organizações que reivindicam o projeto socialista se adaptou à preparação das eleições: adaptação às exigências jurídicas da legalização, levantamento de fundos, escolha de candidatos, utilização da televisão, formação de comitês de apoiadores, eleição de deputados, controle de gabinetes, deslocamento de quadros, e tudo o mais que vem depois com a necessidade de renovação de mandatos. São raríssimos os partidos que conseguiram sobreviver a essas pressões.

O problema das reservas metodológicas não se resume às necessidades de análise ou orientação política. Para além da tática, há uma discussão de estratégia, que remete à concepção de partido: o marxismo não é somente uma corrente de idéias em luta contra outras correntes de idéias. Uma organização socialista é uma união voluntária de conspiradores, portanto, cercados de inimigos. Existem hoje poucas organizações que têm em seu programa a estratégia da revolução socialista, ou de resto, de qualquer revolução. Predominam formulações obscuras, herméticas, estranhas: por exemplo, "um processo de rupturas democráticas que radicaliza a democracia no processo revolucionário de construção de um contra-poder". Há fórmulas bizarras, em que não entra, claro, a questão chave: a estratégia é tomar o poder ou não é? Porque para radicalizar a democracia, não seria preciso tomar o poder.

Um mito persistente se criou na esquerda brasileira nos últimos vinte anos. A interpretação de que a origem histórica do regime eleitoral e das liberdades democráticas teria sido a mesma: ambos foram arrancados pelos trabalhadores contra as classes proprietárias. Essa hipótese é infundada. O regime democrático liberal tem paternidade burguesa e, quando muito, uma remota ancestralidade aristocrática, na defesa que a fidalguia fez de seus direitos contra o absolutismo real, e é muito anterior à consolidação das liberdades democráticas.

A tese eleitoralista não deve, contudo, ser confundida com participação em processos eleitorais. Tanto se pode ser eleitoralista sem apresentar candidatos, quanto se pode ser anti-eleitoralista intervindo nas eleições. Conter as pressões sociais e políticas que conduzem à adaptação não parece simples: intervenção permanente nas lutas, e defesa incondicional da resistência proletária à exploração; disposição para a ação e organização legal, semi-legal e ilegal contra o Estão burguês; compromisso internacionalista ativo; emulação coletiva pela valorização dos organismos sobre os talentos dos indivíduos; formação cultural, teórica e programática da militância para assegurar condições de controle das lideranças; rotação de quadros e de tarefas para evitar a aquisição de hábitos burocráticos; regime interno democrático com estímulo ao esclarecimento das diferenças e crítica dos acordos consensuais. A crise de estratégia da esquerda marxista contemporânea é a crise do "método alemão", a adaptação à rotina sindical-parlamentar, portanto, aos limites da legalidade do regime.

Notas

[1] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 3, 2000, p. 315-319.

[2] SINGER, A. NOVOS ESTUDOS, CEBRAP 85, novembro 2009, pp. 83?102

[3] BERNSTEIN, Edouard. Las premisas del socialismo y las tareas de la socialdemocracia: problemas del socialismo; el revisionismo en la socialdemocracia. México: Siglo XXI, 1982 p.261/264.

[4] Ibidem.


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