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300814 xadrezAmérica Latina - Le Monde Diplomatique - [Maurice Lemoine] Habituada aos golpes de Estado, a América Latina tornou-se, após o inverno das ditaduras, um laboratório de experimentação de políticas à esquerda. Cada vez mais, porém, os Estados Unidos e seus aliados aprendem a derrubar – ou tentar derrubar – sem muito derramamento de sangue os governos que os perturbamA opinião pública não aceita mais golpes militares. 


Miami, 23 de setembro de 2010. Nas dependências do luxuoso Bankers Club e sob os auspícios do Instituto Interamericano para a Liberdade e a Democracia, o anticastrista radical Carlos Alberto Montaner abriu a conferência “O colapso dos modelos do socialismo do século XXI”. Na assembleia, notam-se alguns exilados equatorianos muito conhecidos: Mario Ribadeneira, ex-ministro do governo de Sixto Durán Ballén (1992-1996) – o apogeu do neoliberalismo em Quito –; Roberto Isaías, que fugiu da justiça após provocar a falência fraudulenta de seu banco, o Filanbanco, o maior do país; e o ex-coronel Mario Pazmino, diretor do serviço de informação do Exército, destituído em 2008 pelo chefe de Estado Rafael Correa por suas ligações um tanto estreitas com a CIA.

Orador do dia, o ex-coronel e depois presidente equatoriano Lucio Gutiérrez, cassado do poder por uma revolta popular em 20 de abril de 2005, denunciou as visões milenaristas e místicas dos socialistas, seu marxismo aos pouquinhos, seu populismo perigoso. Ele prediz a chegada de uma nova era de felicidade e progresso. Contanto, é claro, que sejam respeitadas algumas condições… “Para acabar com o socialismo do século XXI, é preciso acabar com Correa!” Fica dito; fica até mesmo gravado – assim como a torrente de aplausos que saúda essa intervenção.

Uma semana depois, na noite de 29 para 30 de setembro de 2010, em Quito, em um dos 21 salões do Swisshotel, uma reunião dos membros da oposição prolonga-se até as 3 horas da madrugada. Às 7 horas, na rede de TV Ecuavisa, o programa Contato diretorecebe Galo Lara. Olhando para a câmera, o dirigente do partido Sociedade Patriótica 21 de Janeiro evoca a Lei do Serviço Público que a Assembleia Nacional acabou de aprovar. Ela atinge diversas categorias de funcionários, entre elas os policiais, e põe fim a uma série de privilégios: bonificações, prêmios, entrega de medalhas e condecorações, presentes de Natal etc. Em contrapartida, concede-lhes outras vantagens, como o pagamento de horas extras e o acesso a programas de habitação social. No que se refere a isso, as posições de Lara estalam como chicotadas: “O presidente Correa arrancou dos filhos dos policiais seus brinquedos. É por isso que ele tem medo de que o linchem! É por isso que ele prepara as malas para deixar o país!”. Ufa... Um artigo apocalíptico do editorialista-estrela Emilio Palacio é publicado no jornal El Universo.

Quando, às 8 horas, Correa fica sabendo que, para protestar contra a famosa lei, os policiais estavam fazendo uma greve de braços cruzados no Regimento Quito, não hesita nem por um segundo, recorda seu ministro do Interior da época, Gustavo Jalkh: “‘Trata-se de um mal-entendido, vou negociar diretamente com eles’”. Abandonando o palácio presidencial de Carondelet, os dois vão até o local. A novidade da presença deles ondula na superfície da multidão dos oitocentos membros das forças da ordem ali reunidos. “Os comunistas chegaram!”; “Fora chavistas!”.

Misturados aos “tiras” de base, os cabeças do movimento – óculos escuros, walkie-talkies, celulares – organizam a confusão. Entre eles, não há como não notar Fidel Araujo, porta-voz do ex-presidente Gutiérrez e líder da Sociedade Patriótica. Empurrões, insultos, granadas de gás lacrimogêneo abatem-se sobre o chefe de Estado. De uma janela do segundo andar, onde um punhado de guarda-costas conseguiu fazê-lo entrar a duras penas, Correa tenta articular um discurso: “Essa lei vai melhorar a condição de vocês. Nós trabalhamos para a polícia, lembrem-se de tudo que foi dado para vocês!”.1

Ele é vaiado. Chega a ouvir: “Peguem-no! Matem-no!”. Um tumulto preenche sua cabeça. Ele desaperta então a gravata e abre o colarinho da camisa num gesto de desafio: “Señores, se querem matar o presidente, ele está aqui: matem-no, se quiserem! Matem-me se tiverem coragem, em vez de se esconderem covardemente na multidão!”. Insolência? Imprudência? Por seu aspecto espetacular, o episódio não passaria despercebido.

Quatrocentos soldados tinham tomado o controle do aeroporto Mariscal Sucre de Quito. Igualmente tomados: a base da aeronáutica de Tacunga; a Assembleia Nacional (pela Guarda Legislativa, que deveria protegê-la); o porto e os aeroportos de Guayaquil, a segunda cidade do país. Lá embaixo, desde as 9 horas, misteriosamente avisados de que as forças da ordem tinham abandonado a via pública, bandos de delinquentes quebravam vitrines, saqueavam lojas, vandalizavam caixas automáticos, aterrorizavam os cidadãos.

Como na Venezuela em 13 de abril de 2002, quando do sequestro de Chávez durante a tentativa de golpe, dezenas de milhares de cidadãos foram às ruas para manifestar o apoio a seu líder. Em contrapartida, parte da oposição dita democrática lhe ofereceu um apoio condicionado; outra parte, como a do chefe do grupo parlamentar Pachakutik – braço político da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) –, Cléver Jiménez, convidou os movimentos indígenas e sociais (que não a seguiram!) a constituir uma “frente nacional” para exigir a saída do presidente.

“Sociedade civil” ou oposição de direita?

Ferido e asfixiado pelo gás lacrimogêneo, Correa acaba tendo de se refugiar no hospital da polícia, conjugado ao Regimento Quito. Sitiado no terceiro andar, ameaçado por motins, ele ficaria sequestrado ali por mais de duas horas, até que, às 20 horas, o Grupo de Operações Especiais (GOE) do Exército e elementos leais do Grupo de Intervenção e Salvamento (GIR) da polícia viessem enfim libertá-lo. Pelo rádio dos policiais instalados na parte externa do estabelecimento, apelos foram captados: “Deixem Correa sair e embarquem-no antes que os chuspangos[militares] cheguem!”; “Matem-no, matem o presidente!”. Este saiu por fim após uma intensa troca de tiros. Um soldado que o protegia caiu mortalmente atingido; outro, que lhe emprestara o colete à prova de balas, teve o pulmão perfurado. No veículo do chefe de Estado, seriam encontradas cinco marcas de balas; dezessete nas viaturas que o escoltaram. Balanço do dia: dez mortos e cerca de trezentos feridos.

Saída dos trilhos de um movimento espontâneo? Havia várias semanas, torrentes de e-mails e panfletos tinham se espalhado no seio da instituição policial. Todos, deturpando os termos, denunciavam a famosa lei. De fato, certas facções habituadas à impunidade tinham aceitado mal a prisão e a condenação de membros de uma unidade especializada, o Grupo de Apoio Operacional (GAO), responsável por torturas e desaparecimentos. Quanto à Comissão da Verdade lançada para jogar luz sobre os crimes da repressão nos anos 1980,2 alguns de bom grado a teriam dispensado. Some-se a isso a política social do presidente Correa, sua proximidade com os governos progressistas da região, a integração do Equador ao seio da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e o fechamento da base militar norte-americana de Manta: sob o elegante verniz da defesa dos interesses deles, os policiais tinham sido manipulados. Esse 30-S (30 de setembro) não era uma simples insubordinação, mas realmente uma tentativa de golpe de Estado.

“Em geral, a conselho de suas equipes de segurança, os presidentes não se expõem e permanecem emparedados em Carondelet, onde... logo se veem presos”, observa Oscar Bonilla, membro da Comissão 30-S, encarregada de estabelecer a verdade sobre a sublevação. O ministro da Cultura, Francisco Velasco, completa seu pensamento:“Com os policiais acantonados nos quartéis e grupos de delinquentes promovendo o caos nas ruas e obrigando os cidadãos a ficar em casa, o cenário era perfeito para que, ao longo de alguns dias de crescimento da rebelião, um grupo de militares, em conluio com deputados de oposição e setores ligados aos interesses internacionais, declarasse um vazio de poder e interviesse, em nome da ‘governabilidade’”. Sabe-se como os generais se comportaram no passado, por ocasião de rebeliões – populares, aquelas, e não violentas – contra os presidentes Abdalá Bucaram (1997), Jamil Mahuad (2000) e Gutiérrez (2005): quando a agitação atingiu seu paroxismo, o Exército abandonou-os e, para acalmar o jogo, deu o aval para sua destituição.

Paradoxalmente, ao manifestar a temeridade que por muitas vezes foi reprovada neles, deslocando-se para o Regimento Quito e desnudando a conspiração, o chefe de Estado perturbou o cenário previsto – criar uma “saída constitucional para a crise” – e salvou a Revolução Cidadã.

Durante os dias que se seguiram, a oposição e a mídia local acabariam por expor apenas uma versão muito particular dos fatos: não tinha havido tentativa de golpe; nem sequestro; nem vontade de assassinar o presidente; o único responsável pela situação era... o próprio Correa. Em El Universo, um editorial de Emilio Palacio chegou a pedir que ele fosse chamado diante de um tribunal internacional por “crime contra a humanidade”, porque “ordenara ao Exército que abrisse fogo contra um hospital”. O artigo desencadearia uma ação na justiça por parte do presidente, uma polêmica sobre a “liberdade de expressão” e o exílio de Palacio.

No estrangeiro, a maioria dos jornalistas retomou esses argumentos, ou, no melhor dos casos, reproduziu-os sem questioná-los: “A oposição [...] julga que a imprudência e a arrogância do presidente estiveram na origem dos excessos”, escreveu, por exemplo, o Le Monde em 12 de janeiro de 2011.

Raramente analisado,3 esse episódio equatoriano valeria a pena ser visto com mais atenção: ele representa um caso de estudo das novas estratégias colocadas em prática para ejetar do poder um chefe de Estado considerado perturbador. Com certeza, vai longe o tempo em que, na América Latina, os militares, com a ajuda de Washington, varriam governos constitucionais e oriundos de eleições democráticas. Todavia, durante a onda de dirigentes carismáticos, de esquerda ou de centro-esquerda, que chegaram ao poder desde 1999, golpes e outras tentativas de desestabilização, ora abortadas, ora levadas a termo, ocorreram na Venezuela (2002, 2003, 2014), no Haiti (2004), na Bolívia (2008), em Honduras (2009), no Equador (2010) e no Paraguai (2012). No entanto, as forças conservadoras aprenderam que, na opinião internacional, os métodos sangrentos revelam-se contraprodutivos e que, na América Latina pelo menos, um golpe clássico não tem mais lugar. Então, as técnicas evoluíram.

Utilizada durante guerras, a ação psicológica desempenha igualmente um grande papel em tempos de paz. No começo dos anos 1970, o diário chileno El Mercurio preparou ativamente o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 contra Salvador Allende.4 Contudo, existiam então, particularmente na Europa, publicações progressistas capazes de expor essa propaganda e de denunciá-la. Com raríssimas exceções, esse não é mais o caso. Coincidindo com um alinhamento geral ao neoliberalismo assim como à ordem imposta pelos Estados Unidos e pela União Europeia, o surgimento da internet (onde o melhor caminha junto com o pior) e a generalização do “copiar-colar” uniformizaram a informação dos chamados meios de comunicação “ocidentais”.

Sempre igual a ele mesmo no Chile, El Mercurio criou seguidores:5 Clarín e La Nación na Argentina; O Globo e Folha no Brasil; El Nacional,Tal Cual e El Universal na Venezuela; La Hora,El Comercio e El Universo no Equador; La Tribuna, El Heraldo e La Prensa em Honduras; El Deber e La Razón na Bolívia; El Tiempo e Semana na Colômbia. Sem esquecer a CNN, o Wall Street Journal, o Washington Post e o Miami Herald nos Estados Unidos; o Financial Times no Reino Unido;El País, El Mundo e ABC na Espanha; Le Monde, Libération e o audiovisual público na França – para citar somente alguns.

Tal panorama autoriza a aplicação, mesmo que nem todos seus atores estejam conscientes de sua participação, de “psy-ops” (operações psicológicas) sutis destinadas a manipular ou a desestabilizar internamente os governos-alvos e a fornecer uma imagem negativa deles no exterior. Nós nos situamos então além da necessária crítica das políticas levadas a efeito. Retomado em cadeia, o termo “populismo” (ver mais na pág. 14)permite, por exemplo, relegar ao segundo plano a redução da pobreza, a redistribuição das riquezas e os avanços sociais por vezes muito importantes dos países-alvos, transformando suas escolhas soberanas em “políticas irresponsáveis incompatíveis com a democracia”.

Na Venezuela, no início dos anos 2000, na perspectiva da tentativa de golpe de Estado contra Chávez, a opinião pública sofreu um bombardeio de manchetes turbulentas do El Nacionale do El Universal– “Talibãs na Assembleia Nacional”, “Outubro negro”, “Terroristas no governo” – e apelos à derrubada do presidente: uma etapa comparável à preparação da artilharia que precede o assalto em uma campanha militar.

Primeiro elemento da propaganda destinada à imprensa e aos diplomatas estrangeiros: a “sociedade civil” manifesta seu descontentamento. Expressão mágica! O anúncio de uma mobilização da “oposição de direita” reveste-se de um sentido que o leitor médio pode perfeitamente decifrar; a apresentação de uma “sociedade civil” por definição simpática, mesma que esta – mas por que especificá-la? – só represente, nas urnas, uma minoria.

No quadro da crise que eclodiu na Venezuela em fevereiro de 2014, o termo “sociedade civil” foi substituído por “estudantes”, mais apresentável que “extrema-direita em ação”. Vale lembrar que, no Chile, sob o governo de Allende, dois movimentos desempenharam papel-chave durante a preparação do golpe: o poder feminino, com suas marchas “das panelas vazias” – justificadas pela falta de vários itens em grande parte boicotados –, e a Federação dos Estudantes da Universidade Católica (Feuc)...

Para reforçar a imagem de uma multidão pacífica enfrentando a ditadura, convém ser capaz de exibir vítimas inocentes. Em 11 de abril de 2002, na Venezuela, enquanto a famosa “sociedade civil” se manifestava, franco-atiradores abatiam vários de seus membros (assim como partidários do presidente). O pretexto havia sido encontrado para que um grupo de militares prendesse Chávez, acusado de ter enviado suas “milícias” para reprimir a oposição. Doze anos depois, os colectivos (coletivos de todos os tipos: sociais, culturais, educativos, esportivos etc.), sistematicamente disfarçados com o adjetivo “paramilitares”, sofreram a mesma campanha de demonização.

Os militares retornam à caserna

Apresentando a vantagem de não poderem ser identificados, os famosos franco-atiradores também foram utilizados, indiretamente dessa vez, para provocar a queda de Fernando Lugo no Paraguai. Enquanto, desde a chegada dele ao poder, seus opositores evocavam regularmente, sob os pretextos mais diversos, a “destituição” do presidente, um conflito camponês forneceu a ocasião de pôr em prática a operação. Esta se desenrolou em 15 de junho de 2012, no local conhecido como Marina Kue, quando uma intervenção policial contra uma ocupação de terras terminou, depois de uma troca de tiros, em dezessete mortos: onze camponeses e seis policiais. A responsabilidade do drama foi atribuída aos sem-terra, que teriam armado uma emboscada para as forças da ordem.

No entanto, o líder camponês Vidal Vega (entre outras testemunhas), que realizou uma investigação paralela, afirma que “infiltrados” teriam desencadeado a violência atirando ao mesmo tempo em seus companheiros e nos policiais. Ao final de um julgamento político rápido, habilmente conduzido pelo Congresso, o episódio permitiu destituir Lugo, acusado de ter, por sua política, atiçado a violência contra os proprietários de terras. Depois disso, Vega foi assassinado por dois sicarios mascarados.6

Em 28 de junho de 2009, foi Honduras, membro da Alba, que serviu de laboratório para esse tipo de “golpe de Estado constitucional” – os mais fáceis de passar, com os golpistas podendo empregar a expressão “demissão forçada” (e levar a imprensa internacional, que não atenta muito ao vocabulário, a evocar o “presidente destituído”). Os parlamentares destituíram Manuel Zelaya sob um pretexto falacioso: sua suposta vontade de se reeleger violando a Constituição, quando na realidade ele tinha desejado organizar uma consulta, sem caráter forçado, sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.7 No entanto, o interesse da técnica empregada reside sobretudo no que se seguiu.

Em 28 de junho, foi um comando militar que deteve Zelaya, o fez subir num avião com destino à Costa Rica e reprimiu violentamente seus partidários que saíram às ruas. No entanto, o executor do trabalho sujo, o general Romeo Vásquez, devolveu imediatamente o poder ao presidente do Congresso, Roberto Micheletti. A manobra era perfeita: “submissos ao poder civil”, os militares permitiam uma “sucessão presidencial”. Logo, o regime golpista de Micheletti se veria rebatizado de “governo de transição”. Em 2002, na Venezuela, uma vez praticado seu crime, os generais e almirantes traidores tinham procedido da mesma forma devolvendo as chaves do palácio presidencial ao patrão dos patrões Pedro Carmona.

Em resumo, enquanto no passado os militares, depois de ter agido em favor desta ou daquela ação, permaneciam no poder, hoje eles voltam para os quartéis. Civil, a ditadura se torna transparente, sem que ninguém possa denunciar um novo Augusto Pinochet. Será suficiente, alguns meses depois, organizar eleições “sob controle”, suspendendo o breve banimento do país pela comunidade latino-americana (ou internacional) e a rodada terá sido completa.8

Nesse início do século XXI, Washington só concebe a democracia como uma ferramenta que permite o bom funcionamento do mercado. Colocando um ponto final no grande romance da globalização feliz, nacionalizando seus recursos naturais e afirmando sua independência, a “nova esquerda” latino-americana escapa à sua tradicional hegemonia. O que fazer? Sob Richard Nixon e Ronald Reagan, armados com sua bíblia, a “doutrina de segurança nacional”, as coisas eram claras: tratava-se, para manter o controle, de travar uma guerra total, generalizada, absoluta. Com George W. Bush, elas ainda eram assim: os Estados Unidos estiveram diretamente implicados na tentativa de golpe de 2002 na Venezuela.

Na Bolívia, país governado pelo indígena Evo Morales – onde “não há mais donos, e sim parceiros”9 –, o embaixador norte-americano, Philip Goldberg, que ali chegou em outubro de 2006, estabeleceu uma relação com a oposição da Media Luna (“Meia-Lua”), os departamentos ricos em hidrocarbonetos e em gás de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando.10 De 2004 a 2006, ele tinha dirigido a missão norte-americana em Pristina, em Kosovo. Como por acaso, com a luta contra o projeto “estatizante, autoritário e indigenista” (“indigenista” aqui no lugar de “populista”) de Morales, a Bolívia, “satélite do chavismo”,11entrou por sua vez num processo de balcanização.

Nebulosa de think tanks

A partir de 4 de maio de 2008, os departamentos da Media Luna organizaram sucessivamente referendos ilegais para aprovar um status de autonomia fortemente parecido com uma declaração de independência. Perturbações violentas eclodiram. Tropas de choque “autonomistas” semearam o terror, tomaram aeroportos, assim como instalações e edifícios do governo. Em setembro, paramilitares assassinaram camponeses no departamento de Pando.

Em nenhum momento interveio a tradicional proclamação golpistasobre a “tomada do poder”. Como na Venezuela em 2014,12 porém, tratava-se de fazer correr sangue, fosse pela “violência espontânea” ou pela repressão governamental dessa “violência espontânea”, e deixar o país mais ingovernável, tendo por objetivo uma condenação geral do poder pela “comunidade internacional” que tornaria aceitável a demissão forçada ou o afastamento do chefe de Estado.

Na Bolívia, jogando com a mobilização mais do que com a repressão militar, Morales, apoiado como era pela União das Nações Sul-Americanas (Unasul), faria fracassar o plano. Seria preciso especificá-lo? Quando, em 10 de setembro de 2008, La Paz deu 72 horas ao embaixador Goldberg para deixar o país, a febre separatista caiu bruscamente.

Quando os acontecimentos de 28 de junho de 2009 abalaram Honduras, Barack Obama substituiu Bush na Casa Branca. No entanto, o avião que procedeu à transferência forçada de Zelaya de Tegucigalpa para San José da Costa Rica (30 minutos de voo) fez escala na base militar norte-americana de Palmerola, situada desde os anos 1980 em território hondurenho. Só que ninguém se deu conta disso!

“Quando perguntei ao presidente Correa se os Estados Unidos estavam por trás do 30-S”, diverte-se, em Quito, Juan Paz y Miño,13 “ele me respondeu: ‘Não há provas, mas... não se pode descartar essa possibilidade’.” Posteriormente, o presidente equatoriano deixaria mais claro seu pensamento, descartando a responsabilidade direta do presidente Obama ao mesmo tempo que questionava a CIA: “Do que nós temos certeza é de que há [nos Estados Unidos] grupos de extrema-direita, um grande número de fundações que financiam os grupos e os muitos conspiradores opostos a nosso governo”.14

Em 1983, por iniciativa de Reagan e sob a égide do Congresso, nasceu a National Endowment for Democracy (NED), destinada a “promover a democracia” no mundo. Ligadas à Agência Internacional para o Desenvolvimento (Usaid), ao Instituto Internacional Republicano (IRI), ao Instituto Internacional Democrata (NDI) e ao Instituto dos Estados Unidos para a Paz (Usip), mas também a uma nebulosa de think tanks e fundações – Freedom House, Open Society Institute etc. –, e mesmo a oficinas de regiões distantes, como a Otpor (“Resistência”), surgida na Sérvia no final do século passado, as oposições e suas ONGs são financiadas e preparadas, tanto ideológica como tecnicamente.

“Mesmos atores, mesmas estruturas”

Apenas no período de 2013-2014, US$ 14 milhões irrigaram por diversos canais a oposição venezuelana, tanto para as campanhas eleitorais como para os “protestos pacíficos” de 2014, que exibem todas as características de uma rebelião antidemocrática. A Plataforma de Unidade Democrática (MUD) recebeu US$ 100 mil para um projeto de trocas com organizações bolivianas, nicaraguenses e argentinas a fim de “compartilhar as lições aprendidas na Venezuela e permitir adaptá-las à experiência desses países”.15

Quando se fala da República Bolivariana da Venezuela, em geral só se lembra da tentativa de golpe de Estado de abril de 2002. Na realidade, antes e depois, a ofensiva nunca cessou. Dezembro de 2001: greve geral (organizada pelo patronato); dezembro de 2002-janeiro de 2003: desestabilização econômica pela paralisia da empresa petroleira nacional, e militares apelam para a sublevação a partir da “zona liberada” do local chamado Altamira (bairros chiques de Caracas); 2004: primeiras guarimbas (bloqueio de ruas e barricadas) e incursão de uma centena de paramilitares colombianos nas proximidades de Caracas; 2014... “Aqui”, confia-nos o ministro venezuelano do Interior, Miguel Rodríguez Torres, “eles aplicam o que a esquerda chamava de ‘combinação de todas as formas de luta’. E, se você fizer a lista dos atores implicados, serão os mesmos desde o início; as mesmas estruturas, com algumas variações. O que muda, a cada vez, é o método.”

Miami, 23 de setembro de 2010. Nas dependências do luxuoso Bankers Club e sob os auspícios do Instituto Interamericano para a Liberdade e a Democracia, o anticastrista radical Carlos Alberto Montaner abriu a conferência “O colapso dos modelos do socialismo do século XXI”. Na assembleia, notam-se alguns exilados equatorianos muito conhecidos: Mario Ribadeneira, ex-ministro do governo de Sixto Durán Ballén (1992-1996) – o apogeu do neoliberalismo em Quito –; Roberto Isaías, que fugiu da justiça após provocar a falência fraudulenta de seu banco, o Filanbanco, o maior do país; e o ex-coronel Mario Pazmino, diretor do serviço de informação do Exército, destituído em 2008 pelo chefe de Estado Rafael Correa por suas ligações um tanto estreitas com a CIA.

Orador do dia, o ex-coronel e depois presidente equatoriano Lucio Gutiérrez, cassado do poder por uma revolta popular em 20 de abril de 2005, denunciou as visões milenaristas e místicas dos socialistas, seu marxismo aos pouquinhos, seu populismo perigoso. Ele prediz a chegada de uma nova era de felicidade e progresso. Contanto, é claro, que sejam respeitadas algumas condições… “Para acabar com o socialismo do século XXI, é preciso acabar com Correa!” Fica dito; fica até mesmo gravado – assim como a torrente de aplausos que saúda essa intervenção.

Uma semana depois, na noite de 29 para 30 de setembro de 2010, em Quito, em um dos 21 salões do Swisshotel, uma reunião dos membros da oposição prolonga-se até as 3 horas da madrugada. Às 7 horas, na rede de TV Ecuavisa, o programa Contato diretorecebe Galo Lara. Olhando para a câmera, o dirigente do partido Sociedade Patriótica 21 de Janeiro evoca a Lei do Serviço Público que a Assembleia Nacional acabou de aprovar. Ela atinge diversas categorias de funcionários, entre elas os policiais, e põe fim a uma série de privilégios: bonificações, prêmios, entrega de medalhas e condecorações, presentes de Natal etc. Em contrapartida, concede-lhes outras vantagens, como o pagamento de horas extras e o acesso a programas de habitação social. No que se refere a isso, as posições de Lara estalam como chicotadas: “O presidente Correa arrancou dos filhos dos policiais seus brinquedos. É por isso que ele tem medo de que o linchem! É por isso que ele prepara as malas para deixar o país!”. Ufa... Um artigo apocalíptico do editorialista-estrela Emilio Palacio é publicado no jornal El Universo.

Quando, às 8 horas, Correa fica sabendo que, para protestar contra a famosa lei, os policiais estavam fazendo uma greve de braços cruzados no Regimento Quito, não hesita nem por um segundo, recorda seu ministro do Interior da época, Gustavo Jalkh: “‘Trata-se de um mal-entendido, vou negociar diretamente com eles’”. Abandonando o palácio presidencial de Carondelet, os dois vão até o local. A novidade da presença deles ondula na superfície da multidão dos oitocentos membros das forças da ordem ali reunidos. “Os comunistas chegaram!”; “Fora chavistas!”.

Misturados aos “tiras” de base, os cabeças do movimento – óculos escuros, walkie-talkies, celulares – organizam a confusão. Entre eles, não há como não notar Fidel Araujo, porta-voz do ex-presidente Gutiérrez e líder da Sociedade Patriótica. Empurrões, insultos, granadas de gás lacrimogêneo abatem-se sobre o chefe de Estado. De uma janela do segundo andar, onde um punhado de guarda-costas conseguiu fazê-lo entrar a duras penas, Correa tenta articular um discurso: “Essa lei vai melhorar a condição de vocês. Nós trabalhamos para a polícia, lembrem-se de tudo que foi dado para vocês!”.1

Ele é vaiado. Chega a ouvir: “Peguem-no! Matem-no!”. Um tumulto preenche sua cabeça. Ele desaperta então a gravata e abre o colarinho da camisa num gesto de desafio: “Señores, se querem matar o presidente, ele está aqui: matem-no, se quiserem! Matem-me se tiverem coragem, em vez de se esconderem covardemente na multidão!”. Insolência? Imprudência? Por seu aspecto espetacular, o episódio não passaria despercebido.

Quatrocentos soldados tinham tomado o controle do aeroporto Mariscal Sucre de Quito. Igualmente tomados: a base da aeronáutica de Tacunga; a Assembleia Nacional (pela Guarda Legislativa, que deveria protegê-la); o porto e os aeroportos de Guayaquil, a segunda cidade do país. Lá embaixo, desde as 9 horas, misteriosamente avisados de que as forças da ordem tinham abandonado a via pública, bandos de delinquentes quebravam vitrines, saqueavam lojas, vandalizavam caixas automáticos, aterrorizavam os cidadãos.

Como na Venezuela em 13 de abril de 2002, quando do sequestro de Chávez durante a tentativa de golpe, dezenas de milhares de cidadãos foram às ruas para manifestar o apoio a seu líder. Em contrapartida, parte da oposição dita democrática lhe ofereceu um apoio condicionado; outra parte, como a do chefe do grupo parlamentar Pachakutik – braço político da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) –, Cléver Jiménez, convidou os movimentos indígenas e sociais (que não a seguiram!) a constituir uma “frente nacional” para exigir a saída do presidente.

Notas:

1 Desde 2007, o salário dos policiais de base passou de US$ 355 para US$ 886; o de um sargento, de US$ 707 para US$ 1.329.

2 Ler Hernando Calvo Ospina, Tais-toi et respire [Cale-se e respire], Bruno Leprince, Paris, 2013.

3 Ler “État d’exception en Equateur” [Estado de exceção no Equador], La Valise Diplomatique, 1o out. 2010. Disponível em: www.monde-diplomatique.fr.

4 Ler Armand Mattelart, “‘La Spirale’, quand l’ancien monde refuse de mourir” [“A Espiral”, quando o mundo antigo se recusa a morrer], Le Monde Diplomatique, set. 2013.

5 Ler Renaud Lambert, “En Amérique latine, des gouvernements affrontent les médias” [Na América Latina, governos enfrentam os meios de comunicação], Le Monde Diplomatique, dez. 2012.

6 Ler “Le Paraguay dévoré par la soja” [O Paraguai devorado pela soja], Le Monde Diplomatique, jan. 2014.

7 Ler “Retour des gorilles au Honduras” [Retorno dos gorilas a Honduras], La Valise Diplomatique, jul. 2009. Disponível em: www.monde-diplomatique.fr.

8 Ler Renaud Lambert, “Honduras: retour à l’OEA, retour à la normale ?” [Honduras: retorno à OEA, retorno à normalidade?], La Valise Diplomatique, jun. 2011. Disponível em: www.monde-diplomatique.fr.

9 Le Courrier, Genebra, 30 jun. 2007.

10 Ler Hernando Calvo Ospina, “Petit précis de déstabilisation en Bolivie” [Pequeno esclarecimento sobre a desestabilização na Bolívia], Le Monde Diplomatique, jun. 2010.

11 “Bolivia es un satélite absoluto del chavismo” [A Bolívia é um satélite absoluto do chavismo], El País, Madri, 9 ago. 2008.

12 Ler Alexander Main, “Au Venezuela, la tentation du coup de force” [Na Venezuela, a tentação do golpe], Le Monde Diplomatique, abr. 2014.

13 Juan J. Paz y Miño Cepeda, autor de Insubordinación o golpe [Insubordinação ou golpe], Abya Yala, Quito, 2011.

14 Telesur, 4 jan. 2011.

15 “Eva Golinger – Sigue la mano sucia de la NED en Venezuela” [Eva Golinger – A mão suja da NED continua na Venezuela], 21 abr. 2014. Disponível em: www.contrainjerencia.com.

Ilustração: Tulipa Ruiz.

Maurice Lemoine é jornalista ee autor de "Cinq Cubains à Miami ( Cinco cubanos em Miami)", Dom Quichotte, Paris , 2010.


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