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lixoextraordinarioBrasil - Diário Liberdade - [Irlan Simões] Na segunda-feira, dia 17 de setembro aconteceu a abertura do Curta-se (Festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe), no Teatro Tobias Barreto, o mais pomposo e cheirosinho da cidade. Fui por acaso, direto do trabalho, porque de ultima hora minha companheira conseguiu um ingresso para mim. Ia acontecer um show de Tulipa Ruiz e a apresentação de um filme.


Antes de tudo, claro, o jabá. Todos os patrocinadores foram convidados a se pronunciar (3 deles não estavam presentes), e mostrar o “compromisso com a cultura”, o que após o filme – motivo pelo qual escrevo – fez a cena soar ainda mais irônica. Dentre eles estava algum representante de alguma coisa lá na Petrobras, o único sincero entre eles: “O que uma empresa tão poluente teria a ver com a cultura? Retribuição”. Seja lá o que ele quis dizer com isso.

Além da apresentação do documentário “Cidade de Deus: 10 anos depois” – que por sinal, interessou bastante, já que mostra que a vida do cinema não é só glamour e tapete vermelho, principalmente pra quem é negro e pobre – aconteceu a exibição de “Lixo Extraordinário”, filme dirigido por Lucy Walker e protagonizado por Vik Muniz, reconhecido artista plástico brasileiro (no exterior). O filme retrata uma “aventura” do artista no aterro de Gramacho, o maior do mundo em volume de lixo recebido. O lixo que é a matéria-prima das obras que fizeram Vik Muniz tão famoso.

Mas o interessante mesmo foi ver a reação geral ao final do documentário, enquanto uma obra sensível e que dá lições de superação e de solidariedade. Poderia ser como qualquer outro filmezinho mequetrefe, mas teve um quê de diferença pra gente refletir.

Faltava, claramente, ao artista Vik Muniz uma leitura mais aprofundada sobre as razões sociais e históricas que formam o povo brasileiro. Sendo mais direto, faltava um pouco mais de Marx mesmo, para que Vik pudesse ser mais incisivo nos pontos que ele expôs, mas não fez questão de ligar: o conflito cooperativa e propriedade privada; a super-produção de lixo numa cidade de miseráveis; a herança "classicista" da sociedade brasileira; a ocupação irregular de terrenos indevidos; a "queda" abrupta das famílias brasileiras numa pirâmide social cada vez mais alta e, por fim, o brilho e as belezas de uma gente que tem orgulho de ser o que é mesmo vivendo em condições tão degradantes como a do Aterro do Gramacho (o maior do mundo).

Vik Muniz mostra o tempo inteiro ser um cara de grande compaixão e de respeito aos mais pobres. Isso acontece, ao menos é o que o filme deixa transparecer, pelas dificuldades que passou na vida, mas também pelo que ele classificou como "vício do apego material". Mostrou como, apesar de ter conquistado tanta coisa, estava dando alguns passos atrás na própria ambição para recorrer ao que sempre renegou.

O filme, exatamente por se abster em fazer uma crítica mais direta e clara, toma rumos diferentes na mente de espectador pouco acostumado a documentários. Alguns apontariam “solucionáticas” já dadas como caminho único à salvação da humanidade: reciclagem, caridade, empreendedorismo, iniciativa individual e todas essas coisas que remetem mais ao Criança Esperança do que ao que a realidade realmente exige.

Talvez esse, sim, seja o grande mistério do filme. Um artista plástico talentoso, brasileiro, distanciado de debates políticos (realidade típica no meio artístico dos tempos atuais), atinge o máximo dos seus sonhos vivendo em Londres com uma bela família, uma bela casa e uns carro na garagem, realizado de todas as formas possíveis, ainda assim conseguiu ser atingido por uma realidade chocante. Não como ela é diante das lentes, mas como ela se desenvolve de forma confusa e organizada, furto de uma engrenagem político e socioeconômica. Vik Muniz conseguiu enxergar isso, mesmo tão distante.

Quando disse lá em cima que faltou um pouco de Marx no filme não foi exercício doutrinário. Ao fim do filme, mesmo que sem dar respostas claras à precariedade das condições de vida daqueles catadores de material reciclável, os créditos finais apontam que alguns dos protagonistas saíram do aterro, enquanto outros teriam continuado por uma suposta "saudade" do lugar. É aí que entra a grande discussão: se todos os catadores tivessem condições de largar a vida sofrida de um catador brasileiro, quem cataria?

A atividade desenvolvida pelos catadores de material reciclável é hoje uma das mais fundamentais em termos de manutenção da sobrevivência dos seres vivos em lugares como o Rio de Janeiro. O trabalho desses "invisíveis" retratados pelo trabalho de Vik Muniz reduz em 50% todo o material despejado pelas casas cariocas.

O catador que ganha menos de 1 real por quilo de plástico catado cumpre uma função social tão (ou mais) importante do que um advogado que recebe 20 mil reais numa única ação vencida.

O mesmo catador que não recebe ajuda do Estado para comprar materiais de segurança e auxílios para que não abandone a atividade, cumpre uma função social tão (ou mais) importante do que um especulador que recebe a doação de um terreno. 

O mesmo catador que vem ajudando a frear males como o desmatamento e a mineração predatória através da sua labuta, cumpre uma função social tão (ou mais) importante do que uma "empresa ambientalmente responsável" que gasta milhões com o seu departamento de marketing.

O grande vácuo que o filme deixa é, claramente, fruto da própria fragilidade da argumentação política de Vik Muniz – que, como já falei também, é regra no meio artístico brasileiro hoje. Vik Muniz acaba caindo no mesmo equívoco que provavelmente todos aqueles que saíram surpreendidos com o que viram no documentário cometem: acreditar que ações individuais tem capacidade de alterar realidades socializadas.

O que faltou ao filme foi um apontamento para uma superação de uma realidade que ele mesmo denunciou. Veja como Vik Muniz, mesmo enxergando, registrando e vivenciando aquilo por um ano, ainda é capaz de acreditar que vender um quadro num leilão (coisa de ricos loucos, que ele mesmo falou!) pode ser um saída.

Se todos os artistas do mundo fizessem isso com todos os badameiros¹ do mundo... não mudaria nada!


¹ Modo como os baianos chamam os catadores de lixo. 

 Irlan Simões é jornalista.

 


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