1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (0 Votos)

180412 impunidadeUruguai - Brasil de Fato - [Olga Fernández ] Omissões e negligências do Estado não fizeram com que as organizações de direitos humanos do Uruguai desistissem das suas buscas


É o voto que a alma pronuncia*

A primeira vez foi em 1989. A profunda tradição democrática e o enraizamento da esquerda e das organizações sociais no povo uruguaio não deixavam dúvidas de que o voto popular ofereceria uma alternativa à impunidade que o Parlamento havia regulamentado.

O professor Julio Castro, cujos restos mortais

foram encontrados em prédio militar - Foto: Reprodução

Depois do restabelecimento da democracia uruguaia em 1985, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a situação de pessoas desaparecidas e sobre os fatos que motivaram estes desaparecimentos. O resultado dessa comissão, junto com os depoimentos coletados pelas organizações de direitos humanos como o SERPAJ – Serviço de Paz e Justiça – e o IELSUR – Instituto de Estudos Legais e Sociais do Uruguai, permitiram que os militares fossem intimados a depor à Justiça pela primeira vez.

Entretanto, o discurso do governo estigmatizava as organizações de direitos humanos. Julio M. Sanguinetti, o primeiro presidente constitucional, acusou- as de ter os "olhos na nuca", e incorporou-as dentro da "teoria dos dois demônios" – segundo a qual o terror de Estado seria simétrico ao das organizações guerrilheiras.

Desde a direita parlamentar pretendeu- se construir uma "saída à uruguaia" e em 22 de dezembro de 1986 o parlamento aprovou por maioria a Lei 15.848 da Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado, uma lei tristemente conhecida como Lei de Impunidade. A lei 15.848 estabelecia a renúncia por parte do Estado das suas faculdades de julgar e punir os policiais e militares pelos delitos cometidos até o 1º de março de 1985 e dava o poder ao Executivo de avaliar e decidir se os casos que se apresentavam deviam ser julgados ou arquivados pelo Judiciário. As organizações sociais rejeitaram a Lei de Impunidade desde sua sanção e criaram uma comissão nacional que, patrocinada por atores do mundo da política e da cultura, submeteu a lei a plebiscito em 1989. Nele o povo uruguaio teve que se manifestar a favor ou contra tal lei.

Durante esse processo, de 1986 a 1989, as pesquisas e procedimentos judiciais foram interrompidos. Em nenhum nível do Estado se atuou mais do que o Judiciário com o objetivo de impor os mesmos mecanismos de medo e censura da ditadura. Assim foi que, chegado o dia do plebiscito, os votos para acabar com a Lei de Impunidade foram insuficientes.

O esquecimento esta cheio de memoria**

A Lei nº 15.848, em seu artigo 4º, estabelecia que o Estado deveria investigar o destino dos desaparecidos, o que durante os anos de 1990, motivou a organização "Madres y Familiares de Detenidos Desaparecidos", junto com as entidades de trabalhadores e estudantes, como o PIT-CNT (Plenário Intersindical e Convenção Nacional dos Trabalhadores) e a FEUU (Federação de Estudantes Universitários do Uruguai), a fazer inclusive um abaixo assinado dirigido ao Presidente da República para a efetivação de tal artigo.

Enquanto os partidos de direita governaram, desde 1985 até 2005, o artigo 4º não se cumpriu. Mais ainda, através da história oficial, esses governos lograram consolidar a teoria dos dois demônios para sua reprodução na sociedade, junto com um discurso que sustentava a inexistência de desaparecidos no Uruguai.

No entanto, desde o 20 de maio de 1996, a sociedade vem sendo convocada para as Marchas do Silêncio. Grandes marchas organizadas pelos familiares de desaparecidos, que ininterruptamente tem dado força às reivindicações de verdade, memória, justiça e, ao "nunca mais". A participação dos uruguaios nas Marchas do Silêncio não pararam de crescer.

No ano 2000, Jorge Batlle, do Partido Colorado, assumiu o governo nacional reconhecendo que a luta dos familiares de desaparecidos mostrava que o tema não estava resolvido. Propôs uma "reconciliação nacional", na qual os uruguaios deveríamos chegar, mas partindo do que ele chamou de um "estado da alma".

Batle, retomando o discurso da teoria dos dois demônios, criou uma "Comissão para a Paz". Ela elaborou um informe que só fez reconhecer a existência de desaparecidos durante a ditadura militar e a constatação de morte de alguns deles. O fato de o Estado ter se omitido e cometido diversas negligências, não fez as organizações de direitos humanos do país desistirem das suas buscas. Foi assim que a colaboração entre as organizações e alguns jornalistas comprometidos permitiu encontrar Macarena Gelman e Simon Riquelo, filhos de desaparecidos e sequestrados pela ditadura. Ao serem encontrados, não só lhes foi restituída sua verdadeira identidade, como também veio a público, e de forma explícita, que a ditadura uruguaia tinha participado do Plano Condor, responsável pelo desaparecimento de cidadãos e pelo sequestro de crianças.

O comandante do Exército uruguaio, Pedro Aguerre,

reconheceu a presença de criminosos em seu grupo

Em 2006, foram recuperados os primeiros restos mortais de desaparecidos, os de Ubagesner Chávez Sosa e Fernando Miranda. Abriu-se então um novo cenário político, e as organizações sociais junto com os partidos de esquerda promoveram um novo plebiscito em 2009 para anular a Lei de Impunidade. Em 2009, o objetivo do plebiscito não foi alcançado. Contudo em 2010 Macarena Gelman apresentou uma demanda contra o Estado uruguaio perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). A CIDH emitiu sentença em favor dela e exigiu ao Estado o cumprimento da investigação dos delitos contra a humanidade que cometeu durante a ditadura.

Quais são as tradições?***

Por mais de duas décadas, os uruguaios crescemos e nos desenvolvemos na desvalorização do coletivo, na desídia e na dor.

Para os uruguaios, a memória também não foi bem-sucedida como fator aglutinante. Nem sequer quando, durante a maior parte do período democrático pós-ditadura, a necessidade de sua reconstrução e permanência era um importante espaço de debate e luta ideológica. A esquerda política ainda custava a abordar a desconstrução dos conceitos que impõe a história oficial e, até hoje, tem sido os familiares de desaparecidos praticamente os únicos a assumir essa tarefa.

A memória implica voltar a revolver as dores e perdas que, para muito poucos uruguaios, poderia retornar a uma construção reparadora ou sanadora. Para a maioria, esse voltar a revolver resultaria numa impudicícia, algo incontrolável que implicaria numa abertura de portas que conduziam a lugares insuspeitados e, portanto, finais carregados de incertezas.

Desde há vinte anos que os familiares diretos dos desaparecidos são a referência social da memória. Por isso, por muitos anos, o desaparecimento forçado foi o foco principal de denúncia do terror. O caráter permanente do desaparecimento forçado é difícil de ser provado e compreendido. Isso poderia explicar a insuficiente empatia, evidenciada nos resultados das duas instâncias em que a impunidade foi submetida a consulta popular.

No ano de 2011 houve fortes demonstrações contra a Lei de Impunidade. Em novembro prescreveriam os crimes da ditadura, pelos quais, novamente, as organizações sociais insistiram para que o parlamento retomasse o debate. Com os votos do "Frente Amplio", em 29 de outubro, o parlamento aprovou uma lei que reconhece a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e restitui ao Estado sua pretensão punitiva. Com essa lei, a Justiça ficou liberada para atuar segundo o necessário. Apesar do fracasso do plebiscito de 2009, o cenário de luta mudou e agora não são só as vítimas ou seus familiares que realizam as denúncias. Porque, a partir de 2010, gerou-se um movimento de cidadãos que está apresentando denúncias perante a justiça e que faz pressão permanentemente para que o Estado investigue.

Poucos dias após o parlamento se posicionar a favor da restituição à justiça, os restos mortais de um professor, que não fora nem comunista nem guerrilheiro, foram encontrados num prédio militar. A constatação de que estes restos pertencem ao professor Julio Castro e de que, portanto, tinha sido assassinado, obrigou o Comandante do Exército, Pedro Aguerre a reconhecer a existência de criminosos em seu grupo e exigir aos seus subalternos o fornecimento de toda informação possível a respeito.

Poucos dias atrás apareceram novos restos humanos no mesmo prédio militar que os de Julio Castro. Enquanto os resultados da análise de DNA são esperados e as buscas continuam, o Presidente da República – dando cumprimento à sentença da CIDH – reconheceu os crimes cometidos como terrorismo de Estado a partir dos crimes levados a cabo contra Macarena Gelman e sua família.

De muitas maneiras, a sentença da CIDH significou um importante respaldo para a luta das organizações de direitos humanos. Por um lado, através de diferentes coletivos, muitas vítimas começaram a se encontrar e reencontrar, a recompor sua identidade e se organizar. Por outro lado, começaram a ser apresentadas novas denúncias por torturas, violência de gênero, assassinatos, apropriação ilegítima de bens materiais, exílio, privação ilegítima da liberdade e nascimentos em cativeiro político que dezenas de uruguaios sofreram por causa do terrorismo de Estado. Mas também, a sentença da CIDH propiciou a reconsideração do debate parlamentar sobre a Lei de Impunidade.

No Uruguai, os caminhos de aproximação para a construção da memória estiveram sempre vinculados à ideia de acabar com a institucionalidade da impunidade. Por isso, a sentença nos brinda como um marco para a uma nova etapa, segundo a qual será importante compreender coletivamente que a construção de pontes de memória é o único caminho para o conhecimento da verdade.

A situação dos desaparecidos no Uruguai ainda não foi esclarecida, como também não o foram as circunstâncias em que dezenas de pessoas foram torturadas e assassinadas. Hoje, contudo, a teoria dos dois demônios começa a cambalear perante a sociedade e a perder argumentadores.

Com certeza, os uruguaios ainda convivemos com aqueles que, entre nós, impedem a realização de uma construção cabal de nossa memória. Porém, enquanto as investigações avançam, nós também vamos nos aproximando da verdade e da oportunidade de justiça. Transitamos por esse caminho, dando-nos conta de que também é possível desconstruir a história oficial desde o discurso oficial e que dessa maneira também se escreve a história.

*trecho do hino uruguaio.

**É um verso de "Ese gran simulacro", poema de M. Benedetti.

***Verso de "Las raíces desteñidas", canção de La Tabaré Riverock Banda.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.