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280213 carlos veloAmérica Latina - PGL - [José Paz Rodrigues] As nossas universidades há tempo que deixaram de ser autênticas instituições transformadoras da sociedade, e finalmente o famoso «Plano Bolonha» veio-lhes dar o último tiro de misericórdia.


Hoje as nossas universidades, que tinham que ser verdadeiros centros de cultura dinâmica, fértil, com profunda projeção social e com incidência real na melhoria de todos os campos socioculturais, têm infinidade de problemas e de vícios, muito difíceis de solucionar. A sua incidência social, fechadas em si mesmas, excessivamente burocratizadas, com uma endogamia vergonhosa, com uma quase falta total de inovação, com partidismos alarmantes, é hoje quase que nula. Por isso, é urgentíssimo levar a cabo uma profunda reforma das mesmas e, de alguma maneira, voltar ao que foram no seu nascimento lá na Idade Média: verdadeiras «universitas», com a união real de professores e alunos na procura do saber mais elevado, de refletir sobre a sociedade, de avançar em todos os conhecimentos, de alcançar a solidariedade, de aprender a pensar e refletir, de ajudar a transformar positivamente a sociedade no seu progresso, de aprender estratégias de intervenção social, de obter profissionais bem formados, reflexivos, com consciência social...

Enfim, é urgente de novo conseguir uma universidade comprometida realmente com o povo e a sua cultura, não sectária, não partidista, pois a universidade tem que estar sempre acima de partidismos, parcialidades e divisões funestas. Na procura do bem comum, de uma sociedade culta, justa, integrada e harmónica, na defesa dos direitos humanos, da autêntica democracia, da irmandade entre todos, do respeito e a tolerância, em defesa sempre da vida. Para conseguir isto resta um longo caminho. Dizia Tagore: «A verdadeira função da Universidade é manter desperto o espírito». E também: «As relações humanas entre professores e estudantes são como a luz do sol alumiando os caminhos», que é o que teria que ser nas nossas universidades. Igualmente é muito formoso quando diz: O fator mais importante da educação universitária é um ambiente de atividade criadora onde a atividade intelectual possa desenvolver-se sem travão algum. O ensino deve ser manancial desbordante de cultura, espontâneo e incontido. A educação só é saudável e natural quando é fruto de um saber vivente e puxante».

Com o mesmo sentido, mas com outras palavras, muito formosas também, falava o chileno Salvador Allende em 2 de dezembro de 1972 aos estudantes e professores da Universidade de Guadalajara (México). O diretor galego de cinema Carlos Velo, natural de Cartelhe (Ourense), realizou um belo documentário, ilustrando com formosas imagens diferentes treitos do discurso de Allende. O resultado foi um magistral documentário sob o título de Universidade Comprometida. Que eu escolhi para lembrar que no dia 7 de março era nos meus tempos de estudante o Dia do Estudante, e organizavam-se atividades culturais arredor desta data. Acho que estaria bem recuperar esta comemoração, que passou a ser nas últimas décadas um ridículo dia feriado sem mais, perdendo todo o sentido que tinha.

Ficha técnica do filme:

Título original: Universidad Comprometida (Universidade Comprometida). Documentário.

Diretor: Carlos Velo (México, 1973, 30 min., A cores).

Diretor adjunto: Carlos Ortiz Tejeda.

Roteiro: Carlos Velo, sobre o discurso e palavras de Allende, ilustrado com imagens de factos e gentes de América Latina.

Fotografia: Armando Carrillo e Rafael Corkidi.

Prémio: Prémio do Público no Festival Ibero-americano de Huelva (1976).

Argumento: Intervenção in extenso, feita por Salvador Allende em 2 de dezembro de 1972, perante os professores e estudantes da universidade mexicana de Guadalajara, que durou mais de uma hora, durante a sua visita oficial a México. Um lindíssimo discurso com o agradável verbo do presidente chileno, um político dos mais dignos da história. Este discurso verdadeiramente emocionante foi reforçado pela inserção de numerosas imagens e flashes documentais de Chile, México e América Latina, no que a afervorada oratória do político assassinado em setembro de 1973, envolvia docentes e estudantes no processo revolucionário, animando-os a ser sempre profissionais com dignidade, voltados a favor do povo e dos cidadãos, e especialmente dos trabalhadores da indústria, o campo e o mar.

Na procura de estudantes, futuros profissionais, com dignidade, comprometidos com a sua sociedade:

Prefiro que fale Allende com a sua magistral prosa poética. Por isto realizo a seguir uma escolha dos treitos e fragmentos resumidos e sintetizados que considero mais significativos do seu discurso, os que falam por si sós:

1. «E porque uma vez fui universitário e passei pela universidade, não na procura de somente um título, porque fui dirigente estudantil e porque fui expulso da universidade, posso falar aos universitários à distância de anos, sei que vocês sabem que não há querela de gerações: há jovens velhos e velhos jovens, e nestes é que me encontro. Há jovens velhos que compreendem que ser universitários é um privilégio, dá-lhes classe social, podendo ganhar a vida com rendimentos superiores aos dos demais. Estos jovens velhos, se são arquitetos, não se perguntam pelas muitas vivendas que faltam nos nossos países, nem no seu próprio país. Fazem da sua profissão um meio honesto para ganharem a vida, tudo em função dos seus interesses. Há médicos que não compreendem ou não querem compreender que a saúde se compra, e que há milhares de homens e mulheres em América Latina que não podem comprar a saúde; que não querem compreender que quanta maior pobreza maior enfermidade, e quanta maior enfermidade maior pobreza. A saúde há que levá-la ao povo de forma ampla, sem pensarem os médicos nos seus honorários. De igual maneira que há mestres que não se preocupam em que haja também milhares de crianças e jovens que não podem ingressar nas escolas, estão desescolarizados. O panorama em América Latina, em números, é muito dramático. Nesta altura temos mais de 100 milhões de pessoas analfabetas e semianalfabetas. Nestas circunstâncias cabe perguntar-se: qual é o destino da juventude? Porque este continente é um continente jovem, 51 % da população está por debaixo dos 27 anos de idade, mas poucos se preocupam pela juventude e por que os jovens tenham trabalho, saúde, vivenda e alimento.

2. E aqui, nesta casa de irmãos, eu, que sou médico, que fui professor de medicina social e presidente por cinco anos da Ordem dos Médicos do Chile, posso dar um número que muito me dói, na minha pátria há 600 mil crianças com um desenvolvimento mental por debaixo do normal. Nos primeiros oito meses a criança, se não recebe a proteína necessária para o seu desenvolvimento corporal e cerebral, vai-se desenvolver de maneira diferente à que a tem, que quase sempre é filho de um setor minoritário poderoso economicamente. Se se der depois dos oito meses, ainda pode recuperar e normalizar o desenvolvimento normal do seu cérebro. O nosso dever, o dos bons governos, é proporcioná-la a tempo. Por isso, muitas vezes mestres e mestras no seu grande labor – eu sempre vinculo os mestres e os médicos como os profissionais de maior responsabilidade de todos –, muitas vezes os mestres veem que a criança não assimila, não entende, não aprende, não retém; e não é porque essa criança não queira aprender ou estudar: é porque cai em condições de menor valia, e isso é consequência de um regime e de um sistema social; porque por desgraça, até o desenvolvimento da inteligência está marcado pela ingestão de alimentos, fundamentalmente nos primeiros oito meses de vida. O melhor alimento nesta altura é o leite materno e, quantas mães proletárias podem amamentar os seus filhos? Muitas moram em lugares marginais, estão subalimentadas e os seus esposos no desemprego, pelo que não o podem fazer. O prejuízo muito injusto é para os seus filhos fundamentalmente.

3. E se há algo que eu pude ver com grande dor de homem e consciência de médico, quando fui às povoações, é as companheiras trabalhadoras, as mães proletárias, a berrarem com as suas bocas sem muitos dentes de que carecem. As crianças também sofrem por isto. Assim é que nós todos temos que compreender que quando falamos de uma universidade, para que termine esta brutal realidade que há mais de um século e meio pesa sobre os nossos povos, há que pensar nas mudanças estruturais e económicas para ter profissionais comprometidos com a mudança social, que não se sintam seres superiores porque os seus pais tiveram o dinheiro suficiente para pagarem os seus estudos. Profissionais com consciência social que compreendam que a sua luta, se forem arquitetos, é para se construírem as casas necessárias de que o povo precisa. Necessitamos de profissionais, se forem médicos, que levantem a sua voz para reclamar que a medicina chegue aos bairros populares e, fundamentalmente, aos setores labregos. Profissionais que não procurem engordar nos cargos públicos, nas capitais das nossas pátrias. Profissionais que vão à província, às vilas, às aldeias, e que se fundam nelas.

4. A sua universidade é estatal, que a pagam os contribuintes, que na sua maioria são trabalhadores. Mas, infelizmente, nesta universidade, como nas do meu país, a presença de filhos de labregos e operários ainda é muito baixa. Vocês têm que ter isto muito presente. A juventude deve compreender a obrigação de ser jovem, e se for estudante, dar-se conta de que há outros jovens que, como ele, têm os mesmos anos, mas não são estudantes. E se for universitário com maior razão olhar o jovem labrego ou o jovem operário, e ter uma linguagem de juventude, não uma linguagem só de estudante universitário para universitários. A sua responsabilidade é muito maior, dado que compreende os fenómenos económicos e sociais e as realidades do mundo. Por isso tem que ser um fator dinâmico do processo de mudança, sem perder os perfis, também, da realidade.

5. É útil que a juventude universitária saiba que não pode passar pela universidade à margem dos problemas do seu povo e compreenda que não se pode dar só doutrinas, que há que refletir e meditar. Que compreenda também que o dogmatismo e o sectarismo devem ser combatidos, pelo funestos que são. A luta ideológica tem que levar-se a níveis superiores, com discussões civilizadas para esclarecer e não impor outras posições. É muito grave cair no escapismo, na toxicodependência e no alcoolismo, pelas gravíssimas consequências que de todo o tipo têm. Ser jovens e não ser revolucionários é uma contradição até biológica, mas avançar pelos caminhos da vida com trabalho e dignidade e manter-se como revolucionário, numa sociedade burguesa, é muito difícil. E vocês jovens devem entende-lo».

Temas para elaborar e refletir:

- Procurar na Internet dados biográficos e filmográficos sobre o diretor galego Carlos Velo, exilado no México desde a guerra civil, onde além de realizar muitos trabalhos cinematográficos, dirigindo também a escola mexicana de documentaristas, foi o criador da interessante revista galega «Vieiros». Elaborar depois uma pequena monografia sobre a sua vida e obra.

- Idem sobre o grande político e médico Salvador Allende, assassinado pelo fascismo dirigido por Pinochet. Analisar o labor do seu governo nos campos da educação e da cultura, que foi modelar. Procurar informação sobre o novo cinema chileno e a nova canção. Organizar depois uma amostra-exposição com textos, fotos e dados importantes de tudo o recolhido.

- Analisar e debater, depois de lidos e/ou escutados, os formosos discursos pronunciados por Allende, incluído o último antes de ser assassinado, para Radio Magallanes, verdadeiramente sublime. Fazer uma síntese dos temas sociais e culturais que mais lhe preocupavam.

- Organizar um cinema-fórum, depois do visionado do documentário. No mesmo devem participar docentes e estudantes de bacharelato e universitários. A projeção poderia fazer-se precisamente para comemorar o Dia do Estudante, na data de 7 de março.


José Paz Rodrigues é académico da AGLP, Didata e Pedagogo Tagoreano.

Foto: O realizador galego Carlos Velo.


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