Nesta última semana, temos ouvido diversos relatos sobre violência policial na Cova da Moura, porque cinco jovens daquele bairro foram detidos quando se deslocaram à esquadra de Alfragide para saber informações sobre um habitante da Cova da Moura, que tinha sido preso nessa tarde. Na altura, a polícia acusou o jovem, inicialmente preso, de ter atacado os agentes com pedras e os cinco jovens de terem tentado "invadir" a esquadra.
Flávio Almada, ou Lbc, é membro da direcção do Moinho da Juventude, um projecto comunitário que existe há 30 anos na Cova da Moura e que recebeu o prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República. Flávio descreve em entrevista à Radio AfroLis a sua versão do sucedido.
A seguir, a transcrição. Abaixo, o áudio integral da entrevista.
Flávio Almada (LBC):
Lbc: Eu sou Flávio Almada, conhecido por Lbc, nome de artista, artivista. Também sou ativista social, sou formado em tradução e escrita criativa. Trabalho no Moinho da Juventude, sou membro da direcção do Moinho da juventude e técnico auxiliar de educação, e também sou técnico de intervenção comunitário no projeto Escolhas.
Rádio AfroLis (RA): Pela primeira vez, creio eu, tu estás muito nos media. E eu gostaria que tu explicasses porquê. O que é que aconteceu para que tu agora ficasses no foco dos media?
Lbc: No dia 5 [Fevereiro], eu fui praticamente torturado, brutalizado pela equipa de intervenção rápida da PSP. Por essa razão. Depois, acusaram-me, acusaram-nos de tentar invadir uma esquadra. Uma ideia que só passa pela cabeça de um maluco porque isso não faz sentado nenhum.
RA: Como é que vocês chegaram à esquadra, ou o que é que aconteceu para que a polícia tentasse brutalizar-vos ou vos tenha brutalizado?
Lbc: Não tentaram, brutalizaram mesmo. No dia, eu acordei de manhã, fiquei em casa, fiquei a ler, era para escrever mas fiquei a ler. Depois encontrei-me com um professor, que é do Brasil, e fiquei até ao meio dia e tal. Depois pensei que tinha uma reunião, confundi quinta-feira com sexta-feira, tenho reunião sempre à sexta-feira, à uma. Então, fui até ao local do meu trabalho. Só que depois, lembrei-me que ainda tinha uma hora e voltei para casa. De repente, estava em casa e alguém disse "aconteceu isto mais aquilo" mas eu nem levei em conta.
RA: O que é que é "isto mais aquilo"?
Lbc: Que alguém tinha sido agredido, só que eu fui para a frente (...)No entanto, dividimos o trabalho, uma pessoa vai acompanhá-la ao hospital, [Jailza] que é a minha colega de trabalho, e eu e o Celso, vamos ver o que aconteceu com a pessoa que foi detida. Porque, normalmente, nós sabemos o que acontece quando uma pessoa é detida aqui no bairro.
RA: O que é que acontece?
Lbc: Normalmente os jovens são brutalizados. Pode perguntar a qualquer pessoa aqui na comunidade que sabem! E também porque, sendo membro da direcção e colaborador do Moinho da Juventude, há um protocolo, que é o protocolo Polícia de Proximidade, entre o Moinho da Juventude e a PSP. Então, é normal haver uma deslocação à esquadra de Alfragide para tentar perceber o que se passa, porque faz parte do acordo. Nessa sequência de acontecimentos nós fomos.
RA: Nós quem? Quantas pessoas foram?
Lbc: Nós éramos cerca de seis. Então, nós fomos. Descemos, sem nada, sem preocupações.
RA: Sem preocupações porque é uma atividade de rotina, que vocês fazem constantemente.
Lbc: Sim, de trabalho. Eu já tinha acompanhado outros jovens, não só à esquadra de Alfragide, mas a outras esquadras, como a central da Damaia, já tinha ido também com um outro jovem que foi notificado a Alfragide. Já fiz esse tipo de trabalho várias vezes. Quando nós íamos a caminho, passámos por um agente que estava ao pé de uma paragem de autocarros, estava lá uma mota estacionada. Passámos por ele, e quando chegámos, nem entrámos na esquadra. Ficámos na varanda porque não nos deixaram entrar. Dissémos "Somos do Moinho da Juventude e queremos falar com o chefe, por causa de uma pessoa que está detida aqui". [Eles] disseram "Vocês não podem entrar!"
RA: E isso é normal?
Lbc: É uma atitude estranha porque, logo a primeira coisa, foram logo agressivos na conversa. E daí eram três que estavam na porta. Dois foram para dentro. Chamaram-nos, disseram "Malta venham cá!". E depois foi porrada. Foi porrada...
RA: Diretamente, sem dizer nada?
Lbc: Porrada e tiro. Porrada e tiro. Aquilo aconteceu tão rápido... Foi porrada e tiro. Durante muito tempo... Aquilo... praticamente foi... foi um inferno. Mas nós estamos aqui, de cabeça levantada. Estamos vivos, apesar de estarmos a ser acusados de uma coisa que ninguém, ninguém, principalmente quem vive neste bairro, pensa em fazer, porque sabe quais são as consequências.
RA: A questão da invasão da esquadra?
Lbc: Isso.. Quem vai invadir uma esquadra com uma agenda no bolso? E com uma pessoa (...) que sofreu um AVC, que tem uma tala na mão. E com outro jovem que estava vestido para jogar futebol. Não é a primeira vez que esse tipo de coisas acontece. Ainda hoje [10.02.15] tive o relato de uma pessoa, que disse que foi lá ver a situação da carta de condução dele e disse que ficou detido. E a irmã foi ver a situação dele e o que é que aconteceu? Ele estava algemado, tentaram sufocar a irmã, bateram na irmã (...) há vários casos de jovens que morreram e nem sequer houve uma condenação. Para nós, nós já conhecemos e isso acontece. Não sei qual é o espanto. Na sociedade portuguesa, nós também estamos dentro da sociedade portuguesa, muita gente não está acostumada a ver essas coisas, para essas pessoas, isso é um espanto. Mas isso são coisas que acontecem semanalmente, diariamente. Isso são coisas que acontecem por aqui.
Lbc: (...) Alguém tem que ser responsabilizado, as autoridades competentes têm que tomar uma atitude porque isso não pode continuar. Porque isso também afeta a nossa sanidade mental. Há pessoas que quando veem a polícia sentem medo. Sentem medo! Supostamente, se eu vejo algum agente, eu devo me sentir seguro, protegido. Mas aqui podem falar com os jovens, eles vão dizer o que sentem.
RA: Podes dizer como foi o tratamento que vocês receberam na esquadra?
Lbc: Aquilo foi desumano e sádico. Sádico, porque no meio de tudo isso havia prazer! Eles sentiam prazer em fazer aquilo. Eu não vou descrever muitas coisas porque isso choca-me. Eu não tenho motivos para ter vergonha. A minha cara está levantada. Eu não vou a lado nenhum. Não tenho nada a temer. A verdade está do nosso lado. Que fique bem claro, nós não fizemos nada, fomos brutalizados! Agora a questão é que, a sociedade tem que perceber que há uma coisa que assusta, que é a convicção, a certeza quando alguém diz que nós africanos temos de morrer! Se pudesse exterminava-nos! E outras coisas... que nós nos íamos juntar à lista do Kuku e do Angélico.
RA: Podes explicar quem são essas pessoas, porque muita gente pode não saber?
Lbc: O Angélico, pelo que eu sei, morreu num acidente de viação. O Kuku foi um jovem que foi morto, a catorze ou vinte centímetros de distância, pela polícia. Um miúdo de catorze anos... Ninguém foi punido. Passou-se normalmente, mas não é o único. Há o caso do Tony de Bela Vista, há o caso do Snake. Há vários casos, é só ir ver os processos nos tribunais. Quem não tiver preguiça vai lá ver... basicamente é isso. (...)
Lbc: (...) Às vezes há notícias que são fabricadas, há coisas que nem acontecem cá que aparecem nos meios de comunicação social que nós: "Como? Como é que isso aconteceu cá e ninguém sabe disso?". Então, é um trabalho de sensibilização, de tentar descriminalizar a comunidade, de também passar a mensagem do que, realmente, o bairro é. (...)
Lbc: (...)Toda a gente vai dizer... a comunicação social vai dizer "Mais um jovem delinquente da Cova da Moura", o que já tem um estigma, e a sociedade portuguesa vai dizer "Se calhar atacou a polícia." Não é isso que acontece. Há um incentivo para que se continue a praticar esse tipo de atitudes. Porque quando há impunidade, é um incentivo. Há um incentivo e isso tem que acabar. Nós somos pessoas.
Para quem acha que nós não somos pessoas: Nós somos pessoas. Nós somos contribuintes. Nós contribuímos tanto economicamente, como culturalmente, como intelectualmente nós contribuímos para a sociedade portuguesa e temos estado sempre a contribuir. Os nossos pais, assim como os outros... nunca gosto de usar a palavra os outros, para mim tudo é "nós"... [os nossos pais] trabalharam neste país, construíram este país, ainda trabalham neste país e automaticamente recebem esse tipo de tratamento...
Aqui a questão do racismo é profunda. Não é uma coisa do racismo moral, de mentalidades ignorantes, não. O racismo aqui é institucional, é estrutural. Toda a gente sabe disso. Quem está atento sabe. Por que é que quando a polícia violenta os jovens, vais falar com os jovens e dizes para apresentarem queixa, o que é que os jovens dizem? "Os tribunais nunca vão condenar ninguém. Não vai resolver nada." Há uma descrença. Por que é que há essa descrença? Porque nunca se fez nada.
E outro problema é que a violência policial é a face mais visível do racismo em Portugal. Vamos ver a questão do desemprego em massa, a questão das prisões, vamos ver as pessoas que estão com problemas mentais. Vamos ver a questão dos bairros que são demolidos e as pessoas são empurradas para sítios, onde a partir das oito e tal não há transportes. Vamos ver o perfil racial quando cinco jovens negros vão para Lisboa à noite o que é que sofrem. Vamos ver a questão das leis de imigração. Portugal tem continuidade colonial. Portugal nunca foi rever a sua história, porque não quer. Há uma memória seletiva neste país, há muita coisa fictícia aqui.
E não é agora que vêm com essa conversa do lusotropicalismo, "não há racismo em Portugal" (...) Esse é o maior problema, há a negação. A negação do racismo. Um dia li uma frase no facebook, que o novo racismo é a negação do racismo. E o racismo não tem só a ver com chamar-me "preto", é uma questão de poder. Eu posso ser um preconceituoso e ter muito preconceito e ter até raiva de uma pessoa branca, mas nunca vou ter o poder de fazer essa pessoa perder o emprego. Nunca vou ter o poder, vou dar um exemplo, de meter uma pessoa numa esquadra, torturar essa pessoa e ainda sair ilibado, nunca! O racismo tem a ver com a questão do poder. Não é a questão do "pretinho", isso não é nada. O racismo mata! É uma violência organizada, é uma violência de Estado. É só ver as comunidades como estão. A periferização da nossa comunidade, o que aconteceu em santa Filomena, mulheres idosas, mulheres com filhos, crianças sem casa, sem nada. Pessoas com nacionalidade a quem foi sugerido o abandono do país... Eles vão para onde? Eles nasceram cá, cresceram cá. Por isso, é que às vezes há jovens que dizem sou afro-português ou luso-africano, ou qualquer coisa parecida, isso é complicado... é muito complicado.
Na passada quinta-feira realizou-se uma concentração em frente à Assembleia da República contra a violência policial. O protesto foi convocado pelos moradores do bairro mas não se restringiu apenas ao que aconteceu na Cova da Moura. "Foi uma concentração de toda a gente que se preocupa com a questão dos direitos humanos" disse Lbc na entrevista.