A primeira, por que esse apagar das diferenças na política partidária? Estará relacionada com a forma de como a política é desenvolvida aqui? Ora, a redução da distância entre os partidos não é um fenômeno brasileiro, vem sendo observado em todo mundo. É só ver as alianças na Itália, aonde o maior partido de esquerda, outrora o maior partido comunista do Ocidente, se junta a triste figura de Berlusconi para governar. Antes eram considerados inconciliáveis. Nos outros países, Alemanha, Inglaterra, França, Japão e EUA, só para citar alguns mais conhecidos, prevalecem um bipartidarismo de fachada. Apesar dos discursos, as diferenças não são impactantes quando olhamos a longo prazo as políticas dos governos de distintos partidos. A não polaridade observada aqui prevalece também lá, mesmo com os partidos não se aliando formalmente ao se revezarem no poder. Se polaridade na política é entendida como a possibilidade de mudanças reais, as diferenças, mesmo nas margens partidárias, são imperceptíveis para esmagadora maioria da população.
A segunda, como os partidos se comportam frente ao Estado ao assumir a função de governo? Antes de qualquer ação efetiva, os partidos se deixam encantar pelo poder do grande Leviatã. Dependendo da cor da bandeira digerida, o monstro disforme estende os seus tentáculos à esquerda ou à direita, não importa. Continua, porém em marcha batida sem se preocupar como é alimentado. Não existe outro Estado que não o Estado Moderno capitalista que se constrói e se metamorfoseia na sua relação contraditória com o todo social. Quando no poder o discurso ideológico dos partidos de esquerda é estraçalhado ao se confrontar com essa brutal realidade. E ao insistirem nele, o que aparentava coerência quando oposição soa dissonante e degenerado. A tendência é uma rápida perda da credibilidade. No atual estágio de dissolução do capitalismo, transformam-se em zelosos administradores dos interesses do capital. Não podia ser diferente, pois um não sobrevive sem o outro.
Quando o capitalismo atinge o limite absoluto, as instituições criadas para garantir o funcionamento dessa forma social passam a não responder, seja na condução da economia, seja para mitigar os efeitos desastrosos sob as condições de vida. Daí a percepção, ainda que difusa e não de todo consciente, de que os partidos políticos, os sindicatos, a justiça, a infraestrutura, o transporte, a educação, saúde e outros setores que desempenham as chamadas funções de Estado, não mais funcionem ou funcionam precariamente. O discurso ideológico que quer separar o Estado do mercado não enxerga que ambos são partes da mesma totalidade, a sociedade produtora de mercadorias. Foram construindo-se e redefinindo-se nos momentos de bonança e crise, numa relação íntima, mesmo nos momentos em que o primeiro parece soberano e ganha certa autonomia. A separação formal que se faz é uma abstração, pode levar partidos e movimentos ao auto-engano, acreditando no Estado enquanto um ente que pode se descolar das relações capitalistas e fazer a revolução.
Indicadores de que o capitalismo enquanto modo de produção de "valorização do valor" (Marx) como fim em si mesmo, falha em seu objetivo em função da revolução tecnológica que racionaliza trabalho, levando a uma progressiva redução da substancial social de valor, é a necessidade crescente de endividamento das empresas, pessoas, estados e a geração em grande volume de capital fictício pelo mercado e pelas políticas de estímulo a economia. Com o espasmo da crise em 2007/2008, os estados que teoricamente deveriam zelar pelas finanças, ultrapassam todos os limites e passam a imprimir dinheiro sem nenhuma relação com a produção de riqueza. Conclui-se então, que os juros artificialmente baixos, o endividamento, as bolhas e os outros produtos da especulação financeira como fontes de geração de dinheiro sem substância, já não eram suficientes para manter a economia artificialmente em movimento e financiar as contas públicas.
A crise estrutural do capitalismo é sentida pelos sujeitos de diversas formas, independente da inserção social. Os melhores informados e bens posicionados nas instituições e empresas passam então a administrá-las em função de interesses próprio, fazendo com que estas passem a girar em torno destes. As formas de pagamentos por bônus aos executivos que não se consegue regular, como prêmio por desempenho, é um exemplo de como se tende a desconsiderar os riscos quando se trata de defender esses interesses. Os negócios privados incrustados no aparelho de Estado, quando convertidos em escândalos pela grande imprensa, manifestam bem a dimensão da crise. A indignação dos punidos, quando muito raramente tem que pagar por envolvimentos, mostra o quanto está naturalizada essa ralação. Reagem como se lhes tivessem usurpado algum direito e como se perguntassem por que eles se todos fazem a mesma coisa. Quanto a isso não deixam de ter razão. A morte do aparente "homem público burguês", sem deixar memórias da sua efêmera passagem, é mais uma prova de que as instituições criadas para dar sustentação ao capitalismo e mediar a feroz competição, entraram em colapso com a crise global e estimula todo tipo de comportamento.
Nos momentos mais agudos das lutas por reivindicações específica das classes ou grupos sociais, o Estado coloca-se na condição de guardião da ordem, mas simultaneamente, através de setores especializados, procura criar condições para que a energia liberada reforce a forma social. A indústria cultural, principalmente a mídia televisiva, agindo em sintonia com outros aparelhos no controle social, busca transformar protestos em espetáculos, onde desfilam para o consumo de passivos espectadores bandidos (os cognominados de vândalos) e mocinhos, como visto nas manifestações mais recentes. Para ficar mais emocionante, liberaram seus atores para compor linha de frente dos que eles queriam transformar em mocinhos. É preciso separar o espetáculo midiático ideologizado a serviço do sistema do que de fato se quer nas ruas, para melhor entender o que se passa.
O conflito entre o discurso que procura dar forma à falsa consciência e a realidade dos fatos é percebido e têm levado as pessoas espontaneamente as ruas que, muitas vezes, além das reivindicações concretas, se manifestam com desaprovações moral. Este nexo entre as instituições em crise e a crise de acumulação do capital com seus efeitos colaterais no social, é um fato real e não moral que precisa ser discutido e desvendado pelo movimento. Portanto, qualquer saída que busque reforma do instituído, que não discuta a possibilidade de construção de um mundo diferente do totalitarismo do mercado e de opções totalitárias do Estado, é pura ilusão. Os políticos para se manterem no poder, já tomaram a dianteira e discutem em seus partidos, no executivo e no parlamento mudanças para que tudo continue como está. No entanto, o retumbante fracasso da manifestação "chapa branca" organizada e paga pelas Centrais Sindicais e seus partidos, mostra o que já se sabia: há muito ficaram para traz e agora foram suplantadas pelo movimento espontâneo que tomou as ruas. A ponte que essas entidades e tantas outras achavam que faziam entre os movimentos sociais e o poder, amortizando com manobras as lutas quando lhes interessavam, foi definitivamente rompida, o que deverá dificultar a adesão a qualquer coisa que venha ser aprovada por se ter ouvido a "voz da rua".