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030313 sonia fleury 4Brasil - PCO - No aniversário de quatro anos da primeira UPP Causa Operária entrevista a doutora em Ciência Politica e professora na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas na FGV, onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública. Sônia Fleury fala da militarização dos espaços ocupados pelo Estado e do desenrolar dessa política conservadora, que prega o empreendedorismo e individualismo e transforma toda a cidade em mercadoria.


Causa Operária: Como surgiu seu interesse em pesquisar as comunidades que foram ocupadas pelas UPPs?

Sônia: Durante minha vida tenho estudado sistematicamente a construção da democracia, as dificuldades dessa construção no Brasil, especialmente com relação à capacidade do nosso sistema político e social de incluir aqueles que estão fora. Eu trabalhei efetivamente desde a época da Constituinte, como consultora, ajudei a redigir o texto constitucional. Trabalhei muito na construção do sistema institucional de direitos universais, de previdência, de saúde, assistência e durante muitos anos fui ligada a essas politicas. Estas políticas foram a construção da social-democracia que se pensou e se formou no final dos anos 80. Eu trabalhava especificamente com política urbana e política de segurança. Mas me interessei por essa novidade que, a meu ver, está deslocando as políticas de sistemas universais para políticas territorializadas, ou seja em vez de você ter como noção a ideia do direito da cidadania como todo sistema universal você passa a ter como diretriz a política de segurança. Como lutar contra o tráfico, a violência, proteger a cidade, integrar a população à cidade de alguma forma e evitar que ela caia sob o domínio dos traficantes? Isso é uma guinada de todo o desenho que nós fizemos do sistema de bem estar social. As próprias políticas sociais, no caso da pacificação, passam a ser subordinadas a essa noção de segurança em vez da noção de direito como fundamental. Passa a se ter a noção de controle de segurança como fundamental, então as ações sociais, como programas, não são dirigidos às escola, ao sistema de saúde ou à capacitação de pessoas. Mas você faz uma série de projetos apenas para ocupar o tempo das pessoas, de tal forma que, por exemplo, os meninos ocupem o seu tempo para não caírem na tentação de serem traficantes. É um vigiar e punir, um ordenar a pedagogia da cidadania que não tem nada a ver com o conceito de cidadania que está na constituição que é emancipatório, mas sim um conceito disciplinador. Ali se vai para disciplinar as pessoas, ensinar onde elas jogam o lixo. Como se elas tivessem tendo serviços. É uma subida enorme do mercado e essa política abre um espaço enorme para o mercado. Ela é uma política construída entre o governo e os empresários, antes a política social era construída entre o governo e a cidadania.

O importante da constituinte de 88 era o poder dos conselhos, as conferências, a participação da comunidade no processo decisório compartilhando o poder com o governo. Agora, esse não é mais o objetivo. Você tem outro tipo de participação em que as pessoas são chamadas de pacificadas na qual as decisões já foram tomadas elas não participam. E fazem o que podem para amortecer o conflito. Dizem para as pessoas que elas terão que ser removidas porque tem rio, tem o laudo técnico, inventam um monte de coisas para convencer as pessoas, mas não dão chances a elas de participarem ou resolverem os problemas. Automaticamente depois que a polícia entra e toma o controle da favela, abre-se grande espaço para o mercado. É impressionante. No dia seguinte da invasão da favela, subiu a sky, a light e todas essas empresas para vender o seu “serviço” porque não tem mais o “gatonet”, a “luz de gato” e  tudo mais. As pessoas passam a ser cobradas pelo dever de cidadão, mas sem ter os direitos de cidadania, porque elas não têm as mesmas ruas arborizadas, o mesmo esgoto, a mesma qualidade de vida que as pessoas lá embaixo, mas tem que pagar a mesma sky, água e luz. Nós escrevemos um artigo dizendo: “O Mercado subiu a favela, será que a cidadania vai ter que descer?” porque o que está acontecendo é um tipo de remoção branca. Os turistas estão invadindo a favela. A favela virou uma mercadoria. A cidade hoje é pensada como se fosse uma mercadoria, onde temos que vender internacionalmente para os grandes jogos e tudo está em função desse mercado. A cidade é a mercadoria. E uma mercadoria especial dentro da cidade é a favela. Como ocupar esses lugares, que são lindos? Como fazer um espaço turístico para ver o quão exóticas são as pessoas da favela fazendo churrasquinho na laje? Estão ocupando inclusive os espaços de sociabilidade que as pessoas tinham. Por exemplo, no Morro da Santa Marta você tinha uma quadra que era usada pela população, hoje são as menininhas da classe média que sobem para festas que custam caro que usam esse espaço. O pessoal da favela fica no entorno, vendendo cerveja na porta. Não usa mais o espaço. Então, os poucos espaços públicos estão sendo ocupados. No Morro da Providência tinha uma quadra em que as crianças brincavam, mas acabou porque o teleférico vai sair deste ponto, e a partir daí os turistas vão para um mirante ver a vista que é linda. É uma orientação de política urbana e social que não é em prol da cidadania, mas sim da mercadoria essa que é a grande questão. Tiraram vários espaços sociais no Morro da Providência para a subida do teleférico e criaram vários espaços que são mirantes, porque a vista é esplendorosa naquele lugar e estão marcando casas que têm que sair de perto do mirante, mas são casas que não tem nenhum risco ou problema, apenas atrapalham as praças que vão servir aos turistas. As pessoas na favela falam “a favela somos nós e não a vista, se eles quiserem vir que seja para nos verem, ver a nossa cultura, como nós vivemos”, mas isso está sendo limpado. Está acontecendo uma verdadeira limpeza urbana.

Causa operária: Em alguma de suas entrevistas você comenta a militarização das favelas com a subida das UPPS e os avanços conservadores, moralistas influenciados por uma moral religiosa, você poderia explicar um pouco isso?

Sônia: O que eu falo é que há uma política social que vem sendo tratada há alguns anos do ponto de vista que faça com que as pessoas cheguem  ao mercado de consumo. Ou seja, acabar com a extrema pobreza individualizando cada família que passa a ganhar 70 reais por membro para dizer que  não está na pobreza extrema e conseguir um lugar no mercado. Como se a pobreza não fosse algo estrutural e sim individual. Do lado da classe média é a mesma coisa. Em vez de termos as pessoas lutando coletivamente para ter uma escola pública boa, um sistema de saúde bom é cada uma querendo comprar o seu plano de saúde, de previdência, sua escola privada. É uma individualização dos riscos. Toda a democratização da social-democracia que houve na Europa foi a coletivização dos riscos, “vamos juntos consumir sistemas que hoje pago e dos quais amanhã eu me beneficio”. Isso era o sistema de seguro social e hoje você tem políticas, todas elas, individualizadas. E isso está gerando um conservadorismo muito grande, porque os beneficiados não se sentem participando de um projeto político de um governo de esquerda, ou o que seja. Hoje se pensa: “se eu me dei bem e o meu vizinho não, azar foi o dele porque ele não soube aproveitar as oportunidades, eu sou mais empreendedor do que ele”. O que é valorizado hoje é o empreendedorismo, como se fosse algo da pessoa, uma qualidade da pessoa e não da capacidade da sociedade gerar empregos, oportunidades para todos. Não que alguns não vão se dar melhor que os outros. Mas as oportunidades não estão sendo iguais. Então esse tipo de política está gerando um conservadorismo muito grande e ele se reflete, por exemplo, na favela. Hoje você vai a uma favela e não consegue achar um terreiro de macumba, só tem igrejas evangélicas que são extremamente conservadoras e que têm um domínio muito grande sobre a política eleitoral, porque eles têm Bancada Evangélica, participam dos governos, têm Ministérios, Secretarias. Hoje temos um poder religioso conservador que não tem nada a ver com a teologia da libertação, por exemplo, porque a igreja católica largou mão para os carismáticos. Hoje você tem uma população pobre e conservadora, que tem até apoio de política pública, mas que pensa que o que ela conseguiu foi por conta própria e tem valores muito conservadores, quer subir na vida, consumir mais e está muito distante de uma visão social, mais coletiva, inclusive entre os pobres.

É a militarização que subordina todas as outras políticas de repressão. O nosso seminário [intitulado “Favela é Cidade”, realizado no final de 2012] foi muito interessante porque um morador falou “eu prefiro conversar com a polícia armada que com um traficante armado”, daí um pesquisador disse “eu prefiro conversar com os dois desarmados, seria muito mais civilizado”. Nos habituamos tanto a essa violência, essa punição, que nem reparamos. Nesse nosso seminário tinha um representante da ONU [Organização das Nações Unidas], um coreano. Ele ficou muito impressionado que o policial que foi representando as UPPs, não só estava fardado como armado. O que para nós não chama nem atenção porque achamos que ele tem que participar de um seminário armado para discutir junto com a comunidade. Eu assisti uma reunião no Morro do Chapéu quando estava sendo apresentada a UPP, eu até tirei uma fotografia, tinha uma pessoa sentada na última arquibancada com um resolver ostensivamente aparecendo, certamente era segurança do governo. Há um convívio permanente com a repressão. Essa convivência com a violência com a coerção está se banalizando e naturalizando como se isso fosse a ordem. A ordem não é isso, é pactuar certos valores, certas regras que não se impõem com um revólver.

Causa Operária: Existem muitas denúncias de violências por parte de policiais?

Sônia: É comum agora, mas agora tem ouvidoria o que não tinha antes. Antes, se a pessoa fosse reclamar podia ser presa por desacato a autoridade. Devido a muitas denúncias colocaram a ouvidoria, até porque vai se aprendendo e melhorando alguns aspectos. Agora as pessoas têm como reclamar. Há outros recursos como os direitos humanos, a própria defensoria pública está atuando contra as remoções, exigindo que se explique porque está sendo feita a remoção das famílias. As pessoas tem medo se serem removidos e no lugar delas serem colocados hotéis ou o que seja. Então, na verdade, não tem justificativa. Eles aparecem com laudos técnicos de risco, mas não necessariamente isso é verdadeiro. A população procura outros técnicos para fazerem contra laudos e há uma resistência, uma tentativa de discutir com o governo. A população também está se beneficiando do que é bom e se insurgindo e resistindo ao que não é bom para ela. Ninguém quer voltar à situação anterior, mas quer que a atual seja mais democrática. Não há dúvidas de que há essa demanda, de que seja mais democrática tanto no sentido de reconhecer os moradores que estão ali dentro, como deixar que eles participem do processo de reformulação e variações da política. Ou seja, não adianta dizer que está tudo igual para todo mundo quando o lixo está acumulado, a vala está passando na porta. E você está ao lado do Leme ou das mansões de Botafogo e dizer que está tudo bem e igual só porque os turistas estão podendo subir lá. Isso não é igualdade. As pessoas ainda vivem numa miséria que é chocante diante da riqueza ao lado. Então, esse País precisa redistribuir. Não é só política para turistas poderem ir visitar, é preciso melhorar a vida das pessoas. Alguma coisa está sendo feita, mas é muito pouco em relação a todo o aparato policial. Você olha uma UPP, tem 120 policias altamente armados com blindados, tecnologias com câmeras. Eles são financiados. Por exemplo, no Santa Marta, o Eike Batista é o financiador desse aparato. Enquanto os agentes comunitários de saúde são 20 para cada favela.

Causa Operária: Por que o Eike Batista está envolvido nisso?

Sônia: Os empresários estão envolvidos porque é uma politica empresarial. Tem depoimentos do próprio Eike no You Tube dizendo que ele acredita nessa política e por isso está investindo. Ou seja, virou um grande negócio pacificar essa área para ter turismo, empreendimento. Mas há o temor de que as pessoas sejam removidas por causa disto, no caso da UPP do Santa Marta há depoimentos do Eike Batista dizendo que financia as UPPs. No caso do Morro da Providência há vários depoimentos de moradores dizendo que ele está comprando tudo por ali, não sabemos se isso é mito ou verdade. Mas na verdade é um processo em que as pessoas têm pouca informação sobre o que realmente está acontecendo.

Causa Operária: As UPPs que foram instaladas no RJ são todas em pontos estratégicos para o turismo?

Sônia: Veja só, o Rio de Janeiro tem várias comunidades que são dominadas por milicianos. Nessas áreas as UPPs não entraram. Só no Ubatam, porque teve um evento que eles prenderam aquele jornalista aí conseguiram entrar. Os outros são de traficantes e não de milicianos. E estão nas zonas onde vão ocorrer os grande eventos esportivos. Do aeroporto em diante. Maré, Tijuca, Maracanã e depois Vila Autódromo. Todas áreas onde vão ocorrer os eventos, que estão circunscritas aos megaeventos. E não mexeram com os milicianos. A cidade está sendo basicamente toda reformulada para os grandes eventos, essa é a linha diretora da transformação urbana.

Causa Operária: Como as comunidades têm reagido às invasões? Tem havido protestos?

Sônia: Há resistência sim. Por exemplo, no Maracanã, ia se tirar uma escola que tem excelente avaliação e houve resistência da classe média e baixa que acabaram conseguindo evitar a derrubada da escola. No museu do Índio iam derrubar para fazer estacionamento, houve toda uma campanha e resistência. Agora decidiram restaurar o museu. Então, a política depende muito de encontrar resistências e aceitações. Está sendo desenhada uma política urbana em função dos eventos, contrariando valores e tradições culturais. Mas a população reage e a política tem que se adaptar de acordo com a relação de forças. Todos os fóruns [de debate] que eu participei a população também foi. Ela está interessada, quer participar. Mesmo que estes fóruns não resultem em mudanças, a população não deixa esse espaço vazio. As lideranças vão lá, discutem, questionam. E se isso não tem receptividade procuram contra laudos e a defensoria pública, recorrem a todas as armas que eles têm. Mas não deixam esses espaços vazios. Essas pessoas sobreviveram até hoje porque estão organizadas. Claro que há a cooptação política, o tráfico desmobiliza muito o socioativismo na favela, isso tem que ser repensado. Mais há movimentos importantes que começaram e estão se espalhando por outras favelas, estão procurando se juntar. Porque a política fragmenta, traça cada um separadamente do outro, não só cada indivíduo como cada favela separada, e elas estão procurando o contrário. Estão buscando formas de se rearticularem de alguma maneira, porque hoje não existe mais uma unidade, por causa das facções do tráfico, por causa da política pública de cooptação e tudo mais. Mas há um movimento de buscar tratar essa questão não como fenômeno individual, mas como uma questão da cidade, e nisso muitos intelectuais estão envolvidos, como urbanistas; tem o Fórum do Porto que está discutindo isso; cineastas; músicos e muitos outros que estão envolvidos na defesa de uma cidade que seja para cidadãos que não seja meramente uma mercadoria. E sim uma cidade para a cidadania.

Causa Operária: Quais são as verdadeiras intenções das UPPs instaladas nas favelas?

Sônia: Acho que o grande motor é esse projeto urbano de uma cidade que seja uma mercadoria, disputando recursos globais, e isso está transformando a cidade para o bem e para o mau. Para o bem porque consegue tirar as pessoas do domínio dos traficantes, isso é maravilhoso, conseguir que os policiais não entrem na favela atirando e que as pessoas tenham empregos e sejam respeitadas. Mas é preciso muito mais coisa. Acho que essa dinâmica que estamos assistindo gera tensões e resistência. É preciso transformar a cidade de uma forma adequada para a cidadania.


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