Uma primeira leitura entende que o apodo ratinhos partiu dos vizinhos espanhóis dos galegos. Mas porque usariam eles uma palavra «portuguesa»? Outra leitura permite pensar que o apodo provinha de portugueses das vizinhanças da Galiza. Mas, então, que faz uma palavra «portuguesa» no mais conceituado dos dicionários de espanhol? Temos um dado em Joan Corominas, que diz, no seu célebre Diccionario Etimológico, chamarem os portugueses ratinhos a galegos e asturianos, pelos seus hábitos de poupança. Mas algo aqui bate errado, já que os portugueses chamavam ratinhos, sim, mas a compatriotas seus que ajudavam nas ceifas do Alentejo.
Nitidamente, o Dicionário da RAE anda às aranhas com o vocábulo. Para cúmulo, chama «portuguesa» uma palavra 100% galega, decerto já existente quando de Portugal nem notícia havia. É um acto sumamente anacrónico, sintoma dum consabido parti-pris lusista e anti-galego.
O anti-galeguismo da linguística espanhola, e o correspondente privilegiamento do português, não são de hoje. Em 1967, Gregorio Salvador assinava o artigo «Lusismos» na Enciclopedia Lingüística Hispánica, bom trabalho de investigação, mas que desistia a priori duma destrinça entre materiais provenientes da Galiza ou de Portugal.
O velho hábito madrileno de subalternizar os galegos aos portugueses vem descrito por Henrique Monteagudo na sua Historia social da lingua galega. Aí se destaca o baixo apreço em que os noroestinos eram tidos na sociedade centro-peninsular dos séculos XVI e XVII, e a incomparável estima reservada à gente lusa. Os galegos, imigrados em massa, ocupavam-se das tarefas humildes: os homens como lacaios, as mulheres nas limpezas. Os portugueses, em bem menor número, integravam-se nas altas esferas, onde eram por vezes os «meninos» da Corte. Gozavam de uma óptima imagem: orgulho próprio, coragem, gentileza, engenho. Não admira que, entre os galegos, alguns tentassem passar por portugueses. Monteagudo cita um diálogo de Tirso de Molina, em que um galego afirma: «Jamás yo mi patria niego». Ao que um madrileno reage: «Pues es no poca maravilla: / que el gallego acá en Castilla / dice que es de Portugal». Galegos travestidos de portugueses: a tanto pode conduzir o auto-ódio. Mas é este encobrimento do galego e da Galiza, pode supor-se, o que Madrid mais incentiva.
Empreendi uma revisão e actualização dos dados num artigo na revista Phrasis. Reconheci a dificuldade em desenredar «galeguismos» e «lusismos», já que se trata, sempre, de fenómenos ocorridos há séculos. Tentei, sim, identificar os produtos galegos, e suponho que com boa margem de sucesso.
Mas, sobretudo, mostrei que, nas trocas vocabulares entre o espanhol e o galego-português, nada existe que se aproxime duma reciprocidade. O idioma ocidental (e aqui atenho-me ao português) tomou do espanhol milhares de vocábulos, de nível predominantemente culto, e quase todos hoje correntes. Sirvam de exemplo: altivo, altivez, brio, brioso, chiste, chistoso, deslumbre, deslumbramento, hediondo, hediondez, lhano, lhaneza, manha, manhoso, orgulho, orgulhoso, tíbio, tibieza, ufano, ufania. Como estes há muitas centenas de substantivos e adjectivos, fartas dezenas de verbos, numerosos advérbios.
Nada disto se passa no sentido inverso. De proveniência galega ou portuguesa, o espanhol actual e corrente conserva tão-só nomes de objectos como bandeja, chaira, garrafa (para refrigeração de bebidas), lacre, vasija, termos culinários como almeja, broa, caramelo, filló, mejillón, mermelada, ostra, payo, meteorológicos como calmaría, chubasco, marejada, monzón, pleamar, culturais como cantiga, pendencia, sarao. Há ainda substantivos variados como barullo, despejo, farra, e adjectivos como chato (achatado), mimoso, placentero. Possivelmente, são os verbos afeitar, despejar e enfadar os únicos contributos autenticamente revelantes do galego-português para o léxico espanhol corrente.
Não sabemos quantos galeguismos foram introduzidos no castelhano medieval. Podem ter sido alguns, podem ter sido numerosos. Esperemos que um dia sejam identificados. Tudo o que pode afirmar-se é que dezenas de vocábulos 'nossos' com primeira atestação nas Cantigas de Santa Maria (obra em galego de Afonso X, produzida em Toledo) só passados dois ou três séculos surgem em textos originais portugueses, depois de os vermos sistematicamente em traduções portuguesas do castelhano. Deixo a solução do paradoxo a investigadores medievalistas.
Em suma: tem de constatar-se que o espanhol funcionou em Portugal e na Galiza como idioma de cultura, vasto fornecedor de conceitos prestigiosos, enquanto o galego-português foi visto em Castela sobretudo como língua exótica, que dá nome a objectos desconhecidos.
Este texto é uma condensação 'jornalística' do artigo «Lusismos e galeguismos em espanhol. Uma revisão dos dados», Phrasis, vol. 49, 2008, págs. 109-122.