Com a vitória dele no segundo turno, a então coordenação da frente que o apoiava criou uma comissão dos cinco partidos (PCB, PT, PDT, PSB e PcdoB) para elaborar um PROGRAMA DOS 100 DIAS, de forma que, logo no início do mandato, o novo Presidente mostrasse que veio para cumprir as promessas de mudanças feitas na campanha e que encheram de esperança a grande maioria do povo brasileiro e a esquerda mundial. Afinal, seria um governo novo, de oposição ao anterior.
A principal proposta da comissão, apoiada pelo PCB, era a convocação, logo após a posse, de um plebiscito para consultar o povo sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte soberana, que não se confundisse com a composição do Congresso Nacional e que revisasse toda a Constituição Brasileira, que já havia sofrido forte retrocesso político em função de emendas aprovadas no famigerado governo FHC.
Partia-se do pressuposto de que, para mudar o Brasil, era indispensável primeiro mudar leis que perpetuam a hegemonia burguesa. Exatamente como fizeram Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, antes de deflagrarem os processos de mudanças em seus países.
Mas no Brasil, o medo venceu a esperança!
Antes mesmo da posse, já eleito no segundo turno, a primeira viagem internacional de Lula, de surpresa (pelo menos para o PCB), foi aos Estados Unidos para encontrar-se com Bush na Casa Branca, ao lado de Henrique Meireles, então presidente do Banco de Boston, para apresentá-lo como o novo presidente do Banco Central do Brasil, assegurando-lhe autonomia para gerir a política monetária. Nesse momento, começou a se dissolver a coordenação da campanha, que deveria se transformar, após a posse, numa coordenação política do governo.
Ao tomar posse, Lula jogou no lixo, ao mesmo tempo, o programa da campanha, a coordenação política e a proposta do Programa dos 100 Dias, fazendo a opção pela governabilidade institucional da ordem, ao invés da governabilidade popular pelas mudanças. Formou uma base de apoio parlamentar com o centro e a centro-direita, com mais de 300 dos parlamentares que no passado chamara de picaretas, transformando-se em refém e cúmplice dos caciques da política burguesa, sob o comando do PMDB e do companheiro Sarney, rendendo-se ao grande capital. O Vice-Presidente, José de Alencar, havia sido criteriosamente escolhido para sinalizar uma aliança com setores da burguesia, com vistas a um projeto desenvolvimentista, que Lula anunciava, já na posse, como o "espetáculo do crescimento", que iria "destravar" o capitalismo no Brasil. Essa promessa Lula também cumpriu à risca.
Constatando a traição ao programa que elegeu Lula, o PCB, em março de 2005 (antes, portanto do episódio conhecido como "mensalão"), rompe com o governo, por absoluta incompatibilidade política com o transformismo do novo presidente e dos demais partidos que haviam composto a frente, que continuaram se degenerando e se fartando de cargos e verbas, sem qualquer crítica ao abandono do programa eleitoral e entregando as organizações sociais sob sua influência na bandeja da cooptação, transformando uma legião de ex-militantes de esquerda em burocratas de carreira, cabos eleitorais de "mandatos" de seus partidos.
A CUT e a UNE, que já vinham também num acelerado processo de degeneração, logo se transformaram em correia de transmissão do governo e nos principais instrumentos de apassivamento dos trabalhadores e da juventude.
Depois de onze anos alavancando o capitalismo, "como nunca antes na história desse país" - iludindo os trabalhadores com o discurso da inclusão, da nova classe média, de um desenvolvimento capitalista em que ganhariam igualmente todas as classes e que garantiria a paz social -, bastou o estopim do aumento das tarifas dos ônibus urbanos, em junho do ano passao, para que se desmontassem as ilusões, as manipulações, o amaciamento da classe trabalhadora e da juventude.
Tudo isso aliado aos ventos ainda suaves da crise do capitalismo em nosso país, que tem levado o governo Dilma a mitigá-la com mais capitalismo: desoneração do capital, Código Florestal, privatizações de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, estádios de futebol, a vergonhosa continuidade dos leilões de petróleo, inclusive do pré-sal, além de projetos para reduzir direitos trabalhistas e previdenciários.
A explosão das insatisfações reprimidas, que continuam latentes, tem suas razões principais na privatização e no sucateamento dos serviços públicos, sobretudo na saúde e educação, na desmoralização e na falta de representatividade das instituições da ordem (e das entidades de massas cooptadas), em função de alianças e práticas oportunistas e da cumplicidade com a corrupção.
Com a quebra do salto alto petista, foram-se a arrogância e a certeza absoluta de mais alguns confortáveis anos de mais do mesmo. Atônitos, os reformistas acharam no lixo da sua própria história a proposta do Programa dos 100 Dias, abandonado quando a correlação de forças era altamente favorável. Com seus quase 60 milhões de votos e a inaudita esperança popular, Lula tinha todo o respaldo para mudar o Brasil, mobilizando as massas, mesmo que com medidas apenas progressistas.
Ao final do mandato de Dilma, cada vez mais reféns do centro e da centro-direita, até para se manter no governo, petistas e outros reformistas, alguns insistindo em se dizer comunistas (o que, por praticarem a conciliação de classe, é funcional para sua aceitação pelo sistema) levantaram a bandeira da reforma política, esbravejando contra o parlamento, a justiça, a mídia, instituições que não só deixaram intactas, mas fortalecidas.
Fingindo desconhecer que este governo não sobrevive sem o PMDB, que tem a chave da agenda legislativa brasileira - com a inédita acumulação da presidência da Câmara e do Senado e a Vice-Presidência, ocupadas pelas mais experimentadas raposas políticas - os reformistas levantam agora, como a salvação da pátria, a bandeira da convocação de um plebiscito para uma constituinte, que abandonaram no momento propício, há dez anos!
Clamar por constituinte nessa correlação de forças desfavorável é um gesto de demagogia. Ou se trata de uma inocente ilusão de classe ou de uma esperta cortina de fumaça para passar ao povo a impressão de que querem mudar. Como não há inocência em políticos profissionais, a segunda hipótese é mais provável. Tanto não querem mudar que mantiveram sua aliança preferencial com o PMDB, garantindo ao enigmático Michel Temer a candidatura a vice-presidente.
A correlação de forças não é desfavorável apenas no parlamento, mas sobretudo em relação à evidente hegemonia burguesa na sociedade brasileira, moldada pela alienação, pelo individualismo, fundamentalismo religioso, pela mídia hegemônica, que cultua a aversão aos partidos e reduz a política aos momentos eleitorais.
Vão buscar no lixo a constituinte de 2003, que seria ampla e irrestrita, mas agora a limitam a uma específica sobre reforma política que nem merece esse nome, pois é fundamentalmente eleitoral. Mostram assim que só acreditam na chamada democracia burguesa, uma ditadura de classe disfarçada.
No esperto discurso da reforma política, fazem críticas a deformações do parlamento, para as quais contribuíram tanto quanto os demais partidos da ordem. O PT e seus aliados fiéis e acríticos se fartaram e se fartam de financiamento privado, a ponto de seus candidatos, em alguns casos, receberem mais doações "generosas" de empresas que seus adversários conservadores, até porque os setores mais lúcidos das classes dominantes preferem terceirizar o governo a um partido com o nome de trabalhadores, para fazer com eficiência a política do capital e com a vantagem de iludir aqueles que emprestam o nome ao partido.
Essa manobra irresponsável e eleitoreira pode ter consequências nefastas, na medida em que abre espaço para o Congresso Nacional a ser eleito em outubro promover, sem qualquer consulta popular, uma minirreforma "política" regressiva que pareça mudança.
O mais grave, entretanto, é que a prioridade absoluta na bandeira da reforma política sequestra a pauta unitária levantada nas manifestações de 2013. Trata-se de diversionismo e esperteza para não expor o governo Dilma ao desgaste de ter que negar cada uma daquelas bandeiras, por ser refém e parceiro do capital.
Devemos continuar levantando essas bandeiras que os reformistas tentam esconder: redução da jornada sem redução salarial, reforma agrária, fim do fator previdenciário e da terceirização, do superávit primário; pelo fim dos leilões do petróleo para gerar investimentos públicos em saúde e educação, pela desmilitarização da polícia, entre outras.
No lugar da reforma política eleitoral, nossa bandeira política central deve ser PELO PODER POPULAR, que expressa a recusa às instituições burguesas e "a tudo que está aí", sinalizando uma organização popular com vocação de poder.
Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB.