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130214 crack drogas brBrasil - Le Monde Diplomatique - [João Mendes Lima Júnior e Herbert Martins Toledo] Sob o manto da moral puritana das sociedades disciplinares, paira de forma generalizada o desejo tácito de que os usuários de substâncias psicoativas sejam controlados, disciplinados e “domesticados”.


 Vivemos no Brasil uma curiosa adversidade. Por um lado, uma crescente produção de conhecimento fruto do trabalho de grandes centros universitários nacionais garantindo, cada vez mais, importante qualidade e lucidez a esse debate. Por outro, uma crescente onda anacrônica no âmbito do Parlamento em que o saldo de 2013 foi a aprovação na Câmara Federal do Projeto de Lei 7663/2010 do deputado federal Osmar Terra, uma espécie de inquisição contemporânea. A passos largos, a Casa mostrou quanto o cenário legislativo brasileiro é retrógrado. Enquanto no mundo inteiro países e instituições como a ONU, UNODC etc. discutem a necessidade de uma política não criminal, mais cidadã e eficiente para a questão das drogas, no Brasil a tônica do debate foi dada pelo desejo de reproduzir o mecanismo da fracassada “guerra às drogas” com a intensificação das punições, inclusive para usuários. Não raro o Brasil reproduz anacronismos. Fomos uma das últimas nações a abolir a escravidão com a alegação dogmática e obscura de que isso conduziria ao “colapso” do sistema econômico. Na época perdemos o tempo da história e só avançamos por conta de pressões internacionais. O parlamento brasileiro parece continuar se inspirando em dogmas. Sob o pretexto do dogma da “segurança” nem sequer arriscamos um debate mais avançado para uma política sobre drogas que não esteja baseada na repressão. Seria o medo de um “colapso” social? O agora PLC 37 em tramitação no Senado Federal é uma espécie de mais do mesmo, chove no molhado. Onde surge uma novidade nesse PLC é no aumento da pena mínima de cinco para oito anos, como se a solução para diminuir a criminalidade fosse majorar a penalização, equação que nunca se mostrou verdadeira nem aqui nem alhures. O senador Eduardo Suplicy teve o cuidado de pedir vistas no dia 18 de dezembro de 2013 ao processo que estava em votação e o projeto só voltará à pauta neste ano.

É pouco provável que um cenário dramático como o atual seja piorado. A guerra às drogas mata muito mais que as drogas em si. São aproximadamente 49 mil mortes anuais por violência/homicídio (Mapa da Violência, 2012) contra uma média de aproximadamente 8.138 mortes anuais decorrente do uso de drogas no Brasil (relatório da Confederação Nacional dos Municípios, 2012), 95% das quais causadas por substâncias lícitas (82% álcool e 13% fumo). Vamos supor um cenário muito inflacionado, em que metade dos 49 mil homicídios esteja relacionada às drogas ilícitas, não pelo uso em si, mas pela violência decorrente do comércio tornado ilegal que gera o tráfico e a corrupção de agentes policiais, autoridades e traficantes. Se do conjunto dos óbitos relacionados ao uso de drogas somente 5% está relacionado às drogas ilícitas, temos que anualmente morrem por uso de drogas ilícitas menos de quatrocentas pessoas. Portanto, das mortes por drogas, diminuídos os óbitos gerados pelas drogas lícitas, deduz-se que a guerra às drogas mata 62 vezes mais que o uso de drogas ilícitas em si. É possível concluir que a política proibicionista e a guerra às drogas são demasiadamente letais.

Outro dogma desse discurso da “segurança” tenta fazer crer que a meta é proibir aquilo que gera alta mortalidade. Ora, anualmente os acidentes de moto matam mais que o uso de substâncias psicoativas. Em 2009 foram 9.312 mortes em acidente com moto, mesmo assim isso não é motivo para a criação de uma proibição do uso desse veículo (Relatório “Saúde Brasil 2010”/Vigilância Epidemiológica/Ministério da Saúde).

A aposta numa política repressiva revela as muitas faces de um discurso reducionista e de uma práxis conservadora. É “reducionista” porque reduz a uma matemática simplista a complexa relação entre sujeito, substância e contexto social como se fosse possível acreditar que a ausência de substância no mercado diminuirá a demanda por consumo. Essa premissa desconsidera as motivações dos sujeitos, desvincula o contexto e põe em evidência uma única variável, a substância. Ainda que com toda possibilidade de produção de fissuras decorrentes das propriedades da substância, a intensidade/qualidade dessa experiência é regulada por um conjunto de fatores que estão para além dela em si.

Esse discurso é reducionista também porque depois de importantes avanços no que diz respeito às modalidades de práticas de cuidado em saúde e redes de assistência social em crescente expansão pelo país ainda há políticos defendendo a hipótese da razão carcerária em presídios ou em comunidades terapêuticas, ambas instituições totais. A “internação compulsória” surge na fala de alguns gestores como a condição de entrada para cuidados em saúde, do que se pode deduzir que a lógica continua sendo repressiva ou reclusiva. Isso é um “museu de grandes novidades”. A “internação” como alternativa não é alternativa a nada dado que ao longo da história esse recurso foi hegemônico, ainda que nunca tenha se mostrado eficiente. Não bastasse a falta de evidências científicas que justifiquem uma política pública centrada nesse prisma, novamente há uma incongruência com os mais avançados modelos de saúde coletiva mundo afora que centram esforços na atenção primária em saúde tanto na prevenção de agravos como na promoção à saúde.

É curioso notar que no momento o investimento brasileiro na política sobre drogas ainda é baixo. Continuamos investindo majoritariamente na repressão, basta ver que o plano “Crack, é possível vencer” lançado pelo governo federal tem orçamento previsto de R$ 4 bilhões para quatro anos. Por outro lado, serão necessários cerca de R$ 17 bilhões num intervalo de cinco anos para o custear as mais de 140 mil prisões decorrentes do uso ou do comércio de drogas. A “razão carcerária” prevalece em alguns dos estados brasileiros que insistem nas velhas práticas repressivas, seja nas prisões ou nos “internamentos compulsórios”; não por acaso são exatamente os mesmos estados que possuem políticas públicas ainda frágeis tanto no que diz respeito à disponibilização de outros recursos de prevenção, como no que diz respeito à oferta de serviços de saúde ou assistência social em número e em qualidade para acolher a demanda.

Suponhamos que um mecânico disponha de uma única ferramenta em sua oficina. Ele tem duas opções: ou tentará fazer dessa ferramenta um recurso para quaisquer consertos ou, numa outra hipótese, buscará ampliar e diversificar seus instrumentos investindo em ferramentas mais eficientes, podendo até abandonar aquilo que se mostra obsoleto. Na caixa de ferramentas de alguns dos governantes brasileiros parece haver somente um único instrumento de trabalho. Para todas as situações que precisarem de ajuste a ferramenta usada é a mesma. Esse é o paradigma do martelo: seja um problema com prego, parafuso, ajustes de diversas especificações, concerto de emenda, reparos, construção etc. utiliza-se a única ferramenta, quase sempre enferrujada.

O que se percebe, verdadeiramente falando, é a “vontade de poder” exercida sobre um sujeito/usuário que vem perdendo o direito de manifestar-se como sujeito de escolhas, igual aos demais. Sob o manto da moral puritana das sociedades disciplinares, paira de forma generalizada o desejo tácito de que os usuários de substâncias psicoativas sejam controlados, disciplinados e “domesticados”, ‘corpos dóceis’. É um discurso temeroso, tirano-absolutista sustentado até mesmo por alguns operadores do direito que acreditam que “é preciso matar o sujeito-cidadão para garantir-lhe a saúde”. Uma política pública cidadã prevê exatamente o contrário: é preciso mergulhar no universo plural dos diversos modos de existir para criar condições que viabilizem possibilidades de existência sem que, para isso, mortifiquemos o “eu”, o sujeito e sua cidadania precisamente porque necessitamos que o “eu” esteja vivo.

As atuais políticas repressivas são uma resposta medieval para um problema contemporâneo, são uma espécie de fantástica “invenção do nada”. No máximo o que se pode dizer é que correspondem a estratégias contemporâneas das sociedades disciplinares para reprodução da prática secular de mortificação do “eu” dos desviantes, como alertava Erving Goffman. Se esse é o objetivo, essas políticas lograram algum êxito; se a meta é efetivamente diminuir os problemas decorrentes do comércio e do uso das drogas ilícitas definitivamente a ferramenta repressiva enferrujou.

João Mendes Lima Júnior e Herbert Martins Toledo são professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.


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