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Miguel Urbano Rodrigues

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Em coluna

Apontamento sobre a metamorfose de Pacheco Pereira

Miguel Urbano Rodrigues - Publicado: Terça, 19 Janeiro 2016 02:50

O 4º tomo da biografia política de Álvaro Cunhal é [1] , como os anteriores, uma obra semeada de contradições. É entretanto indiscutível que Pacheco Pereira realizou um importante trabalho de investigação, sem precedentes no tocante ao tema. Contém erros, deturpações, omissões, juízos de pessoas e análises (para mim inaceitáveis) de acontecimentos históricos. Umas vezes por atribuir crédito a fontes que o não justificam, outras por insuficiente ou deficiente informação, como sucede nomeadamente com a posição do PCP face à guerra colonial e o muito importante trabalho político desenvolvido pelos antifascistas exilados no Brasil.


O 4º tomo da obra biográfica que Pacheco Pereira dedicou a Álvaro Cunhal recebeu da intelectualidade burguesa um coro de elogios muito superior ao que ela dispensara aos anteriores.

Uma nota prévia sobre o autor.

Conheci-o em casa de Manuel Sertório, em 1975. Apresentou-o como um estudioso do marxismo muito talentoso. Estava ligado a uma organização maoista, o PCPML, e era ainda quase desconhecido fora do Porto.

Reencontrei-o quinze anos depois na Assembleia da Republica como líder da bancada do PSD. Tinha trocado o maoismo pelo partido de Sá Carneiro no qual ascendeu rapidamente como estrela. Muitas das suas intervenções destilavam anticomunismo.

A sua metamorfose fora rápida e complexa. O admirador de Mao, Marx, Lenin e Ho Chi Minh tinha aderido no final dos anos 80 ao PSD e assumira como seu deputado a defesa e apologia do liberalismo rotulado de social-democracia. Mas não era, ao contrário de outros companheiros da sua bancada, um parlamentar truculento.

Na Assembleia da Republica, mantivemos relações frias, mas corteses. Recordo que, para surpresa minha, contribuiu para viabilizar a ida a Cuba de uma delegação multipartidária da Assembleia que foi a primeira de um parlamento europeu a visitar a Ilha revolucionária.

Nos últimos anos, apos ter regressado a Portugal – depois de renunciar ao seu mandato de deputado no Parlamento Europeu – passou a criticar com dureza o governo de Passos Coelho-Portas, condenando como negativa a sua política de austeridade. Mas permanece no PSD como militante.

É dos intelectuais da direita que conheço o mais inteligente e culto.

CONTRADIÇÕES

O 4º tomo da biografia política de Álvaro Cunhal é, como os anteriores, uma obra semeada de contradições, algumas de compreensão difícil.

Os primeiros capítulos incidem sobre o esforço de AC para reorganizar o Partido apos a fuga de Peniche. A clandestinidade rigorosa em que viveu, mudando repetidamente de residência, não o impediu de desenvolver uma atividade intensa, orientada prioritariamente para o combate ao desvio de direita que caracterizara a estratégia do PCP sob a direção de Fogaça.

Pacheco evoca os acontecimentos do ano 60 na perspetiva de historiador. Recorre aliás às Obras Escolhidas para as transcrições de textos de AC.

Essa tentativa de objetividade transparece nas páginas dedicadas à instalação de AC em Moscovo, em 61, ao seu trabalho politico na URSS e à sua vida familiar ali.

Pacheco Pereira, para escrever a sua biografia política de AC, terá tido acesso a documentos desclassificados dos Arquivos Soviéticos. Daí a minucia e o volume da informação sobre os contactos de AC com as mais destacadas personalidades do PCUS. Transcorrido apenas um ano, já era um dos dirigentes comunistas estrangeiros mais respeitados e admirados pela hierarquia do Estado e do partido soviéticos. O Pravda e outros órgãos da imprensa soviética publicavam com frequência artigos seus e a televisão e a radio abriram-lhe as portas.

Utilizando um passaporte checo, pôde visitar as democracias populares do leste europeu, reforçando as relações do PCP com os partidos da RDA, da Polonia, da Hungria, da Bulgária, da Roménia e da Checoslováquia. Em Praga instalou membros influentes do PCP em tarefas internacionalistas.

Fica transparente para os leitores que Pacheco, superando antagonismos ideológicos, sente uma admiração grande por Álvaro Cunhal, pela sua inteligência fulgurante, pela profundidade do seu conhecimento do marxismo-leninismo, pela seriedade no respeito dos compromissos, pelo rigor com que aplicava a teoria à prática, e também pela amplitude da sua cultura humanista, pela sua enorme capacidade de trabalho e uma abertura à arte pouco comum na URSS que naqueles anos acusava ainda a herança pesada do jdanovismo.

O conhecimento dos clássicos do marxismo é identificável no discurso de Pacheco e na sua escrita, diferentes do habitual nos políticos anticomunistas.

Reservado no tocante à sua vida privada, mesmo em conversas com os camaradas mais íntimos, Álvaro Cunhal – refere Pacheco Pereira mais de uma vez – tinha um amor profundo pela filha, Anita, e aproveitava as férias para a visitar na Roménia onde ela vivia com a mãe.

Não é porem surpreendente que os intelectuais da burguesia, incluindo escritores da direita, tenham recebido com entusiasmo este 4º tomo da biografia política de AC.

Essa atitude não seria possível se o autor do livro, em muitos capítulos, não deturpasse acontecimentos políticos importantes, atribuindo a Álvaro Cunhal comportamentos, atitudes e até opiniões incompatíveis com o seu pensamento, caracter e mundividência de comunista.

O confuso capítulo relacionado com conflitos que precederam a instalação em Argel da Frente Portuguesa de Libertação Nacional-FPLN, como prólogo de cisões que golpearam a oposição antifascista, deforma ostensivamente a realidade.

Pacheco não esconde aliás simpatia e antipatia por alguns dos participantes em acontecimentos que envolveram o general Humberto Delgado. Nos capítulos em que aborda o tema do choque URSS-China e os seus reflexos no movimento comunista internacional e a vaga de anti sovietismo que então irrompeu, Pacheco Pereira, que é sempre benevolente nas referências aos ex-comunistas portugueses que posteriormente se deslocaram para a direita (como Silva Marques e o Chico da CUF), concede espaço e atenção a intelectuais camaleónicos como Manuel de Lucena (que anos depois elogiaria os coronéis gregos).

O tom de seriedade que se esforçou por imprimir ao texto é prejudicado por afirmações grotescas como o disparate calunioso de que a PIDE e o KGB trocavam presentes.

Mas é sobretudo no tratamento dos acontecimentos de 1968 na Checoslováquia que Pacheco Pereira abandona a postura de historiador. Deturpa a atitude de Álvaro Cunhal, atribui-lhe hesitações imaginárias perante a grave crise gerada pela entrada na Checoslováquia das tropas do Tratado de Varsóvia, crise que abalou então o movimento comunista internacional e assinalou o início da social-democratização do PCI, do PCF e do PCE. Citando opiniões de gente sem credibilidade, insinua que Álvaro Cunhal sentiu inicialmente muita simpatia por Alexandr Dubcek.

É uma inverdade. Julgo útil recordar que Dubcek, alguns anos apos a desagregação da URSS, quando a Rússia era já uns país capitalista, declarou em entrevista a um jornal francês – de Grenoble, se a memória não me atraiçoa – que nunca se sentiu marxista. Confissão esclarecedora do aventureirismo e da ambição de um político que foi secretário-geral do Partido Comunista da Eslováquia e, depois, do Partido Comunista da Checoslováquia.

Os ataques a Álvaro Cunhal de Flausino Torres e de outros portugueses residentes na Checoslováquia, que na época eram membros do PCP, merecem atenção especial de Pacheco Pereira, que evoca com simpatia a adesão desse grupo à chamada "Primavera de Praga".

Recordo que a incompatibilidade de Dubcek com o socialismo não pôde mais ser negada quando Ota Sik – o seu super ministro da Economia – em conferências em capitais do Ocidente teceu tais elogios ao capitalismo que até John Kenneth Galbraith o denunciou como político reacionário.

A GUERRA COLONIAL

O capítulo sobre a Guerra Colonial e a atitude do PCP perante a luta dos Movimentos de Libertação é aquele em que Pacheco Pereira, independentemente do seu posicionamento, revela, por erros cometidos e omissões, a insuficiência das informações de que dispunha sobre o tema.

Fica óbvio que desconhece o importante papel que as organizações da oposição democrática portuguesa do Brasil desempenharam na luta contra o fascismo, nomeadamente na solidariedade com os movimentos de libertação africanos.

Faz uma referência breve ao jornal Portugal Democrático e lembra que foi no Brasil que a A Questão Agrária em Portugal foi editada pela primeira vez. Cita com frequência a luta dos exilados portugueses em França e noutros países, mas ignora a dimensão do combate da diáspora portuguesa antifascista do Brasil.

Sem consulta à coleção do Portugal Democrático – unitário, mas dirigido por um coletivo de comunistas – não é possível avaliar o significado e importância desse trabalho. O jornal foi durante anos o polo aglutinador da resistência da oposição antifascista em diferentes países da América, do Canadá à Argentina.

A edição da Resistência em Portugal, da Questão Agrária em Portugal, de Angola Cinco Seculos de Colonização Portuguesa (de Américo Boavida), A Guerra em Angola (de Mário Moutinho de Pádua) partiu de iniciativas da organização do PCP em São Paulo, coordenadas com o Comité Central do Partido. Centenas de exemplares desses livros foram introduzidos clandestinamente em Portugal.

Uma dessas iniciativas alcançou repercussão mundial: o Memorando que as organizações de seis países do Continente Americano enviavam todos os anos à Assembleia Geral da ONU, denunciando os crimes do fascismo e exigindo o fim da guerra colonial.

Tendo, inicialmente, como primeiros signatários o general Humberto Delgado e Rui Luis Gomes, esse Documento, era reproduzido por grandes jornais da América. Incomodava tanto o fascismo que o embaixador de Salazar em Washington promoveu uma conferência de imprensa no Waldorf Astoria de Nova York para tentar responder ao memorando.

Álvaro Cunhal acompanhou sempre todas essas iniciativas.

Contrariamente ao que aconteceu em França, na Itália, e noutros países da Europa Ocidental, o Portugal Democrático e a Unidade Democrática Portuguesa, organização que desempenhou um papel importante na divulgação de documentos sobre a guerra colonial e lutas em Portugal, permaneceram imunes ao vírus do esquerdismo.

Na oposição portuguesa surgiram como era inevitável problemas e conflitos pessoais, mais notórios apos a chegada ao Brasil de Humberto Delgado e Henrique Galvão, mas não resultaram de tensões no Movimento Comunista Internacional. O Partido Comunista do Brasil, inicialmente maoista, e as organizações brasileiras que preconizavam a luta armada, sob a forma da guerrilha rural ou da guerrilha urbana, não conquistaram adeptos entre os antifascistas portugueses. As clivagens que afetaram a unidade de ação tiveram motivações diferentes. A queda de Salazar da cadeira e o advento de Marcelo Caetano contribuíram para que se distanciassem do núcleo do Portugal Democrático, recusando participar em ações unitárias com o PCP, entre outras personalidades, o comandante Sarmento Pimental e os jornalistas Vitor da Cunha Rego e Paulo de Castro. O marcelismo foi uma fonte de ilusões e o discurso de Mário Soares nas suas visitas a São Paulo atraiu para o Partido Socialista exilados seduzidos pela chamada democracia representativa. Mas não houve agressividade, nem criticas ao PCP nesse distanciamento.

A INDEFINIÇAO ATUAL DE PACHECO PEREIRA

Os reparos críticos ao livro de Pacheco Pereira não afetam a minha convicção de que este 4º tomo da sua ambiciosa biografia do dirigente comunista reflete uma evolução positiva da sua posição perante o PCP. Creio que a mudança resultou do fascínio que sobre ele exerce Álvaro Cunhal, numa estranha relação amor-ódio.

Registo que, não obstante erros, deturpações, omissões, juízos de pessoas e análises (para mim inaceitáveis) de acontecimentos históricos – Pacheco Pereira realizou um importante trabalho de investigação, sem precedentes no tocante ao tema.

Sou levado a uma conclusão de cariz especulativo. O seu absorvente interesse pela vida, personalidade e obra de Álvaro Cunhal terá contribuído para um distanciamento progressivo do ideário que durante anos o fez porta-voz no PSD de uma estratégia contra revolucionária.

Pacheco Pereira não abdicou de uma postura anticomunista, da sua tolerância perante o imperialismo, e de um anti sovietismo exacerbado. Mas, a sua incompatibilidade com a política reacionária do PSD, a sua reflexão sobre a obra devastadora de Passos, Portas, Maria Luis e quejandos, e as consequências trágicas da "austeridade", empurraram-no gradualmente para críticas lucidas e cada vez mais profundas ao calamitoso desgoverno que estava a destruir o pais.

Os seus artigos em jornais e revistas, as suas entrevistas e intervenções em mesas redondas da TV são hoje globalmente positivos.

Não está próximo de uma rutura com o sistema. Mas contempla-o agora com um olhar muito diferente. Como historiador e académico.

Não sinto a tentação de prever o rumo de José Pacheco Pereira. O político e o intelectual aparecem-me como imprevisíveis pelas suas contradições e indefinições.

Tive o privilégio de trabalhar com Álvaro Cunhal durante uma dúzia de anos. O livro de Pacheco Pereira, apesar do muito de que discordo, contribuiu para aumentar a minha admiração pelo comunista e pelo homem.

Nota:

[1] Álvaro Cunhal, uma biografia política , Temas e Debates, 2015, 480 p., ISBN: 9789727598052

Fonte: O Diário.


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