1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)

240814 galiza galeguismoGaliza - PGL - [Carlos C. Varela] “Oh, montañas de Galicia,


cuya, por decir verdad,
espesura y suciedad,
cuya maleza es malicia”.
L. de Góngora

Assim como Edward W. Said fala dum “orientalismo” como relação de poder em que se constrói a imagen de “Oriente” e os “orientais”, também há um galleguismo, um discurso que se elabora sobre um objeto – Galiza e a sua gente – ao qual nunca se permite surgir como sujeito que se apresente a si mesmo.

O conjunto de tópicos construídos desde fora – a partir de Espanha ou das próprias elites letradas – polo galleguismo acabaram por tornar-se auto-imagens, e não poucas vezes a fronteira entre a retórica galleguista e a galeguista é difícil de definir (1). Manuel Antonio, mui atento a isto, advertia como à vez que nascia o galeguismo como projeto nacional, “A carón e a seguimento d’aquela riola e d’outras que aínda van indo en somellanza, figurou a d’ises deliciosos, casteláns de Castela moitos d’eles e, moitos mais, casteláns de Galicia, que c’un Baedeker de lugares común como guieiro, percorreron a nosa Terra c’o único gallo de poder deitar dispois en agafuallada prosa todol-os absurdos conceutos que a sua incomprensibilidade tivo a ben traguer-lles á mentes” (2).

Como toda a narrativa colonial, o galleguismo contrapõe o moderno/atrasado, homem/mulher, cultura/natureza, cidade/ruralia, etc. Nestes eixos simbólicos a Galiza indígena representa-se como inculta, feminina e hipersexualizada, e portanto objetivo da missão civilizatória da cultura masculina e espanhola. Uma das concreções desta retórica é a metáfora da Silveira, profusamente empregada pola galleguista Emilia Pardo Bazán, e que entronca nessa “botánica política” que inaugurara Góngora e demais escritores da época (A Galiza de verças gigantescas, “cuya maleza es malicia” e que “sólo produce espinas y zarzales”, é a da vegetação odiada polo colonizador que descrevia Franz Fanon).

Se o tema da luta entre a racional modernidade e o irracional indigenismo é omnipresente na literatura de Pardo Bazán, no díptico que conformam Los pazos de Ulloa e La madre naturalezasurge em toda a sua plenitude, numa narrativa de inegável feitio colonial. Pedro de Moscoso, o senhor do paço, despreza a cidade e as obrigações sociais com os da sua classe, entregando-se ao hedonismo componês. Bota o dia a caçar no monte enquanto deixa a administração da fazenda em mãos de labregos raposeiros, e tolera que as cozinhas do paço sejam um permanente aquelarre de moças, velhas e meigas (3). Pedro de Moscoso, descendente “de aquellos Moscoso que se distinguieron entre los paladines portugueses en la ardiente África” (4), abandona-se até o ponto de injertar polas bravas na sua nobre árvore genealógica, confundindo-se promiscuamente com o povo. Eis o interesse destes dous romances: espelham uma colonialidade específicamente galega, tão distinta da de outras latitudes, e aqui o papel das elites autóctones é central.

As duas partes do díptico atendem à mesma sequência: um agente civilizador chega ao paço e fracassa perante a natureza selvagem que impõe a sua força aos desejos racionalizadores. Não é casualidade que esse primeiro agente civilizador chegado de fora seja um religioso e o segundo um militar: são as duas personagens principais de todo relato colonial, junto com a mulher que vão resgatar da selvajaria.

“¡Qué país de lobos!” (5), exclama ao chegar a comarca o capelão Julián, o primeiro a tentar evangelhizar os índios da Ulhoa. Topa-se com um entorno inçado pola vegetação, uma casa embrutecida sobre o controlo dum astuto camponês que faz de administrador, e uma linhagem a piques de finar se não se lhe der uma descendência nobre. É uma terra de meigas e mulheres sedutoras, onde os nenos e os animais se criam em comum como lobos da mesma rolada. Nos exteriores, o geométrico jardim francês, símbolo da modernidade ordenada e o afã classificador, está comesto polas silveiras “y los tablones de hortalizas” convertidos “en sembrados de maíz” (6); como se o pesadelo da produção camponesa irrompesse na orden nobiliária. Julián observa com preocupação como o Moscoso engendra filhos bastardos com as lujuriosas labregas, e procura-lhe uma esposa adequada, da sua classe social, que remata morrendo no parto de Manuela, herdeira dos Moscoso. O fracassado Julián vê-se incapaz de desbroçar o solar dos Moscoso, e retira-se fundando uma congregação “de hijas de María para que las mozas no bailen los domingos” (7).

Derrotada a palavra de Deus, releva-a a espada; após o missionário o soldado. Em La madre naturaleza o agente civilizador será o cunhado de Pedro Moscoso, o artilheiro do exército espanhol Gabriel Pardo. À maneira dum Adrián Solovio militar, redescobre a Galiza dececionado pola sua carreira espanhola. Caíra do cavalo à volta da frente: “Al acercarse a Madrid y atravesar los páramos que lo rodean; al subir por la cuesta de San Vicente; al ver las calles estrechas, torcidas, mal empedradas, el desanimado comercio; al oír el canturrear de los ciegos y el pregón de la lotería, pensó encontrarse en uno de esos prehistóricos poblachones de Castilla, fosilizados desde el tiempo de los moros… ¡Madrid! Ese era Madrid… , esa era España…, la España Santa de sus ensueños de adolescente!” (8).

Ao desencanto com a Espanha real segue-lhe a volta à Terra prístina. Mais uma vez, o tópico regeneracionista galego da Espanha moura ou castelhana resgatada pola Galiza salvadora, guardiã das essências. Com essas ideias Gabriel Pardo chega a um país que só pode ver através da óticagalleguista e os seus lugares comuns; assim, comenta ao médico de Cebre: “Estoy encantado con mi tierra, don Máximo… Es de los países más poéticos y hermosos que se pueden soñar. Yo no conocía ni esa parte de Vigo, tan pintoresca, tan amena, ni esto de aquí; y lo poco que he visto me seduce… El suelo y el cielo, una delicia; el entresuelo…, gente amable y cariñosa hasta lo sumo; las mujeres parece que le arrullan a uno en vez de hablarle” (9).

Nada mais chegar ao paço de Ulhoa o encantamento de Gabriel esvaeze-se. Na eira um grupo de labregos faz a malha – de novo o pesadelo da produção – e entre eles, o seu cunhado Pedro de Moscoso, envelhecido, tenta exibir o seu poderoso manejo do malho, insólita habilidade num nobre. Impactado, Gabriel encontra o Moscoso campesinizado, asilveirado, “con las manos tan nudosas por las falanges, como suelen estar las de los labriegos (…). A modo de maleza que invade un muro abandonado, veía el artillero en el conducto auditivo, en las fosas nasales, en las cejas, en las muñecas de su cuñado, (…) una vegetación, un musgo piloso, que acrecentaba su aspecto inculto y desapacible (10)”.

A estratégia civilizadora de Gabriel passa por casar com a filha de Moscoso, a sua sobrina Manuela, e reconduzir o paço ocupado pola maleza labrega. A descrição que faz Gabriel da impressão que lhe provoca Manuela não tem desperdício: “Es un terreno inculto, virgen, lleno de espinos, ortigas, zarzales… ¡Pobre huérfana y pobre hermana mía! Si viviese… A falta suya yo desbrozaré esa maleza a fuerza de paciencia y de cariño (11)”; quer dizer, o âmago do discurso colonial: a natureza-mulher que se deve submeter à civilização-homem. Mas Manuela asinha passa de ser vista como a terra virgem – a boa selvagem rousseauniana – à selva indomável. Indistinguível das outras moças labregas, Manuela é alegre nas fiadas e romarias, e forte e ágil fazendo nas medas e trabalhando no campo; e o que é pior, ao borde do incesto pola sua amizade com Perucho, um filho bravo de seu pai com uma camponesa. A tensão incestuosa vai consumar-se, precisamente, no Castro Maior (onde para a autora ecoam as vozes da antiga “independência galaica”), alegoria da decadencia das elites galegas vista por Pardo Bazán.

O jovem casal de Manuela e Peruho, à volta do seu encontro sexual no castro, une-se à ruada que se organizou no paço ao rematar a malha, cantando à luz da lua com as labregas:

A lua vai encoberta

a mim pouco se me dá;

a lua que a mim n’alumbra

dentro do meu peito está.

Quando Gabriel Pardo se inteira da consumação do incesto, da vitória da Silveira sobre o roçador, só pode pensar enfurecido em destruir a bárbara alegria indígena: “Qué gusto coger un palo…, entrar en la era…, deslomar a estacazos a todo el mundo…, arrimar un fósforo a las medas…, armar el revólver y en un santiamén… pum, pum…: a este quiero, a este no quiero…” (12).

Já vai sendo momento de recordar, entre tanta Silveira a enlouquecer modernizadores, que a lenda popular galega sobre a origen da Silveira é de signo completamente diferente: quando Herodes ordenara assassinar todas as crianças palestinianas, a protetora Silveira cobria a fuga do menino Jesus, Maria e José, envolvendo os imperiais soldados romanos num pesadelo vegetal de espinhas e armadilhas. Por isso a Silveira, parafraseando Henry Miller, é toda uma lição de moral. (13).

* * *

Curiosamente Emilia Pardo Bazán também empregava em ocasiões a metáfora da Silveira num sentido presuntamente positivo: quando escrevia sobre a língua galega. Para Pardo Bazán o galego era uma formosa Silveira cheia de preciosas flores silvestres; que não havia que “estragar” inventando-lhe gramáticas e ortografias, senão deixá-la ao natural: como um dialeto. Convém recordar as muitas semelhanças entre a escritora e os orientalistas que estudou Edward W. Said: preocupou-se pola etnografia através da fundação da sociedade “El Folklore Gallego” (contraposta à escola etnográfica nacional de Manuel Murguía) e, ao mesmo tempo, não deixa de ser curioso que se tivesse iniciado aos nove anos na literatura com uns versos patrióticos, dedicados às tropas vencedoras em África que desembarcaram na Corunha em 1860.

A insigne galleguista é uma das fundadoras dessa retórica etnográfica que se prodigou até hoje, que reduz “o galego” ao tópico pitoresco; ao binómio bom selvagem/mau selvagem, na versão aldeão/nacionalista; ao mito do atraso; a ser um povo menor de idade que precisa de ser representado por outros. Avonda ler as plumas habituais de La Voz de Galicia para vermos um exemplo desse galleguismo escrito em espanhol, que inclui palavras “enxebres” em galego – essas marcas de veracidade etnográfica, que diria Clifford Geertz – à vez que ataca qualquer pretensão nacional. Tal e como concluía Manuel Antonio, “Eiquí tamén sabemos todos que combinando unhas consabidas evocacións ruraes chegamos a conseguir unhas consabidas resultanzas eglóxicas, inzadas de consoantes en iño e en iña. Pero eiquí ninguén se cansa de repetir a proba nin de gorentar a repetición” (14)Eiquí continuamos, silveiras contra galleguistas.

NOTAS:

    1. Num interessante lapsus uma escritora galego-cubana escreve que “Ata a súa morte non houbo en Cuba un galego máis erudito en galeguismo que Fontenla” (Oramas Camero, Á.Galeg@s de Habana, Santiago de Compostela, Sotelo Blanco, 2007, pág. 107). Se bem o ingente trabalho de Fontenla na construção nacional fica fora de toda dúvida, o lapsus não deixa de ser revelador de cómo é visto desde fora o galeguismo. Por outra parteOrientalismo, o livro de E. W. Said, abre-se, com esta frase de Benjamin Disraeli: “Oriente é uma carreira”.
    2. Manuel Antonio, Obra completa, Vol. I. Prosa, Corunha, RAG, 2012, pág. 174.
    3. Pardo Bazán também emprega reiteradamente o imaginário inquisitorial do aquelarre: cada vez que descreve uma reunião de mulheres labregas aparecem como bruxas.
    4. Pardo Bazán, E. La madre naturaleza, Madrid, Alianza, 1985 (1887), pág. 227.
    5. Pardo Bazán, E. Los pazos de Ulloa, Madrid, Cestalia, 1986 (1886), pág. 130.
    6. Ibid., p. 150.
    7. Ibid, p. 408.
    8. Pardo Bazán, E. La madre naturaleza, op. cit., pág. 84.
    9. Ibid, p. 95. Mais adiante, por causa do alalá das segadoras, voltará-se a fazer uma observação semelhante: “ni podía decir cuáles salían de laringe de pájaro y cuáles de femenina garganta” (Ibid, p. 118). A louvança-insulto do “más que hablar aparece que cantáis” também a sofreram as pretas e pretos dos EUA, especialmente quando se populariza o jazz. Por palavras de Dick Gregory: “Os pretos podíamos cantar mas não falar”.
    10. Ibid., p. 116.
    11. Ibid., p. 140.
    12. Ibid., p. 257.
    13. Como em tantas outras cousas, aqui Rosalía de Castro é antitética com Pardo Bazán. Face à Silveira como metáfora negativa e decadente dos paços de Ulhoa, ela homenageia emCantares Gallegos a natureza que se reapropria da velha casa natal.

“No grande patio as herbas crecen
vigorosas sin coidado,
i as silveiras que frocerem
no seu tempo fruto ofrecen
ós meniños sazonado”.

  1. Manuel Antonio, op. cit., p. 190.

Carlos Calvo Varela (Ordes, 1988) colaborou e colabora com diveros meios de comunicaçom, entre os quais Novas da Galiza, Praza Pública e o Portal Galego da Língua. Estudante de Antropologia e investigador, tem publicado numerosos artigos em portais web, revistas e livros, além de realizar um reconhecido labor como dinamizador social e cultural em coletivos de Compostela e Ordes.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Publicidade
Publicidade
first
  
last
 
 
start
stop

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.