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O povo em armas e os mercenários

Carlos Serrano Ferreira

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O povo em armas e os mercenários

Carlos Serrano Ferreira - Publicado: Terça, 12 Abril 2011 02:00

O porquê dos revolucionários serem favoráveis ao serviço militar obrigatório

Carlos Serrano

Estamos assistindo com atenção pelas televisões o desenrolar de uma guerra civil, a Líbia. Têm causado confusão em muitos o correcto posicionamento frente à mesma, devido a uma situação particular: a existência de dois campos políticos e três campos militares.


Do lado pró-imperialista, contra-revolucionário, estão Khadafi e seus mercenários e as tropas imperialistas da NATO/OTAN; de outro, os revolucionários anti-Khadafi. Isto se explica, pois o bloco imperialista está dividido, em suas contradições, sobre a melhor forma de impedir o avanço e o aprofundamento da Revolução Líbia: Khadaffi acha que é o melhor a cumprir essa tarefa, e que a defesa de sua posição é a forma de derrotar a revolução; a NATO/OTAN acredita que Khadafi não pode mais cumprir este papel, e que é preciso derrubá-lo rapidamente, antes que a revolução se aprofunde. Desta maneira, espera estabelecer as pontes com os rebeldes e tentar controlar o futuro governo pós-kadhafi. Isto está na raiz da incompreensão, somado à ideologia de que a ONU é um instrumento "para a paz", quando claramente o imperialismo só intervém contra os povos, não para salvá-los. Como prova disto, é só se olhar as "intervenções humanitárias", como a de Kosovo, Haiti ou Afeganistão. Além, também, de uma incompreensão em sectores da esquerda do carácter do governo Kadhafi, que desde 2003 resolvera suas disputas com o imperialismo.

No entanto, este artigo não é sobre a situação líbia, por mais importante e interessante que seja. Mas, a utilização de Khadafi de tropas mercenárias deve levar a reflexão colectiva sobre um ponto que geralmente passa desapercebido e que tem uma importância fulcral em um programa revolucionário: a defesa do serviço militar obrigatório. Isto pode parecer contraditório com a defesa do antimilitarismo comunista. E, ainda parece contraditório com a repulsa que nós, enquanto indivíduos temos, em sua grande maioria, em se alistar. Mas, uma análise mais apurada mostrará que essa contradição é apenas aparente.

Freqüentemente ocorre que as necessidades históricas, as necessidades de classe, contrariem o senso comum, e nossos próprios sentimentos como indivíduo. Eu mesmo, quando fui dispensado do serviço militar obrigatório por excesso de contigente, fiquei feliz. Reação ainda mais que natural num país como o meu, o Brasil, em que a maioria dos progresistas possuem uma raiva normal às Forças Armadas, tendo em vista os vinte anos de ditadura militar, de torturas e execuções, ainda impunes em nossos dias (com a colaboração da ex-esquerda que se encontra no governo). E, mesmo aqueles que não tenham tal posicionamento, por uma visão pequeno-burguesa do mundo, individualista, podem também seguir a mesma repulsa. Inclusive, uma posição progressista que é o anti-militarismo, quando não apoiado numa leitura científica da realidade dada pelo materialismo histórico, leva a que se chegue a esta posição. Por isso, é necessário uma análise científica para entendermos o significado perigoso que o fim do serviço militar obrigatório pode ter para as necessidades da classe trabalhadora nos momentos revolucionários.

Na Europa do período moderno, não havia Exércitos regulares massivos: as guerras eram feitas por soldados profissionais, mercenários. A própria origem do termo 'soldado' deriva-se disso: provém de 'solidus', a moeda de pagamento dos legionários romanos. Daí vem também o termo 'soldo'. Os exércitos não superavam 20 ou 30 mil homens. Um dos motivos era o custo, o que implicava que uma das únicas maneiras, pelo menos das mais comuns, de sustentá-los eram os saques. No entanto, o mais fundamental relaciona-se ao que o revolucionário russo Leon Trotsky escreveu em sua obra-prima 'História da Revolução Russa': "O exército representa em geral uma imagem da sociedade que ele serve, distinguindo-se no facto que ele dá às relações sociais um carácter concentrado, levando até ao extremo os seus traços negativos e positivos". As tropas regulares permanentes eram no Antigo Regime recrutadas, exclusivamente, pois fazia parte do privilégio da nobreza, entre esta casta. Por isso, quando atuavam em seu próprio país, atuavam como mercenários, sem ligação com o povo, como os mosqueteiros. Um facto exemplar disto foi a ação bárbara das duas companhias de mosqueteiros estacionados em Paris durante o governo de Luís XIV, o 'Rei Sol'.

A reforma das Forças Armadas, como se tem aventado sob um discurso de 'modernização', com 'tropas profissionais e reduzidas', não se baseiam em elementos técnicos. Estes estão subordinados à realidades políticas. O fim do serviço militar obrigatório nos EUA foi a resposta às pressões sociais antimilitaristas contra a Guerra do Vietnã. De facto, estas pressões só existiram pois os pais dos soldados americanos, seus amigos, namoradas e esposas, ou seja, a população trabalhadora americana, se revoltou contra a carnificina desses jovens, e também pelo próprio carácter injusto dessa guerra, levando inclusive a que seus filhos se convertessem em monstros, como exemplificou em 16 de março de 1968, o massacre com requintes de crueldade entre 400 e 500 aldeões desarmados, em My Lai.

A tentativa de restabelecer o Exército mercenário, como o padrão, como vem sendo feito nos EUA com o recrutamento de estrangeiros através da oferta de cidadania americana, ou através da contratação de 'empresas' militares (verdadeiros bandos mercenários), é a tentativa de, por um lado responder as pressões progressivas anti-militaristas, apresentando como o fim do militarismo a não incorporação de elementos populares no serviço militar (e desta forma 'acaba' com o militarismo para as 'classes médias') e, por outro, diminuir os perigos para a ordem capitalista da divisão das Forças Armadas em períodos revolucionários, como abundam em exemplos ao longo do século XX. Além de ampliar as transferências de recursos públicos para a grande burguesia, nem que seja sobre a forma de 'Blackwater's'.

Sobre a recusa do serviço militar como instrumento do antimilitarismo, já em 1917 Lênin já a desmacarava, em seu 'Relatório sobre a Revolução de 1905': "De qualquer forma, a história da revolução russa, tal como a da Comuna de Paris de 1871, traz-nos um ensinamento indiscutível: o militarismo nunca e em caso algum pode ser vencido e abolido senão pela luta vitoriosa de uma parte do exército nacional contra a outra. Não basta condenar, maldizer, "repudiar" o militarismo, criticá-lo e mostrar a sua nocividade; é estúpido recusar pacificamente o serviço militar; o que é necessário fazer é manter alerta a consciência revolucionária do proletariado e não apenas de uma forma geral, mas preparando concretamente os melhores elementos do proletariado para tomarem a cabeça do exército revolucionário no momento em que a efervescência no seio do povo tenha atingido o ponto culminante". Na verdade, como diz Trotsky no 'Programa de Transição', os reformistas vendem ilusões, incutindo "sistematicamente nos operários a idéia de que a sacrossanta democracia está assegurada da melhor maneira quando a burguesia está armada até os dentes e os operários desarmados".

O segundo aspecto também é essencial: na estrutura das FFAA há a reprodução exponenciada das desigualdades de classe, e da opressão de classe. Os oficiais são recrutados diretamente no seio das classes dirigentes, através de critérios que instituem distinções na possibilidade no ascender interno. E, em compensação, a soldadesca, os 'carne de canhão', são recrutados nos sectores proletarizados da sociedade. Por isso, em momentos de ascensão revolucionária, como a sociedade se cinde entre classes em luta, as classes cindidas em oficiais e soldados também lutam. Foi assim na Revolução Russa e na Revolução dos Cravos, para nos atermos em apenas dois exemplos fundamentais. É claro que há deslocamentos de sectores do oficialato para o apoio à Revolução, quando esta claramente se mostra vitoriosa, nem que seja ao menos para poder freá-la aos limites de sua classe, como exemplifica o General Spínola, primeiro Presidente da República Potuguesa no pós-25 de abril. É este o único elemento, a percepção da inevitabilidade da Revolução e de se aderir a ela para evitar que fosse além do que os limites da revolução política e se consubstanciasse em revolução social, que explica a postura desse senhor no processo, tendo em vista a lista extensa de colaboração com o fascismo anteriormente: comandante da GNR em meio ao salazarismo; pró-nazista, e 'observador' junto da Wehrmacht no cerco à Leningrado; voluntário para a Guerra Civil Espanhola, do lado dos franquistas e, depois, voluntário para a Guerra Colonial, em Angola; por fim, governador da Guiné-Bissau. Este homem, que não se notabilizou em sua história como um democrata, assume a direção da revolução democrática portuguesa. Com certeza, o que o moveu não foi um fervor progressista inexistente em sua consciência, mas o oportunismo e o instinto de defesa de classe, percebendo que era 'preciso mudar, para manter tudo igual'.

Como os sindicatos são, sob a direção dos revolucionários, escolas de estado, ensaio para o Estado Operário, o serviço militar obrigatório é a escola do Exército Vermelho. Obviamente, os trabalhadores desenvolverão em sua prática militar novas formas, mais avançadas, no entanto os conhecimentos básicos são necessários. Logo, ao contrário da palavra de ordem de 'fim do serviço militar obrigatório', temos que contrapôr outras. Pois, o problema do armamento não é solucionado pela doutrina do desarmamento, como diz Trotsky no 'Programa de Transição': "'DESARMAMENTO'? Mas todo o problema se resume em saber quem desarmará e quem será desarmado. O único desarmamento que possa prevenir ou pôr um fim à guerra é o desarmamento da burguesia pelos operários. Mas para desarmar a burguesia, é necessário que os próprios operários estejam armados."

A luta então deve ser pelo fim de toda e qualquer força militar exterior aos trabalhadores, contra os trabalhadores, deve ser pela transição rumo à um 'povo em armas'. O fim do serviço militar obrigatório é um retorno ao Antigo Regime, mais uma das medidas que a burguesia em sua fase decadente quer implementar que retrocede com as medidas tomadas no período revolucionário de sua classe.

O programa proposto por Trotsky então se baseia em outros pontos, bem distintos:

"A guerra é uma gigantesca empresa comercial, sobretudo para a indústria de guerra. E por isso que as "200 famílias" são as primeiras patriotas e as principais provocadoras da guerra.O controle operário sobre a indústria da guerra é o primeiro passo na luta contra os fabricantes de guerras.

A palavra-de-ordem dos reformistas - imposto sobre os benefícios da guerra, nós opomos as palavras-de-ordem: CONFISCO DOS BENEFICIOS DE GUERRA E EXPROPRIAÇÃO DAS EMPRESAS QUE TRABALHAM PARA A GUERRA. No pais em que a indústria de guerra está "nacionalizada", como na França, a palavra-de-ordem de controle operário conserva todo seu valor: o proletariado deve ter tão pouca confiança no Estado burguês quanto no burguês individualmente.

Nenhum homem, nenhum centavo para o governo burguês!

Nenhum programa de armamentos, mas um programa de trabalhos de utilidade pública!

Independência completa das organizações operárias com respeito ao controle militar e policial!

É necessário arrancar, de uma vez por todas, a livre disposição do destino dos povos das mãos das corjas imperialistas, ávidas e impiedosas, que agem por detrás das costas dos povos.

De acordo com isso reivindicamos:

- abolição completa da diplomacia secreta, todos os tratados e acordos devem ser acessíveis a cada operário e a cada camponês;

- instrução militar e armamento dos operários e camponeses sob o controle imediato dos comitês de operários e camponeses;

- criação de escolas militares para a formação de oficiais vindos das fileiras dos trabalhadores, escolhidos pelas organizações operárias;

- substituição do exército permanente, isto é, de quartel, por uma milícia popular em união indissolúvel com as fábricas, minas, fazendas etc.

[...] A denúncia intransigente dos preconceitos de raça e de todas as formas e nuances da arrogância e do patriotismo nacionais, em particular do anti-semitismo, deve fazer da IV Internacional, como o principal trabalho de educação na luta contra o imperialismo e contra a guerra. Nossa palavra-de-ordem fundamental continua sendo. Proletários de todos os países, uni-vos!"

Além disto, também faz propostas que vão ao combate dos grupos paramilitares da burguesia, que sempre existem, em todo o momento, como os trabalhadores sem-terra no Brasil vêem todos os dias, em sua luta contra os jagunços dos latifundiários:

"Em parte alguma a burguesia se contenta em utilizar apenas a polícia e o exército oficiais. Nos Estados Unidos, mesmo nos períodos "calmos", mantêm destacamentos militarizados e bandos armados particulares nas fábricas. É necessário acrescentar a isto, atualmente, os bandos de nazistas americanos. A burguesia francesa, à primeira aproximação do perigo, mobilizou os destacamentos fascistas semilegais e ilegais até no interior do exército oficial. Bastará que os operários ingleses aumentem de novo seu ascenso para que imediatamente os bandos de Mosley dobrem, triplique, decupliquem em número e iniciem uma cruzada sangrenta contra os operários. A burguesia dá-se claramente conta de que, na época atual, a luta de classes tende infalivelmente a se transformar em guerra civil. Os magnatas e os lacaios do capital aprenderam com os exemplos da Itália, da Alemanha, da Áustria, da Espanha e de outros países muito mais do que os chefes oficiais do proletariado. [...] A luta contra o fascismo começa não na redação de um jornal liberal, mas na fábrica e termina na rua. Os pelegos e os guardas particulares nas fábricas são as células fundamentais do exército do fascismo. Os PIQUETES DE GREVE são as células fundamentais do exército do proletariado. É de lá que é necessário partir. Por ocasião de cada greve e de cada manifestação de rua, é necessário propagar a idéia da necessidade da criação de DESTACAMENTOS OPERÁRIOS DE AUTO DEFESA. É necessário inscrever esta palavra-de-ordem no programa da ala revolucionária dos sindicatos. É necessário formar praticamente os destacamentos de auto defesa em todo o lugar onde for possível a começar pela organizações de jovens e conduzi-los ao manejo das armas.

A nova onda do movimento de massas deve servir não somente para aumentar o número de destacamentos, mas ainda para unificá-los por bairros, cidades, regiões. É necessário dar uma expressão organizada ao ódio legítimo dos operários pelos pelegos e bandos de gangsters e de fascistas. É necessário lançar a palavra-de-ordem de MlLÍCIA OPERÁRIA como única garantia séria para a inviolabilidade das organizações, reuniões e imprensa operárias."

No entanto, sabemos que estas medidas não são aplicáveis a todo tempo, mas conforme as conjunturas e a correlação de forças. Por isso, outras políticas, em relação ao problema militar se colocam nesse sentido como obrigatórias no no rumo estratégico do povo em armas. Para ajudar na divisão do Exército e na ampliação de sua suscetibilidade aos trabalhadores, e na aliança da soldadesca com os trabalhadores, é necessário se agitar palavras-de-ordem como o 'Direito à Greve para os militares!' Ou, por exemplo, o fim dos mecanismos que impedem a ascensão dos soldados (vindos do seio dos trabalhadores) aos postos do oficialato (recrutados na elite social). Para isso, também se casa a exigência de 'eleição para oficiais pelos seus subordinados'. Além, é claro, da abolição de qualquer tipo de punições desumanas que ainda ocorrem em vários exércitos. E, se impõe na conjuntura actual, frente ao crescimento das forças mercenárias, a palavra-de-ordem de 'Fim de todas as tropas mercenárias!'.

Como a Líbia prova, a discussão sobre a questão militar não é uma questão de somenos importância para as lutas do povos! Sem as tropas mercenárias, Khadafi já havia caído há muito tempo. E, não por acaso, o imperialismo tem reticências em colocar armas na mão dos revolucionários: cada vez mais, o domínio burguês sofre abalos e sobrevive com a ampliação do terror militar. Contra a guerra, só levando a luta de classes até o fim!


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