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emgalego2Galiza - Diário Liberdade - Publicamos por primeira vez na rede  o texto de uma conferência do professor Xoán Carlos Lagares, doutor em Letras pela Universidade da Corunha (Galiza) e, na atualidade, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) no Estado do Rio de Janeiro (Brasil).


O texto, escrito na norma brasileira, foi lido "à galega" na palestra organizada pelo Instituto de Letras da UFF no dia 16 de maio de 2005.

Tirado do prelo em 2007, no número 5 da revista Estudos Galegos editada em parceria pela UFF e o governo galego, o texto reflete sobre a situção das falas galegas e a sua identidade, quer como língua autônoma, quer como variedade moderna do galego-português medieval e, portanto, como parte integrante da língua portuguesa.

Esperamos que com a sua presença na rede coadjuvemos ao espalhamento de um debate necessário -a identidade linguística galega- no qual deve participar não só o povo galego, mas também o resto de povos da lusofonia.

Dilemas e paradoxos na história recente do galego [1]

Xoán Carlos Lagares

Agradeço muito sinceramente o convite que me foi feito pelo professor Fernando Ozório para participar deste seminário sobre cultura galega. Como tenho acompanhado nos últimos anos, desde que vivo no Brasil, as atividades projetadas e realizadas na UFF sobre Galiza, e em algumas ocasiões tenho mesmo participado delas oferecendo cursos de extensão sobre história da língua e da literatura, posso afirmar que conheço bem o extraordinário trabalho realizado pelo Núcleo de Estudos Galegos e, nomeadamente, pelo seu diretor. Por esse motivo, participar neste evento me produz uma grande satisfação, e não interpretem estas minhas palavras como mero exercício retórico exigido pelas normas da cortesia acadêmica. Vejam o porquê.

Se alguma coisa carateriza indiscutivelmente a cultura e, em concreto, a língua galega é o seu caráter minoritário. Mas o galego não é minoritário por uma questão simplesmente numérica. É verdade que a população da Galiza é pequena, que não chega aos três milhões de habitantes, e que deles nem todos são falantes de galego, embora o continue sendo ainda a maioria. Mas outras línguas européias têm também um número reduzido de falantes (como o dinamarquês ou o neerlandês), sobretudo se comparadas com o inglês, o espanhol, o alemão ou o francês. Acontece que sendo línguas oficiais de estados independentes, tendo também o estatuto de línguas de trabalho da Comunidade Européia, ninguém se refere a elas dizendo que são minoritárias, diz-se simplesmente que têm poucos falantes, o que não é o mesmo. O que provoca a condição minoritária das línguas (e das culturas) é, na realidade, como afirma o sociolingüista valenciano Lluís V. Aracil (1983), a sua satelização a respeito de outras línguas e culturas, a sua dependência, a impossibilidade de dialogarem diretamente com a diversidade linguística do mundo sem pagarem as taxas alfandegárias impostas pela língua de que dependem. Essas dificuldades traduzem-se, por exemplo, na impossibilidade que os seus falantes têm de ler os autores clássicos da literatura universal na própria língua, ou de assistirem aos filmes feitos em outras latitudes (praticamente todos os que chegam aos cinemas) legendados no próprio idioma, ou de adaptarem os nomes estrangeiros de políticos ou artistas ao próprio sistema fonológico. Ou no fato de as línguas minoritárias adotarem os estrangeirismos e os empréstimos linguísticos, ou mesmo os neologismos, sempre a partir da língua em volta da qual gravitam. Na deriva linguística, enfim, provocada pela dependência, condicionando a maioria das mudanças (sobretudo lexicais, mas também fonéticas e gramaticais) que se produzem na língua minoritária. No nosso caso, a ponte que nos une às outras línguas, e ao mesmo tempo o obstáculo que se interpõe entre elas e nós, é o espanhol (eu disse que ia falar de dilemas e paradoxos, eis o primeiro).

O processo de satelização que origina a condição minoritária da língua tem consequências também na via inversa. A mais evidente consiste em sua virtual inexistência para os falantes das outras línguas. O galego é minoritário porque os seus falantes temos que levantar a mão e reclamar atenção o tempo todo, ao ponto de parecermos às vezes estranhamente egocêntricos, para que se reconheça simplesmente a nossa existência, oculta sob a nossa condição de cidadãos espanhóis e encoberta pela ideia generalizada de que a cada Estado-nação corresponde apenas uma língua. Esse preconceito, aliás, é responsável pela caraterização que muitas pessoas com quem falo do assunto fazem do galego como mistura entre espanhol e português (e até do catalão como mistura entre espanhol e francês), pois partem de uma visão em que o mundo fica enquadrado em estados monocromáticos (assim são representados nos mapas políticos que estudamos na escola) onde a língua oficial representaria uma cor pura, sendo todas as outras realidades linguísticas simples misturas dessas cores básicas essenciais. Obviamente, o galego não é uma cor/língua pura (talvez até seja particularmente "impura"), mas tampouco o são o espanhol e o português.

Quando ainda levava pouco tempo morando no Brasil, por exemplo, causava-me alguma irritação comprovar que a minha cidade, A Corunha, era conhecida só na sua versão espanhola, La Coruña. Por esse nome, que aliás o próprio clube exibe com orgulho provinciano, é conhecido o nosso time de futebol, o "Deportivo"; assim é representado na escrita em todas as ocasiões, mesmo em traduções literárias feitas a partir do espanhol de textos escritos originariamente em galego, onde não seria preciso traduzir nada, apenas adaptar uma grafia simbolicamente importante mas pequena, o "ñ". Na versão brasileira do romance do escritor galego Manuel Rivas, O Lápis do Carpinteiro, o protagonista é preso e quase assassinado no cárcere de "La Coruña", apesar de o texto dizer originariamente que foi "na Coruña" onde esses fatos aconteceram. Isto das "traduções" dá lugar a fenômenos bem curiosos. O relato de Rivas A lingua das bolboretas, originariamente escrito em galego, é traduzido ao espanhol como La lengua de las mariposas, servindo de base ao roteiro do filme intitulado do mesmo modo. Quando o filme é apresentado no Brasil, a (má) tradução do espanhol, que parte do absoluto desconhecimento da origem galega (oculta assim num inextricável passado), é A língua das mariposas. Mas as mariposas por estas terras brasileiras são aqueles bichos noturnos que ficam voando ao redor das luzes e não as borboletas de que fala o conto de Rivas. Como vêem, os intrincados caminhos da tradução de uma língua a si própria são insondáveis... Mesmo Galiza é conhecida no Brasil quase exclusivamente pelo nome espanhol "Galicia", apesar de a forma galego-portuguesa, que ainda é usada, felizmente, em Portugal, existir desde a Idade Média. Mas neste caso a nossa responsabilidade é maior, porque o próprio governo galego utiliza, por enquanto, a forma espanhola.

Enfim, queria dizer apenas, com esta longa digressão inicial, que supõe para mim uma grande satisfação contar com esta oportunidade para dar a conhecer a nossa situação como falantes e contribuir assim, mesmo que num grau ínfimo, a superar as limitações impostas pela condição minoritária, pelo menos no que se refere ao desconhecimento que do galego se tem no Brasil. Escolhi falar de dilemas e paradoxos porque a história do galego não foi fácil, porque para tentar entender o que acontece hoje com a língua na Galiza é preciso projetar o olhar sobre o passado e desvendar o tortuoso caminho que nos trouxe até aqui, cheio de encruzilhadas e também de armadilhas e contradições. Também porque a realidade é complexa e queria levantar nesta ocasião algumas questões para as quais não tenho uma resposta simples, ou simplesmente não tenho resposta.

Como sabem, o galego-português formou-se a partir do latim falado na província romana denominada Gallaecia, que correspondia ao que hoje é Galiza e o norte de Portugal. Daí se estendeu para o sul na luta que os reinos cristãos medievais empreenderam contra os povos muçulmanos, que ocupavam quase três quartas partes da Península Ibérica. A independência do reino de Portugal e a integração da Galiza no reino de Castela determinaram destinos históricos muito diferentes para os habitantes que viviam de um e de outro lado da fronteira constituída pelo rio Minho. O galego-português deixou de ser língua escrita na Galiza durante mais de três de séculos, do s. XVI ao XVIII, como consequência da perda de poder político das elites locais, isto é, deixou de ser utilizado na redação de documentação notarial e na literatura "culta". A historiografia galega vem chamando este período, não sem certo dramatismo, de "Séculos Escuros". A referência à escrita é particularmente importante porque é através dela que se constituem as línguas européias. Manteve-se, no entanto, como língua falada pela maioria da população.

O processo sociolingüístico que se desenvolveu na Galiza desde então responde, grosso modo, ao que Louis-Jean Calvet (1993) denominou "glotofagia", situação em que uma língua "devora" lentamente outra. Esse processo, cujas fases o autor francês conseguiu delimitar observando o desenvolvimento histórico de vários países africanos após a colonização, considera a existência de uma fenda geográfica e sócio-econômica no corpo da sociedade. O contexto rural ou urbano e a posição social determinam a língua que as pessoas falam. O galego é lentamente deglutido pelo espanhol na medida em que este ocupa todos os espaços. Segundo Calvet, numa primeira fase a língua dominante, que denominaremos língua-A, é adotada por aqueles que estão mais próximos do poder econômico e político, sendo usada apenas pela nobreza local, a burguesia e as classes médias de funcionários e comerciantes intermediários. A esse estádio de distinção vertical ou social, segue uma segunda fase em que a diferenciação linguística é sobretudo horizontal ou geográfica. As classes superiores tendem progressivamente ao monolinguismo na língua-A, que é também adquirida pelas classes inferiores das cidades (estas, ainda, numa situação de bilinguismo). Nesta fase, só o povo camponês se mantém monolingue na língua-B. Posteriormente, a língua dominante penetra também no âmbito rural, onde se instaura uma situação de bilinguismo, ao mesmo tempo em que as cidades caminham já para o monolinguismo na língua-A. Na última fase, quando não se articulam forças de resistência, a língua-B é totalmente deglutida e desaparece, deixando, talvez, alguns traços fonéticos ou lexicais de "substrato" na língua vencedora.

Na realidade, esse destino consumou-se e ainda hoje põe em xeque o futuro de muitas línguas no mundo. Esse curso dos acontecimentos, que ameaça não apenas línguas, mas também variedades e até sotaques diferentes, é considerado — e não só pelos construtores de impérios — como uma consequência talvez dolorosa mas inevitável do progresso. De fato, é assim como se fazem os países, como se constroem as nações. E são as nações as que fazem as línguas e não ao contrário. Afirma o historiador inglês Eric Hobsbawm (2002) que antes de se generalizar a educação primária, antes da extensão da administração pública a todo o território, é impossível falar da existência de línguas nacionais. A própria noção de língua como realidade mais ou menos homogênea e estável, que a linguística moderna vem empregando desde Saussure, está atrelada à idéia contemporânea de nação. Porque uma língua é fundamentalmente um conceito. Como tal é criada pelos linguistas, a partir de um determinado olhar sobre o fenômeno linguístico, e também por um consenso entre os falantes, que se reconhecem como pertencentes a uma certa comunidade de fala e não a outras. Entre os fatores que contribuem poderosamente para a criação desse consenso não podemos deixar de considerar, é claro, as fronteiras políticas, que delimitam e dão unidade à multiplicidade das falas, que estabelecem o centro gravitacional em volta do qual as falas se organizam, erigindo os modelos que guiam a atuação dos falantes.

Mas é apenas desde a Revolução Francesa que a língua nacional é um elemento fundamental para aceder à categoria de cidadão, pois no Antigo Regime interessava a conservação das diferenças linguísticas como índice de distinção social, sem que existisse por parte da aristocracia nenhuma vontade integradora das camadas populares. O dilema com que se depararam os membros da pequena burguesia galega que no século XIX deram início à reivindicação da língua era o seguinte: ora aderiam à cidadania espanhola nas condições em que esta era imposta (e que supunha a renúncia às próprias falas em nome da unidade da pátria), ora lutavam pela formação de uma nova cidadania na própria língua.

Acontece que a situação da Galiza na altura era especialmente difícil em termos políticos e econômicos. A defesa do galego não pode desligar-se, nesse momento histórico, de outras lutas políticas. Principalmente as que se desenvolvem na defesa do acesso à propriedade da terra ou no reconhecimento de direitos políticos dos camponeses, que constituíam a imensa maioria da população e que viviam submetidos aos "foros" e aos impostos abusivos e sob o controle político dos caciques, com a emigração em muitas ocasiões como única possibilidade de sobrevivência. O discurso do progresso ligado à unidade do Estado, que se fazia em espanhol, era desacreditado por uma realidade profundamente discriminatória que sumia Galiza no atraso econômico. Se, por um lado, os intelectuais que aderem ao programa de construção da nação espanhola vêem o galego como um obstáculo à unidade e um símbolo do atraso, pelo outro, contrariamente, os que, partindo do reconhecimento e da denúncia de uma realidade que chamam "colonial", se comprometem com um projeto político centrado na Galiza, consideram a língua própria um elemento fundamental para a construção da cidadania.

Na obra de historiadores, escritores e políticos galeguistas do final do século XIX e início do XX a reivindicação da língua faz parte de um programa mais amplo de resgate dos direitos cidadãos para a imensa maioria da população. Ao mesmo tempo, como acontece em todos os processos de construção nacional, essa minoria ilustrada que pertence à pequena burguesia liberal propõe a si mesma para liderar o movimento e a nação resultante. Como parte do processo, o discurso nacionalista constrói mitos históricos em volta de uma idéia de povo que concentraria as essências da identidade coletiva, aquele que teria mantido vivo o fogo da língua nacional, depositário mesmo na adversidade dos valores e virtudes que se reivindicam como próprios.

Afonso Daniel R. Castelao, o secretário geral do Partido Galeguista, que durante a Segunda República Espanhola (1931-1936) levou o movimento nacionalista ao maior nível organização e de intervenção política, oferece vários argumentos em prol da língua no seu livro, Sempre em Galiza, iniciado no final da Guerra Civil e terminado no exílio americano, onde morreu no ano 1950. Segundo ele, o galego teria sido o instrumento da lírica medieval em toda a Península Ibérica, seria uma língua extensa e útil, falada com pequenas variações em Portugal, no Brasil e nas colônias portuguesas, seria língua literária desde o chamado "Rexurdimento" do século XIX, seria a língua preferida pelos intelectuais galegos como veículo da nossa cultura, mas, afirmava Castelao, por cima de tudo e mesmo que não tivesse contraído todos esses méritos, "abondaríalle ser a fala do povo traballador para estar dignificado de por si, pois o galego é unha executória viva do traballo e unha cédula honrosa de cibdadanía e democracia" (1997, p. 32).

Dá-se então um novo paradoxo, apontado também por Hobsbawm, pois a língua nacional nunca é a língua primeira de ninguém, mas algo construído a partir da enorme diversidade e da livre multiplicidade das falas. A atividade da escrita exige a elaboração de um modelo de língua que vai identificar primeiro os falantes "cultos", essa minoria intelectual que lidera o processo de construção nacional. A defesa dos galego-falantes realiza-se assim, paradoxalmente, erigindo novas fronteiras sociais dentro da própria língua.

Mas, como faltam as condições objetivas que o poderiam fazer possível, esse processo de construção da língua galega resulta complexo e dificultoso. Hoje o dilema normativo é um tema espinhoso na Galiza, e causa tantos problemas e desafetos entre os defensores da língua galega, porque se situa realmente no centro do conflito. A constante disputa entre os que consideram o galego uma forma de português e os que pretendem construir uma língua autônoma com grafia castelhana tem a ver com a nossa situação fronteiriça e com a nossa realidade estritamente "regional". A opção normativa (ortográfica e morfológica) que se transformou em oficial na Galiza autonômica, parte da consideração do português como uma ameaça à identidade do galego que se pretende construir. E isso constitui mais um paradoxo, pois isolando o galego dos outros ramos do tronco comum galego-português acentua-se, do meu ponto de vista, a sua condição de satélite do espanhol. Cortando a sua potencial projeção internacional, sem interferências, no mundo da lusofonia, o galego fica confinado no seu território. Perde-se assim uma oportunidade para tirar complexos minoritários dos falantes e convencê-los, pela via dos fatos, de que o galego pode realmente dialogar com outras realidades.

Afinal, se a noção moderna de língua, aparentemente estável e homogênea, nasceu com o Estado-nação contemporâneo, será então verdade que as línguas precisam de fronteiras políticas bem definidas, poderes executivo, legislativo e judicial, um sistema educativo uniforme, uma mídia comprometida e um exército bem armado. E o galego que nunca contou com tudo isso, tem hoje um remedo particularmente precário de "estatus" oficial, numa realidade muito distante daquela que caracterizaria um Estado independente. Hoje, após a morte de Franco (que, como sabem, perseguia com especial empenho o ideal da Espanha monolíngue), o retorno da democracia e a instauração do regime autonômico (pseudo-federal), Galiza tem um governo e um parlamento próprios, até um Tribunal Superior de Justiça, uma televisão e uma emissora de rádio públicas (que emitem em galego) e competência de governo em matéria educativa.

Em geral, as políticas lingüísticas em realidades plurilingues podem desenvolver-se aplicando dois princípios diferentes: 1) o princípio de personalidade, que garante ao indivíduo determinados serviços na sua língua independentemente do lugar em que se encontre; e 2) o princípio de territorialidade, que limita a certas regiões definidas o direito a serviços públicos na própria língua, considerada prioritária (Ninyoles 1991). Pois bem, na Espanha aplica-se uma política linguística mista, entre o princípio de personalidade restringido e o de territorialidade. Na realidade, o espanhol é constitucionalmente a língua oficial do Estado, a língua nacional (aplica-se nesse caso o princípio de territorialidade sem restrições), enquanto para as outras línguas (galego, catalão e basco) considera-se o princípio de personalidade nos seus respectivos territórios, onde são línguas co-oficiais. Essa política manifesta-se, concretamente, no fato de se exigir o dever de conhecimento do espanhol a todos os cidadãos do Estado e se contemplar apenas o direito de uso das outras línguas. Isso, obviamente, reconhece e sanciona legalmente uma realidade desigual.

Pouco tempo após a aprovação do Estatuto de Autonomia, o parlamento galego aprovou uma lei chamada "de normalização lingüística", cujo objetivo seria normalizar o uso da língua em aqueles âmbitos de que se encontrava afastada, fazer a promoção do seu uso na esfera da educação, do trabalho, da religião ou da mídia. Sem entrar em considerações sobre o grau de comprometimento dos governos galegos na aplicação efetiva dessa lei, destinada a promover uma discriminação positiva para a língua galega, pode-se afirmar, pelo menos, que nos últimos vinte anos melhorou sensivelmente a valoração que os galegos fazem do seu próprio idioma. Paradoxalmente, essa consideração positiva do galego não vai acompanhada de um maior uso, ao contrário, a cada pesquisa realizada comprovamos a progressiva perda de falantes, talvez mais intensa agora do que em qualquer outro período histórico. E não adianta falarmos da inevitabilidade do processo de uniformização causado pela pressão globalizadora, pois ninguém deixa de falar galego para falar inglês. A língua que disputa falantes e âmbitos de uso com o galego continua sendo o espanhol. Na realidade, nestes anos não mudou substancialmente o perfil sócio-econômico do galego-falante, não aconteceram mudanças significativas na sociedade galega que pudessem frear a perda de falantes assegurando, ao menos, a transmissão da língua entre gerações.

O trabalho do governo galego tem sido até hoje, neste sentido, paradoxalmente desestimulante. A política linguística resultante da estrutura autonômica vem sendo como um parquinho, daqueles onde se mete as crianças, em que o Estado encerrou o galego para deixá-lo ali brincando tranquilamente de gente (de língua) grande, sem incomodar os adultos, que vigiam de longe para não acontecerem desmandes. Os políticos que aplicam (ou não aplicam) as leis concentram os seus esforços em implementar medidas compensatórias que não têm como horizonte a efetiva recuperação social do galego. Vou dar um exemplo que considero muito significativo. Anos atrás, quando estava na pós-graduação na Universidade da Corunha, fiz um trabalho com um colega de estudos, Filipe Diez (que hoje vive também no Brasil, na Bahia), que consistiu em comparar o uso do galego no jornal "La Voz de Galicia", o de maior difusão, em três dias de 1975 (pouco antes da morte de Franco) com os mesmos três dias de 1995, vinte anos depois (na Galiza Autonômica). A conclusão foi a seguinte: em termos de quantidade de notícias, o uso do galego era consideravelmente menor nos jornais de 1995. A diferença consistia em que nesse ano havia uma notícia em galego em cada seção, sempre nos cantos inferiores da página (sobretudo na esquerda), sem fotos e de tamanho reduzido. Nos jornais de 1975, no entanto, os textos em galego se concentravam nas páginas de informação cultural e nas de política galega, enquanto estava quase totalmente ausente de outras seções como Internacional ou Esportes. Além de ter mudado a situação política na Galiza nesses vinte anos, um fato importante marcava a diferença entre 1975 e 1995: nesse último ano o jornal recebia um generoso subsídio econômico do governo para o uso do galego (e o combinado era isso, que aparecesse em todas as seções) enquanto vinte anos antes a sua presença (numericamente maior e qualitativamente mais significativa) respondia apenas à vontade editorial do jornal e tinha um caráter reivindicativo, fazia parte de uma vontade mais ampla de resistência linguística. A difusa noção de vivermos no "melhor dos mundos possíveis" parece resultar mais letal para o galego do que a repressão política da ditadura militar.

Nesse sentido, e na medida em que não existe uma vontade política transformadora, parece que os investimentos econômicos realizados pelo governo galego na promoção da cultura fazem parte de um faustoso funeral adiantado, tendo os centros de pesquisa, nessa situação, a pouco gratificante missão de realizar a necropsia (adiantada) do cadáver. De continuarem as coisas assim (a Unesco já incluiu o galego entre as línguas em perigo de extinção), o galego será apenas uma língua muito bem estudada, mas que ninguém falará na Galiza ("somente" em Portugal, no Brasil e nas ex-colônias portuguesas na África e na Ásia).

A inflexibilidade com que vive a oficialidade cultural a questão da norma parece condizer com esse estado de coisas. De um lado, a visão estreita do processo de construção nacional que alimenta o fazer de alguns intelectuais galegos, ao pretender construir uma língua particular para a Galiza (na equação, que, aliás, realizam sistematicamente os Estados, "uma língua - uma nação"), vê não apenas no espanhol, mas também no português uma ameaça. De outro lado, o processo de construção nacional inconcluso, que tem o seu limite no regime autonômico da nação espanhola, dá finalmente nisso, uma nação "regional" e uma língua "regional". Duas ficções pouco prestigiadas que pouco têm a fazer frente a outras ficções bem mais poderosas. Neste sentido, Einar Haugen diz o seguinte num artigo intitulado "Dialeto, Língua, Nação":

A aceitação da norma, mesmo por um grupo pequeno mas influente, é parte da vida da língua. Qualquer aprendizado requer o empenho de tempo e esforço, e deve de algum modo contribuir para o bem-estar dos aprendizes, para que não queiram cabular as aulas. Uma língua-padrão que é o instrumento de uma autoridade, como um governo, pode oferecer a seus usuários recompensas materiais na forma de poder e posição. A que é instrumento de uma confraria religiosa, como uma igreja, pode também oferecer a seus usuários recompensas no futuro. As línguas nacionais têm oferecido o acesso ao título de membro de uma nação, uma identidade que dá à pessoa o ingresso num tipo novo de grupo, que não é apenas parentesco, governo ou religião, mas uma mistura inédita e peculiarmente moderna dos três. O tipo de importância atribuída a uma língua neste contexto tem pouco a ver com seu valor enquanto instrumento de pensamento ou persuasão. É primordialmente simbólico, uma questão do prestígio (ou falta do prestígio) que se prende a formas ou variedades específicas de língua em virtude da identificação do status social de seus usuários. O domínio da língua-padrão terá naturalmente um valor mais alto se ele permitir à pessoa ingressar no concílio dos poderosos. Do contrário, o estímulo para aprendê-la, exceto talvez passivamente, pode ser muito baixo" (2001, p. 113-114).

Atualmente, na Galiza o domínio da norma do galego, e o uso consciente da língua, permite a uma pequena minoria desfrutar alguns privilégios no marco do poder autonômico. Para o resto da população continua saindo mais em conta o uso do espanhol. Penso que isso resume bastante bem a situação.

Como podem ver, a minha visão da realidade atual do galego, que tenho compartilhado com vocês, não é muito positiva. O qual não quer dizer que seja desesperançada. Para aqueles que nos interessamos pelo galego porque nos preocupamos pelos direitos dos falantes, para os que pretendemos entender a realidade e influir nela orientando-nos por uma utopia igualitária, o desafio que se nos coloca é o de responder à seguinte pergunta: o que fazer? Como defender o galego (isto é, os seus falantes) sem reproduzir os modelos conhecidos de construção das línguas nacionais, que instauram como princípio definidor precisamente a desigualdade linguística? Não podemos mais pensar que conseguiremos acabar com os modelos de dominação que combatemos na Galiza percorrendo à revelia esses velhos caminhos. Por isso é que se faz necessário e urgente descobrir, inventar outros caminhos que não passem por aí. A minha intuição me diz que o que se impõe realmente como necessidade não é comprarmos o jogo que se nos propõe, mas destruí-lo (e sair do parquinho). No caso do galego, iniciarmos a destruição das fronteiras linguísticas que nos impuseram não me parece um mau começo.

Notas

1. Este texto escrito na norma linguística brasileira foi lido "à galega" na palestra oferecida no Instituto de Letras da UFF, no dia 16 de maio de 2005.

BIBLIOGRAFIA CITADA:

Aracil, Lluís. V. 1983. Sobre la situació minoritària, em Dir la realitat. Barcelona, Ed. Països Catalans, p. 171-206.

Calvet, Louis-Jean. 1993. Lingüística e Colonialismo (Pequeno tratado de glotofaxia). Compostela, Laiovento.

Castelao, A. Daniel R. 1997. Sempre en Galiza. Antoloxía (Edición de Manuel Rei Romeu). Vigo, A Nosa Terra - Asociación Socio-Pedagóxica Galega.

Haugen, Einar. 2001. Dialeto, Língua, Nação, em Marcos Bagno (ed), Norma Lingüística. São Paulo, Edições Loyola, p. 97-114.

Hobsbawm, Eric, J. 2002. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Ninyoles, Rafael L. 1991. Estructura Social e Política Lingüística. Vigo, Ir Indo.


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