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machadoBrasil - Habanero - Por quais caminhos deverá seguir a esquerda? Esta é uma espécie de pergunta-ideia fixa para quem pensa que é preciso mudar a vida.


A revista Habanero não quer fugir deste destino escolhido e tem a grande satisfação de entrevistar, logo em seu primeiro numero, dois dos mais significativos militantes socialistas do país: Milton Temer e João Machado.

Abaixo entrevista com João Machado (foto). A com Milton Temer pode ser lida aqui.

João Machado foi integrante por vários anos da executiva nacional do PT, afastando-se antes das guinadas à direita daquele partido. Economista e professor, era referência de umas das principais correntes internas do PT, a Democracia Socialista. Desvinculou-se do PT para participar da fundação e da direção do PSOL.

Habanero - A vida tem sido marcada pela crise do capitalismo, assunto dominante desde 2008, pelo menos. Muitos movimentos de contestação eclodiram, mas poucas mudanças estruturais ocorreram. Por que isso se passa na tua opinião? Falta um projeto aos movimentos de contestação? Faz sentido falar em socialismo neste contexto?

João Machado (J. M.) - Na verdade, não ocorreu, ainda, a rigor, nenhuma mudança estrutural nova. Em termos que eu chamaria realmente de estruturais, prosseguem mudanças que já estavam em curso, como uma reconfiguração do capitalismo mundial, com um papel maior da China e, muito secundariamente, da Índia e de outros países, e um declínio relativo dos principais centros do velho imperialismo: EUA, Japão e, mais acentuadamente, Europa (sendo que no interior da Europa este processo é muito desigual). A crise acelerou esta reconfiguração estrutural do sistema capitalista mundial.

A pergunta, certamente, se refere a mudanças que poderiam responder à indignação dos movimentos de contestação. Com relação às questões contra as quais houve mobilizações, as mudanças mais profundas ocorreram em alguns países árabes (Tunísia, Egito, Líbia, Síria ...), mas trata-se, claramente, do início de um processo. A derrubada de ditaduras como as da Tunísia, do Egito e da Líbia, e a tendência à queda da ditadura da Síria são, certamente, mudanças muito bem-vindas, que atendem em parte às multidões que se mobilizaram nestes países. Mas a vida ainda não melhorou e, na Síria, até piorou, com a destruição provocada pelas guerras desencadeadas pela repressão sanguinária das ditaduras.

Certamente uma das dificuldades é a apontada na pergunta: falta um projeto aos movimentos de contestação. Eu colocaria a questão da seguinte maneira, com o que já respondo à última parte da pergunta: cada vez mais, o único projeto viável é o da construção de uma sociedade distinta do capitalismo, de uma nova civilização; mas há um sentimento generalizado de que isto não é possível.

Para justificar a afirmação de que cada vez mais é necessária uma alternativa ao capitalismo, é preciso lembrar a outra crise em curso, que começou antes bem antes de 2008, e ainda está em seus estágios iniciais: a crise ecológica. Qualquer análise séria mostra que não é possível enfrentá-la nos marcos do capitalismo. O meio-ambiente exige cooperação internacional e uma economia voltada para satisfazer necessidades humanas, enquanto o capitalismo se estrutura com base em princípios opostos: a concorrência entre empresas (e países) e a produção para o lucro e para a acumulação infindável de capital.

Falar em alternativa ao capitalismo é retomar a discussão sobre o socialismo, ainda que isto possa, eventualmente, ser feito com outros nomes. Entretanto, se isto nunca foi tão necessário como agora, desde a ascensão do movimento operário no século XIX nunca pareceu tão difícil. Nos quase trinta anos em que dominou com pouca contestação no plano mundial, o neoliberalismo conseguiu a grande vitória política e ideológica de fazer a grande maioria das pessoas acreditarem que, como dizia a tristemente famosa Margareth Thatcher, não há alternativa. A credibilidade de uma alternativa não capitalista, isto é, socialista, precisa ser reconstruída, e estamos vendo que isto levará um tempo considerável. Quem sabe o agravamento da crise em diversos países (nos últimos anos, sobretudo no sul da Europa) e os duríssimos ataques contra o nível de vida do povo podem contribuir para encurtar os prazos?

Habanero - Você militou no PT durante muitos anos. Passados alguns anos da ruptura, o que pensa daquele partido? O que pensa ter levado o PT aos caminhos que assumiu? Havia algo de errado na forma de funcionamento ou na concepção programática do PT que não deva ser repetido? Alguns têm apontado na própria concepção de "projeto democrático-popular" raízes que levaram aos processos de acomodação posterior. O que pensa disso?

J. M. - O PT tornou-se um partido social-liberal, isto é, um partido de origem socialista, mas que pratica uma política, no fundamental, neoliberal. A partir da eleição de Lula, foi engolido pelo Estado burguês brasileiro. A oposição de direita gosta de falar que o PT "aparelhou" o Estado brasileiro, mas o que aconteceu foi muito mais o contrário: o Estado brasileiro subordinou o PT, completamente, a seus interesses, isto é, aos interesses do grande capital brasileiro, em aliança (com algumas diferenciações) com o grande capital internacional.

Acho que isto aconteceu porque o PT, desde os anos 90, vinha se integrando cada vez mais à "política institucional", isto é, à política burguesa. Até a eleição do Lula esta integração não era completa, e ainda havia uma resistência interna muito grande a ela; a eleição do Lula liquidou a fatura.

Naturalmente havia algo errado na forma de funcionamento e nas concepções programáticas do PT. Na minha opinião, havia uma compreensão absolutamente insuficiente do caráter de um estado burguês e da política institucional, e da necessidade absoluta de um partido socialista se demarcar de ambos, e de se preparar para lutar pela destruição do aparelho burguês de Estado. Não estou falando, é claro, que não devíamos disputar eleições ou exercer mandatos parlamentares e executivos; o ponto é que isto não podia ser feito sem uma grande clareza de suas limitações, do ponto de vista estratégico. De fato, apenas setores minoritários do PT, basicamente nas correntes mais à esquerda do partido, tinham esta compreensão, e mesmo estes setores, como vimos depois, não a levavam inteiramente a sério, na sua grande maioria.

Ou seja, acho que havia pouquíssima clareza programática, e um funcionamento excessivamente imbricado com as instituições da política burguesa. Não podemos esquecer tampouco, por outro lado, do peso tremendamente negativo que a burocratização do movimento sindical começou a ter a partir dos anos 90. Desde os anos 90 a maioria dos sindicalistas atuou no PT como força conservadora.

Não vejo que tudo isto tenha uma relação relevante com a adoção pelo PT do chamado "projeto democrático e popular". Este projeto tinha ambiguidades, mas cumpriu um papel basicamente positivo. O problema é que foi inteiramente insuficiente, por não tratar das questões que mencionei acima.

Acho que quem dá excessivo peso negativo ao projeto, ou programa, democrático e popular, no fundo, pensa que o PT se adaptou ao Estado burguês por ter tentado pôr em prática um programa errado. Pelo contrário, acho que o grande problema foi o pragmatismo crescente, e o abandono de qualquer programa. O governo Lula não tinha, na verdade, nenhum projeto, e não tentou aplicar programa algum, a não ser uma ideia muito vaga de fazer alguma coisa para não perder a base popular, e para ampliá-la, sem comprar nenhuma briga com o grande capital. O que ele fez não teve nada a ver com o programa democrático e popular, e nem mesmo com as diretrizes de programa de governo aprovadas em 2001. Até a "Carta aos Brasileiros", que já foi feita para assinalar a disposição de Lula de se adaptar aos interesses do "mercados", foi um documento "radical" em relação ao que o governo fez depois.

Habanero - O PSOL está conseguindo superar o PT como partido socialista? Que papel, na tua opinião, o PSOL desempenha e precisa desempenhar no Brasil hoje? O debate sobre as eleições já está acontecendo, como você vê o partido e a esquerda socialista neste processo?

J.M. - Infelizmente, até agora, o PSOL não está conseguindo superar o PT como partido socialista. O PSOLestá aquém do PT que existiu até os anos 90 (e não estou enfatizando nem a base social nem a força eleitoral, questões em que o PT, evidentemente, levava grande vantagem). Globalmente, o PSOL defende posições políticas corretas, e tem uma boa atuação parlamentar, mas está excessivamente preso a ela. Em 2012, fez algumas campanhas eleitorais excelentes, como no Rio de Janeiro, em Fortaleza ou Niterói, mas fez também algumas muito ruins, como em Macapá ou Belém. Ganhou em Macapá e teve grande votação em Belém; mas fez alianças com setores da direita que um partido socialista sério jamais poderia fazer, em Macapá, e concorreu como representante do governo federal no segundo turno, em Belém, coisa que um partido que quer reconstruir a esquerda brasileira depois do golpe sofrido com a conversão do PT ao social-liberalismo nunca poderia fazer.

Infelizmente, muitos companheiros de partido não demonstram ter aprendido nada com a experiência do PT. O peso do pragmatismo eleitoral no PSOL, por exemplo, chega a assustar. A falta de critérios mais definidos de filiação é outro problema sério. Nestes aspectos, o PSOL está repetindo e ampliando os erros do velho PT.

Dito isto, estou inteiramente convencido de que militar no PSOL é a melhor alternativa que temos no Brasil. Apesar das grandes insuficiências e dos problemas citados, o pragmatismo eleitoral não é dominante no PSOL. E, no debate que se iniciou a partir do segundo turno das eleições de 2012, está claro que uma grande parte do partido tem consciência da ruptura que ainda temos de fazer com a forma de fazer política herdada do PT. Acredito que esta consciência será majoritária no próximo Congresso do partido.

Habanero - E as experiências da esquerda brasileira anterior aos 80 (o PCB daquela época, por exemplo)? O que nos ensinam sobre a luta política no Brasil? Há lições a tirar?

J.M. - Naturalmente, temos muito que aprender com as experiências da esquerda brasileira anterior aos anos 80, bem como com as experiências da esquerda latino-americana e de todo o mundo. Um problema do PT, aliás, foi ter sido excessivamente auto-centrado.

Uma coisa que havia na esquerda brasileira nos anos 60 e em parte dos anos 70, por exemplo, que acho muito importante, e que ficou muito de lado, era a discussão sobre o caráter da revolução brasileira e latino-americana. Se não valorizamos este tipo de discussão, o risco do pragmatismo aumenta muito. Deste ponto de vista, na avaliação do PCB, por exemplo, tinha de ser muito levada em conta sua visão da revolução nacional, das alianças com a "burguesia nacional", seu etapismo. O PT chegou a aprovar uma crítica a estas questões, no V Encontro, no fim de 1987; mas não demos, naquela época, a importância que estas questões têm. Mais clareza destes temas teria contribuído para tornar mais difícil o processo de adaptação que o PT sofreu.

Habanero -Qual foi a experiência política mais decisiva que você viveu? Alguma vez se questionou sobre se tinha valido a pena apostar na militância política de esquerda?

J.M. - É difícil falar numa experiência política mais decisiva que vivi. Talvez, para mim, mais importante do que minha experiência pessoal, tenha sido ser, politicamente, filho da radicalização política dos anos 60. Comecei a militar no fim daquela década, num grupo da esquerda católica, e logo que entrei na universidade, no movimento estudantil; acompanhei, ainda que de fora, a discussão das organizações de esquerda, o debate da luta armada, etc. Eu procurava acompanhar muito os debates internacionais da esquerda, também. De certa forma, comecei a militar a partir de leituras, mais do que de temas "práticos". Por exemplo, entrei no movimento estudantil para procurar contato com as organizações de esquerda; meu movimento foi um tanto ao contrário do que, suponho, seja o movimento da maioria dos estudantes. Mas imagino que, no final dos anos 60 e no início dos anos 70, trajetórias como a minha não eram raras.

Minhas leituras me levaram a me identificar com a perspectiva da IV Internacional desde o início dos anos 70. Um autor que me influenciou de modo decisivo foi, é claro, Ernest Mandel, que eu viria a conhecer pessoalmente em 1979.

Já me questionei sobre se valeu a pena apostar minha vida na militância de política de esquerda, sim. De certa forma, eu fiz uma "readequação" da minha militância no início dos anos 90. Foi aí que percebi que a revolução socialista demoraria muito mais do que eu imaginava até então. Outros da minha geração já tinham percebido isto antes, principalmente em outros países, em que a onda de radicalização dos anos 60 já tinha sido revertida antes; mas, no Brasil, e para mim em particular, o processo do PT dos anos 80 manteve viva a ideia de que era possível a revolução socialista num futuro relativamente próximo, no Brasil. Na América Latina, havia também outros processos que pareciam muito promissores: a revolução sandinista, o processo em El Salvador ...

No início dos anos 90, então, percebi que as coisas demorariam muito mais. Aí passei a reequilibrar minha vida, dando mais peso à atividade profissional acadêmica. Antes, eu já era professor, mas minha dedicação à vida acadêmica era baixíssima.

De qualquer maneira, até agora, continuo me dedicando muito à militância política. Acho que é um trabalho muito mais para o futuro do que para o meu tempo de vida, mas acho que vale a pena fazer. Depois da falência do PT enquanto partido socialista, minha obsessão é dar uma contribuição para a reorganização de uma esquerda socialista séria, no Brasil. E continuo dando peso à militância internacionalista.

Habanero - Muitos jovens questionam, de uma forma ou de outra, a realidade, até desconfiam do capitalismo ou o criticam, mas não se reveem na forma tradicional de organização político-partidária e nem mesmo nos movimentos sociais tradicionais. O que você diria a eles?

J.M. - A primeira coisa que eu tenho para dizer é que esta desconfiança da forma tradicional de organização político-partidária, e dos movimentos sociais tradicionais, existe por boas razões. O quadro exibido pelos partidos políticos em geral é lamentável, e mesmo um partido como o PSOL tem muitas limitações, como já assinalei. Movimentos sociais tradicionais (penso na CUT, por exemplo) têm sido até menos atrativos do que partidos políticos.

Por outro lado, acho que devemos insistir em que não existe possibilidade de transformação da sociedade, de uma revolução vitoriosa, sem um projeto político claro, sem a construção paciente de formas de organização, etc. As multidões que foram às ruas na Tunísia e no Egito derrubaram os tiranos; mas, em seguida, as eleições foram vencidas por forças políticas que tiveram pouca presença nas mobilizações, mas que tinham um nível importante de organização. O processo continua, a revolução não foi derrotada, mas ficou mais clara a necessidade da construção paciente de formas de organização.

Nossa esperança, então, só pode estar em conseguirmos construir partidos e movimentos adequados aos tempos que vivemos, diferentes das organizações burocratizadas e cinzentas tradicionais.


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