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mulher-1Brasil - Causa Operária - Entrevista com a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, Kenarik Boujikian Felippe (foto), co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para Democracia sobre as condições das mulheres no sistema penitenciário brasileiro.


Causa Operária: Hoje no Brasil temos mais de 35.000 mulheres presas, ou seja, quase 10% do total da população carcerária. Qual a realidade dessas mulheres nas penitenciárias?

Kenarik: A situação das mulheres encarceradas é agravada em relação aos preconceitos que elas sofrem fora dos muros. Essa é a primeira consideração. As mulheres já têm uma grave situação fora dos muros, e dentro dos muros ela se intensifica porque não existe nenhuma política pública, nenhuma consideração com relação ao gênero feminino. Essa é a situação das mulheres presas.

Em geral elas estão presas por problemas relacionados com a questão de entorpecentes. A maioria está presa por esse motivo. O segundo motivo são furtos, dano ao patrimônio sem violência. São jovens; um grande percentual tem filhos; grande percentual não tem ensino fundamental completo. Ou seja, são pobres. São abandonadas depois que estão nas prisões...

Leia também: Bagatela - retrata drama de mulheres presas e escancara a seletividade do Direito Penal (+ documentário)

Causa Operária: Algumas foram presas simplesmente porque a droga foi encontrada com ela?

Kenarik: Sim. Existem esses casos. Mas existe uma realidade que eu penso seja maioria: as mulheres que estão presas porque se envolveram nesse "mundo de trabalho". A mulher que é chefe de família precisa de trabalho, por isso acaba ocupando um trabalho que era do homem: a venda de drogas. A maioria é denunciada pela venda de pequenas quantidades. O fato é que elas estão ocupando esse espaço. Por necessidade, enfim, mas estão ocupando. E nesse cenário de entorpecentes estão ocupando um determinado papel.

Causa Operária: O Ministro da Justiça Cardoso, anunciou esta semana que vai propor o aumento da pena mínima para entorpecente. Como você vê essa proposta?

Kenarik: Eu não consigo entender a mesma história que se repete sempre: aumentar a pena como solução para os problemas de violência, de segurança, entorpecentes... Estamos cansados de saber que isso não funciona. Não vai diminuir o crime; não vai resolver o problema do crime. Então, parece que é pouco sério fazer alguma política nesse tema ficando na questão de aumentar a pena para esses nossos "grandes" traficantes presos, que são pessoas que estão presas por 10gr, 20 gr, 100 gr.

Eu gostaria que o Ministério da Justiça dissesse algo concreto, onde está o dinheiro do grande tráfico? Porque se for atrás do dinheiro ele pode pegar o grande traficante. E não esses aviõezinhos que temos nas cidades e dentro dos presídios.

Na faculdade de direito a gente estuda logo no começo do direito penal que a pena longa não resolve a situação. E depois eu pude viver isso na prática. Saindo dos livros. E pensar que esse é um discurso muito mais antigo, porque nem é de quando eu estudei, [Cesare] Beccaria [jurista italiano do séc. XVIII] já dizia isso.

A lei de crimes hediondos recrudesceu. Só podia se cumprir a pena em regimes integralmente fechado. Mas o que nós tivemos? Tivemos um boom populacional, de pessoas presas por hediondos; o sistema prisional piorou depois desse aumento, e não diminuiu a criminalidade por causa disso. Ninguém comete um crime pensando na pena. Parece fora da realidade achar que "eu não vou cometer o crime porque aumentou dois anos de pena". Não se pensa em políticas públicas. A lei de crimes hediondos é o grande exemplo de que não se combate os crimes aumentando a pena. Tivemos esse aumento na última década e meia e não mudou nada.

Para as mulheres é pior porque a maioria delas está presa por crimes ligados ao tráfico de entorpecentes, mas isso não acontece só no Brasil. Isso acontece na América Latina, no mundo. Tem uma pesquisa encomendada pela ONU [Organização das Nações Unidas] em que a pesquisadora vê a situação das mulheres encarceradas no mundo e ela faz exatamente a mesma constatação. As mulheres não estão presas por crimes violentos. A maioria delas é por crime de tráfico, pequena quantidade de tráfico de entorpecentes. É uma coisa que está acontecendo nas relações das mulheres com a sociedade. Com o mundo do trabalho.

No caso do porte de entorpecentes o que temos é também uma possibilidade de retrocesso diante de um projeto que está em tramitação na Câmara dos Deputados. Um projeto que continua com os mesmos equívocos de sempre. Já mudou a lei de drogas, mas no Brasil não se entende as drogas como um problema de saúde. Esse é um grande problema. Inclusive fazer essas definições de traficante e usuário também são importantes. Além da lei, tem a questão de como se enfrenta isso. Esse é um grande problema no Brasil. Você tem rios de dinheiro que rolam em cima do tráfico de entorpecentes. É muito dinheiro. Mas onde está? Como circula esse dinheiro? Esse dinheiro não circula em malas. Então, como se combate esse mecanismo?

Aqui embaixo, as pessoas que acabam nas prisões, são os que vendem pequenas quantidades. Muitos que vendem para também consumir. Às vezes não são usuários, mas vivem, dependem economicamente disso. Vão sobrevivendo assim. Por isso acho que a questão maior não está nessa venda pequena. Tem que atacar o dinheiro. O caminho do dinheiro é que é o caminho das pedras.

Causa Operária: Nesse contexto como você vê a proposta de redução da maioridade penal, e a criminalização do aborto?

Kenarik: Primeiro com relação à redução da maioridade penal, não é possível aceitar que isso vingue. É inaceitável que vingue no Brasil essa proposta. E volta e meia ela aparece. Da última vez foi arquivada na Câmara dos Deputados porque foi considerada inconstitucional. Uma coisa que não se deve mexer.

Mas além de ser inconstitucional, tem o problema político também. Uma opção política de criminalizar nessa idade. A opção que o Brasil fez anos atrás é a que a maioria dos países agora pensa em encaminhar. Então, enquanto os outros países e organizações internacionais fazem a reflexão do problema da juventude pensando que a redução da maioridade se mostrou ineficaz, querem levar o Brasil no sentido contrário.

Uma coisa que precisa destacar é que não existe impunidade com relação aos adolescentes. Não existe a palavra pena, mas eles recebem penas. Pode até não ter esse nome, mas tem uma retribuição pelo ato cometido. O jovem adolescente que comete algum delito já responde por isso. Essa é uma coisa que precisa ser rompida.

A verdade que precisa ser dita é que existe um número baixo de jovens que se envolvem em delitos. O percentual é infinitamente menor se comparado com o de adultos. Isso é importante mostrar. Além de ser inferior, eles já estão sendo apenados de alguma forma. É errado falar em pena, mas eles não passam impunes como se diz. Com relação à redução da maioridade é preciso fazer esse recorte, porque é absolutamente inaceitável.

A questão do aborto é um tema em discussão e construção no Brasil. Eu acho que já é hora de encarar esse tema como uma questão de saúde da mulher, de direito da mulher. Mas as barreiras são grandes. E a resistência é gigantesca. Mas acho que já está em tempo. É preciso uma alteração urgente nesse sistema. Mulheres pobres estão morrendo em razão de aborto. Quem tem condições econômicas vai fazer em boas condições, com segurança, enfim. Ser crime não é razão para deixar de acontecer.

Causa Operária: Pesquisa realizada pela Ong Conectas, em 2012, revelou que muitas prisões não tem ou não destinam orçamento para higiene pessoal das mulheres presas. Chegando a revelar que muitas mulheres acumulam miolo de pão para usar como absorvente. Qual o impacto disto para a vida de uma mulher?

Kenarki: Essa pesquisa foi feita em cima dos dados que a Defensoria Pública levantou, pegando toda a destinação de verba para higiene em geral em São Paulo. A Conectas e outra organização que são do grupo de estudos e trabalhos mulheres encarceradas, do qual eu também faço parte, procurou fazer esse recorte de gênero que falta em todas as políticas, então esse levantamento foi feito. Foi ótimo para ver o que acontece com essas mulheres.

O que se observou foi que, de fato, nas cadeias públicas as mulheres não recebem praticamente material nenhum de higiene. Não recebem roupas íntimas, e isso também acontece, em medida diferenciada, nas penitenciárias.

Muito interessante que havia uma lista de coisas que a Secretaria de Assuntos Penitenciários permite ser entregue e nas roupas íntimas apareciam cuecas, não aparecia calcinha. O que revela uma total inexistência da mulher dentro do sistema.

O que significa isso? Isso tem uma simbologia muito forte. Elas são desconsideradas dentro do sistema. E tendo em vista os dados que foram levantados é que foi feito esse movimento, simbólico, para denunciar essa situação, esse descaso. A campanha "estou presa, continuo mulher" foi muito interessante. Eu fiquei surpreendida com o número de pessoas que quiseram doar absorventes higiênicos, teve universidades, teve gente que não acreditava, "mas não, não é possível que não se dê absorvente". Uma coisa muito forte, porque é uma coisa de todas as mulheres, é uma coisa do corpo feminino que você não consegue imaginar como é possível que nem isso seja considerado. É o básico do básico, uma coisa indispensável da mulher, não dá pra pensar de outra forma. Acho que foi importante nesse sentido. O movimento fez com que as pessoas vissem que existem mulheres presas e que elas estão sendo desconsideradas como tais. O sentido era esse, era um gesto simbólico, mas também solidário, porque foi no mês das mulheres.

Inclusive eu participei da entrega no Hospital Penitenciário e foi muito intenso. Impressionante, porque quase todas tem histórico de violência doméstica. Quando eu fiz a entrega em São Vicente todas, sem exceção, levantaram a mão quando perguntei sobre violência. Fiquei chocada. É bem impressionante você ter esse contato, ver o relato de como elas estão vivendo e ao mesmo tempo estar presente, ser solidário, saber que tem movimentos de mulheres, movimentos de direitos humanos que estão voltados para essa questão, foi um alento. Elas diziam, "que bom saber que tem alguém olhando por nós"; "tem gente que sabe que a gente existe"; "sabem que as mulheres existem nas prisões". Me impactou muito a informação delas em relação a violência doméstica, porque realmente era a maioria, e me impactou muito também a relação delas com o ser feminino. Impressionante a importância que dão a isso. A maioria tem a mãe como pessoa de grande admiração. Caracterizavam a mãe como mulheres guerreiras, que foram à luta, que tentaram educá-las, que iam visitá-las mesmo naquela situação, ou que estavam cuidando do filho. Isso foi forte nesse diálogo que nós tivemos com elas. Elas fizeram cartazes que foi levado para o ato de 8 de março para a Praça da Sé, com as reivindicações específicas dessas mulheres. Achei que o movimento foi importante por isso. E deu resultado, porque as resoluções da Secretaria para assuntos penitenciários já colocam calcinha, absorventes higiênicos... Vamos ver se cumprem. É outro passo, porque não basta estar no papel. Mas o fato de muitas pessoas terem se envolvido trouxe o problema à tona. E também a conclusão de que a pessoa tem uma pena a pagar, mas não pode ficar totalmente esquecida. Tanto que muita gente falou que o mais ficava marcante era a total desconsideração com as mulheres.

Causa Operária: Outro drama é a questão da maternidade. Recentemente foram reveladas fotos de mulheres algemadas em hospitais e tem o problema dos filhos das presas. Poderia comentar?

Kenarki: Eu acho necessário que o Brasil efetivamente, assuma uma política pública. Esse grupo de trabalho que eu mencionei, grupo de estudos e trabalhos mulheres encarceradas, já tem 10 anos e surgiu após um debate que aconteceu na Ordem dos Advogados, na qual foi apontado que as mulheres presas não tinham sequer o mesmo tratamento que os homens com relação a sua sexualidade, não tinham direito a visita íntima. A partir daí o grupo se reuniu e fez um primeiro encontro. O primeiro tema foi justamente o da visita íntima. A proibição da visita íntima revelava esse aprofundamento dos preconceitos com relação às mulheres. Porque os homens já tinham visita íntima há muitos anos. A gente pode colocar em discussão os direitos sexuais e reprodutivos da mulher encarcerada, mas de maneira geral também.

Essa questão da maternidade é também tema desse grupo. O ponto de vista que a gente acolhe é: a mulher tem o direito à maternidade, a criança também tem o direito de manter as relações familiares e todo tratamento que for dado a essa questão deve levar em conta a importância dos vínculos, tanto para a mulher, quanto para a criança. Mas a gente também entende que tem de ter um ambiente minimamente possível. E nesse meio tempo do grupo tivemos a aprovação da lei que prevê creches. Eu penso que os vínculos são importantes de serem mantidos de alguma forma, mas as próprias mulheres não querem que as crianças fiquem no ambiente prisional. Então se elas têm uma opção, com quem deixar a criança, elas preferem. Após aleitamento materno preferem deixar com a mãe, com a irmã ou alguém da família.

Tem um filme que mostra a situação da Argentina: uma creche ao lado do estabelecimento prisional onde a criança passava o dia, como uma creche normal. Essa ideia parece boa, tirando as peculiaridades das que não querem de jeito nenhuma as crianças no círculo prisional. E a existência de creches na penitenciaria já é lei. Mas não funcionada. Como a maioria das leis que são para atender pessoas em situação de maior vulnerabilidade não funciona. No estado de São Paulo mesmo tem só berçário. Não temos creche. A maternidade precisa ser assegurada, com o fortalecimento das relações para o bom desenvolvimento da criança. Tem uma pesquisa da Espanha que fala especificamente sobre esse tema no qual se viu que não existem danos maiores para as crianças ao estarem com as mães nesse período. E a lei na Argentina parece ter sido feita muito em cima da lei de entorpecentes, porque lá a pena mínima era de quatro anos e lá também a maioria estava presa por entorpecentes.

No caso das mulheres algemadas foi um exemplo das violações frequentes contra as mulheres. Essa situação revela o extremo. Nem a mulher em situação de parto fica livre disso. Teve um momento que os hospitais não aceitavam as roupas vindas da prisão. Tanto que a campanha começou por isso. Começou com a mulher que teve filho e não tinha o que usar no hospital, e aí veio a pesquisa mostrando que nas penitenciárias elas também não tinham nada.

Causa Operária: Como fica a situação das mulheres após serem presas, por parte dos familiares?

Kenarik: As mulheres são mais cobradas moralmente, por isso parece ter um peso diferenciado quando ela comete um crime. É diferente de quando é o homem da família. Afora isso elas são abandonadas pela maioria dos seus companheiros. Tem uma pesquisa que pode estar um pouco desatualizada, mas aponta que 40% não recebe visita nenhuma ou recebe no máximo uma visita durante o mês. Isso vem revelar um pouco os preconceitos em relação às mulheres. É uma situação de extremo abandono. Quando o homem está preso ele não é abandonado pela mulher. Existe outro dado: a família da mulher assume os filhos. E não os homens. Porque quando o homem vai preso a mulher assume os filhos e cuida deles. Mas quando a mulher vai presa, a maioria dos homens não assume a criação dos filhos, quem assume é a família da mulher. Isso significa também um problema econômico para aquela família. Ou como vai faltar ao trabalho para fazer uma visita, se é dia de semana? Se não é dia de semana, onde vai deixar a criança para ir à visita? Tem muitas consequências. E a situação de abandono é muito terrível para as mulheres encarceradas.

Causa Operária: Que medidas você entende seriam positivas para os problemas das mulheres presas?

Kenarki: Algumas mudanças legislativas são uma necessidade. Mas também é uma necessidade para todo mundo trabalha no sistema de justiça começar a enxergar que tem uma mulher ali, que o crime tem gênero. Ou seja, essa questão existe e precisa ser enfrentada de alguma forma. Existem alguns mecanismos já na lei que permitem um dano menor. Por exemplo, não ter tanta prisão cautelar. Não ter tanta prisão antes da condenação. Porque a lei prevê que você pode dar uma prisão domiciliar se tiver filho. E alternativas que você poderia usar.

É preciso também repensar o conceito nosso de crime relativo a entorpecentes. De maneira séria, não para vender soluções que não correspondem com a realidade. Enfrentar seriamente a questão. Ver quanto é questão de saúde quanto não é.

É difícil você tirar a questão prisional de todo o contexto da vida dos seres humanos na sociedade de hoje, mas se você não colocar o foco em outras coisas não vamos sair dessa situação. Prisão não é nem nunca foi a solução. Já que ela existe precisa ter o mínimo do previsto na lei de execução penal, direito à educação, direito ao trabalho.... Então, eu vejo com muito problema a questão da menoridade porque é um assunto que volta e meia vem à tona.

Ninguém mostra, por exemplo, que os jovens hoje são a maioria entre os que estão morrendo de homicídio, e não por razoes de saúde. Maioria jovem. Maioria negro. O que está acontecendo? Você coloca ele temporariamente dentro de um muro, mas ele vai sair uma hora. Não sei se existe um recrudescimento, mas existem políticas muito perigosas de higienização. Essa internação compulsória, que se pretende implementar em São Paulo, no Rio de Janeiro... é inimaginável. Mas eu acho mais preocupante em relação às drogas, porque existem projetos equivocados. Então é mais complicado.


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