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Uma década do argentinazo: impunidade na democracia

181211_argentArgentina - La Jornada - [Raúl Zibechi, tradução de Diário Liberdade] Dias antes do décimo aniversário dos levantamentos populares do 19 e 20 de dezembro, que abriram uma nova etapa política na Argentina, realizou-se na cidade de Rosário o primeiro Encontro Nacional de Familiares de Vítimas de Dezembro de 2001. Nesses dias foram assassinadas 37 pessoas, incluindo meninos e meninas de 13 e 14 anos. Crimes da democracia que permanecem impunes.


Passaram-se 10 anos para que os familiares se reunissem, reconhecessem-se em uma dor comum ampliada pela impunidade, voltassem a chorar seus mortos e denunciarem que boa parte dos responsáveis políticos pelo massacre perpetrado pelo governo democrático de Fernando de la Rúa, ou seja, governadores e prefeitos, mas também deputados e senadores, seguem ostentando cargos institucionais. Muitos travestiram-se adotando as maneiras novas dos novos tempos.

No encontro que durou três dias, do dia 8 a 10 de dezembro, confluíram o pai e a mãe do motoqueiro Gastón Riva, assassinado quando enfrentava com sua moto as balas policiais; os familiares do garoto cordobês David Moreno, de 13 anos, morto por um capricho policial; o tio da garota Eloísa Paniagua, assassinada no Panamá, e dezenas de familiares e pessoas que foram feridas gravemente nos dias em que os bancos levaram bilhões do país. Houve mais raiva que tristeza e muita vontade de seguir adiante.

A família de Claudio Lepratti, Pocho, um militante social que tecia solidariedades territoriais desde sua bicicleta, lembrou que foi assassinado quando estava no teto da escola onde trabalhava como cozinheiro para dizer aos policiais que parassem de disparar, que ali só haviam crianças. Uma bala perfurou sua garganta.

Jesús, o tio de Eloísa, um trabalhador comum, pôs o dedo na ferida quando disse com ingênua sinceridade: Não entendo por que em todos estes anos os direitos humanos não se ocuparam de nós. Uma criança muito jovem, integrante de uma banda de rock, animou-se com uma frase que resume um tempo histórico: o dia 20 de dezembro, no centro, as classes médias e os sindicatos protestavam e não havia polícia. Mas nos bairros disparava-se para matar. Nesses bairros, pobres e periféricos, produziram-se os nove mortos destes dias na província de Santa Fe, a mais castigada pela repressão.

Frases simples que desnudam um modelo de dominação. Nesta década o Estado adotou a defesa dos direitos humanos como uma de suas mais destacadas políticas. Focaliza-se nos crimes da ditadura, o que supõe um reconhecimento às vítimas e o encaminhamento dos infratores. Ficam na sombra os 3 mil e 93 mortos da democracia (1983-2010) denunciados pela Correpi (Coordenadora Contra a Repressão Policial e Institucional), assassinados pelas forças de segurança sob a modalidade do gatilho fácil.

Isto, para não falar da repressão massiva contra os pobres. Na cidade de Córdoba se detém mais de 54 mil pessoas todos os anos pela aplicação do Código de Faltas, que permite prender e maltratar os jovens pobres quando saem de seus bairros usando gorros, acusados de pilhagem porque incomodam as classes médias. Milhares de pessoas participam desde há cinco anos, nessa cidade, na Marcha dos Gorros para exigir a derrogação de um código que converte o passeio em delito por ocultação do rosto.

Práticas das ditaduras que agora estão focalizadas aos bairros periféricos onde se amontoam os ni-nis, jovens que nem trabalham e nem estudam e que não tem futuro neste sistema. São descartáveis, números sem rosto.

Lembrar os fatos dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001 sem incluir os assassinados e os feridos, deixando de lado os descartáveis de ontem e de hoje, seria um vão exercício de macropolítica, de uma sociologia que só analisa o que se sucede aos outros e nunca inclui aos de debaixo da carne e osso. Eles colocaram boa parte dos mortos daquelas jornadas e os seguem colocando dez anos depois.

Por isso, não tem sentido comemorar o ontem sem trazê-lo até o hoje, sem denunciar um modelo minerador-sojeiro que converte a natureza em mercadoria e condena os pobres a viverem em campos de concentração, lá longe, nas periferias inundáveis e contaminadas que por agora não interessam à especulação imobiliária. Se se atrevem a sair, são presos a cada dez minutos (só em Córdoba) ou são assassinados, a cada 28 horas em todo o país, segundo os últimos dados da Correpi.

É hora de sermos sinceros e deixarmos de lado os duplos discursos. Isso que chamamos democracia e direitos humanos t em vigência para uma parte da sociedade, talvez menos da metade. Um só exemplo: em 2009 um vigilante privado que assassinou um jovem física e mentalmente incapacitado no subúrbio de Buenos Aires foi condenado dias atrás a dois anos e 10 meses, já que o juiz lhe aplicou a figura de homicídio cometido em situação de erro no exercício da legítima defesa (Página/12, 19 de novembro). Criatividade jurídica para endossar a impunidade.

Os familiares das vítimas do argentinazo constataram, em seus depoimentos durante o encontro em Rosário, que a impunidade não é uma anomalia, mas um padrão comum. No melhor dos casos, os que dispararam contra seus filhos foram condenados a alguns poucos anos de prisão e já estão em liberdade. Em 2004 o governo de Néstor Kirchner lhes ofereceu reparações materiais que a maior parte rechaçou.

A reflexão sobre a impunidade, sobretudo a dos responsáveis políticos, impõe reflexões mais profundas. Podemos pensar os policiais e os políticos como guardiões do campo de concentração? Se assim for, nós que gozamos de certas liberdades estamos ante um dilema ético que supõe eleger de que lado das cercas de arame vamos nos colocar, ainda que sabendo que essa escolha não tem marcha atrás, porque o sistema não perdoa os que estão abaixo nem os que se colocam à esquerda.

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