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Joana Salém Vasconcelos

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Pela raiz

O narrador, a memória e o presente

Joana Salém Vasconcelos - Publicado: Sábado, 24 Janeiro 2015 12:19

Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? (...) Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?

Walter Benjamin, 1933 (1996, p. 114).


 Quando a primeira Comissão Nacional da Verdade da história do Brasil foi instituída pelo governo federal em 16 de maio de 2012, a Comissão para Investigação sobre Desaparecimento de Pessoas da Argentina estava próxima de completar seu aniversário de 29 anos. A Comissão da Verdade e Reconciliação chilena, criada no ocaso da era Pinochet em abril de 1990, embora com a presença incômoda de dois integrantes do regime militar, deu voz a 3.400 familiares de desaparecidos e assassinados pela ditadura durante seus nove meses de funcionamento. Outros países latino-americanos, como Paraguai (1976-78), Peru (1983, 1986) e El Salvador (1991), forjaram comissões da verdade com relativa rapidez, logo que o sistemático terrorismo de Estado se viu debilitado (CUYA, 1996).

À sua maneira, há mais de duas décadas que nossos vizinhos iniciaram o tortuoso caminho da justiça de transição, revisitando as dores e traumas das ditaduras de Segurança Nacional, criando políticas de reparação e, nos melhores casos, responsabilizando devidamente seus agentes pelas atrocidades. No Brasil, uma Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos só foi fundada em 1995, desacompanhada, porém, de políticas articuladas de memória, verdade e justiça. Nosso reencontro com o passado recém começou e, como era de se esperar, repleto de obstáculos e limitações. Apesar dos notáveis avanços, como a profusão de comissões da verdade por todo o país e a coleta de depoimentos de milhares de vítimas da ditadura, as mesmas forças conservadoras que conduziram a transição dos anos 1980 ainda exercem grande pressão no cenário político atual. Bloqueia-se, por exemplo, os julgamentos sobre crimes de Estado, com o respaldo de uma interpretação anacrônica da Lei da Anistia1. Não há dúvidas de que esse “esquecimento político” legitima e fortalece a violência policial do presente, agora focada em outros “inimigos internos”. Em poucas palavras, o esquecimento é uma arma reacionária.

É em ótima hora, portanto, que a Coleção Memória Militante, dirigida por Marisa Midori Deaecto, Lincoln Secco e Plínio Martins Filho, publica a narrativa autobiográfica de Takao Amano, sob o título Assalto ao céu. A coleção reúne memórias da luta social e da resistência à ditadura, buscando alimentar uma nova geração de lutadores com a experiência narrada pela geração anterior. Aqui, o trabalho editorial se explicitou como ato político, orientado para a formação de uma juventude engajada e em busca de consciência histórica.

De imediato, uma característica chama a atenção no relato de Takao: a marca da oralidade, matéria prima do texto, baseado em uma longa entrevista. Walter Benjamin afirmou que “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (1996, p. 198). Neste sentido, a leitura de Assalto ao céu é um convite à conversa, ao intercâmbio vivo da experiência humana repensada e narrada.

O interesse na história individual está longe de ser egoico. Ao contrário. “O ‘eu’ narcísico”, escreveu Takao, “sempre foi uma barreira para mim. Falar de si era uma heresia. Soava como algo individualista” (2014, p. 115). Mais tarde, foi convencido de que sua vida, de alguma maneira, expressava uma parte da história. De fato. O narrador, ao entregar-se às batalhas coletivas, tornou-se a metonímia de uma geração, repercutindo sentimentos, raciocínios políticos e conflitos morais representativos do seu tempo. Assim, enquanto as ideologias burguesas depositam nas mãos do indivíduo o telos da história, Takao Amano buscou realizar o exato oposto.

Nascido em Pirajuí em 1947, neto de samurais imigrantes, Takao passou a infância e adolescência em São Miguel Paulista. Lá, influenciado pela Teologia da Libertação e, desde cedo, empurrado ao mundo do trabalho, forjou seu sentimento de classe e vivenciou suas primeiras experiências de luta política. O Concílio Vaticano II e a fusão do pensamento marxista com práticas cristãs foram o pano de fundo de sua primeira militância, próxima dos dominicanos. Aos 16 anos, ingressou na juventude do PCB. Quem sabe sua habilidade para entender o peculiar amálgama marxista-cristão esteja nas bases do seu antidogmatismo.

Em 1965, Takao abandonou a carreira de desenhista mecânico e entrou no curso de Ciências Sociais da Faculdade do Vale do Paraíba, em São José dos Campos, onde começou a trabalhar como operário da GM. Na época, o PCB já vivia o conflito interno entre uma ala moderada, defensora da resistência pacífica à ditadura, e uma ala radical, pelo caminho da revolução armada. Em pouco tempo, Takao foi demitido da fábrica e se transferiu para a USP. Lá, se aproximou da Dissidência Universitária da juventude do PCB, sinalizando uma inclinação radical. Quando Carlos Marighella participou do encontro da Organização Latino-Americana de Solidariedade em Havana em 1967, sem consultar a direção do PCB e se vinculando abertamente ao guevarismo, foi desencadeado um processo de ruptura que originaria a ALN. Na ocasião, Takao ajudou a fundar o Agrupamento Comunista de São Paulo, impulsionador da nova organização. Seu envolvimento com a guerrilha ultrapassava a mera subjetividade individual: “era uma avalanche. Não dava para conter. E foi um fenômeno social. Toda uma geração se engajou”, lembra (2014, p. 50). Ao mesmo tempo, olhando hoje para trás, avalia: “acho que era o coração, não era a razão que nos governava” (2014, p. 49).

A trajetória de Takao se mistura à história das polêmicas da esquerda brasileira, marcada pela grandeza das questões estratégicas e pela profusão de pequenas organizações de vanguarda. Em todas as controvérsias, o jovem atuou ao lado de Marighella. Embora tivessem forte conexão com a revolução cubana, Takao afirma que, à época, inspiravam-se pela ideia de que a revolução não tinha modelos a serem importados. Seria a revolução dos trabalhadores brasileiros, nascida no seio da luta de classes. Nesse sentido, combateram o Comitê Central do PCB comandado por Prestes, que nomeou um interventor na direção de São Paulo depois do VI Congresso. Na ala moderada, predominava a crítica ao comportamento ofensivo do “esquerdismo”, julgando-o como um dos principais motivadores do golpe de 1964. Curiosamente, essa responsabilização de setores da esquerda pela precipitação de um golpe no Brasil é hoje reproduzida por uma historiografia revisionista, representativa do atual pensamento liberal-conservador, frequentemente disfarçado de “pacifismo democrático”2.

Em 1969, as ações expropriatórias da ALN se intensificaram. O relato ganha ritmo de thriller. Takao conta percepções e detalhes do sequestro do embaixador americano (organizado com a VPR de Lamarca), do assalto ao trem pagador na rota Santos-Jundiaí, da ocupação da torre de transmissão da Rádio Nacional, do assalto à relojoaria Majo, a lojas de perucas e de materiais hospitalares, ao Banco do Brasil, e outras. As condições materiais da resistência e da sonhada revolução socialista brasileira pareciam ser garantidas pouco a pouco, ação por ação. Takao chegou a ser alvejado na perna em Suzano, no mesmo tiroteio em que um policial foi morto. Foi também neste ano que conheceu Guiomar Lopes, companheira da ALN que, anos mais tarde, seria sua companheira da vida.

Oishi, seu primeiro nome de guerra, foi uma homenagem do companheiro Marquito, morto em março de 1969, às origens samurais de Takao. Como enfatizou Wilson Barbosa em seu prefácio, a lealdade e a submissão à causa, traços da cultura samurai, se projetaram realmente na personalidade de Takao. É exatamente por isso que ele não se esquiva de identificar limitações ou erros da sua própria atuação, seus momentos de dúvida e dificuldade.

Foi preso em setembro de 1969, iniciando um périplo por Oban, Dops e Presídio Tiradentes. Caíram os dominicanos. Depois, a ALN foi se desmanchando nas mãos do regime. Takao foi vítima de choques elétricos, terror psicológico, isolamento e toda sorte de violência. Esteve presente na histórica missa celebrada no Dops pelos dominicanos. O sofrimento impulsionava os laços de solidariedade entre os presos, quase confirmando que o potencial humano da luta socialista, mais cedo ou mais tarde, venceria aquela guerra. Enfim, soltaram-lhe a contragosto, na lista dos setenta presos trocados pelo embaixador suíço, sequestrado em janeiro de 1971.

“O exilado é um pária” (2014, p. 87). Assim Takao descreveu seu sentimento de apátrida, nos anos em que esteve banido do país. Entre 1971 e 1979, viveu no Chile, em Cuba, na URSS, na Hungria e na França. Contudo, apesar de ter sua nacionalidade sequestrada, a Guerra Fria criara uma espécie rara de “cidadania internacional”. Foi recebido calorosamente pelo governo Allende. Lá, Takao encontrou liberdade política o suficiente para reestruturar uma célula da ALN junto com Wilson Barbosa. Mas seis meses depois, a ideia de voltar ao Brasil e continuar a guerra o levou a Cuba para treinamento.

A brecha para o retorno, porém, se estreitava cada vez mais, adiando sua saída da ilha. Em 1972, a imprensa brasileira noticiou a falsa morte de Takao na fronteira com a Venezuela. O cerco não parava de fechar. Junto com Carlos Eugênio e outros 15 a 20 membros da ALN em Havana, Takao participou das longas discussões sobre a tática armada. Foi um expoente deste duro balanço, com a grandeza política de quem tinha entregado sua vida à luta e precisava definir coletivamente os próximos passos. Acordou-se, enfim, a necessidade de uma inflexão consciente para o fim da guerrilha. Àquela altura, não haveria vontade revolucionária possível que contornasse a desorganização e precariedade material do movimento. Além disso, o governo cubano, que em 1967 alçara Marighella a líder da guerrilha latino-americana, desde 1972 se alinhara aos soviéticos, desidratando o entusiasmo com a revolução armada. Takao não esconde a melancolia do momento: “descobri que estava tudo acabado. Que não havia mais espaço para a luta” (2014, p. 92). Com a revolução armada cancelada e o emprego na Rádio de Havana, tornou-se um ativista da antidiplomacia, a guerra de informação contra a ditadura brasileira propagada pelos exilados. Nesse período, tomou a decisão de voltar ao PCB.

Em seguida, em 1975, Takao foi selecionado pelo partido para estudar no Instituto de Ciências Sociais da URSS. Nesse período, agudizou-se a sensação de ambiguidade do acolhimento político: “um exilado está sempre sob o olhar dos agentes de segurança [...]. Ora nos protegiam, ora nos espionavam” (2014, p. 94), conta. Apesar disso, nunca suspendeu sua atividade militante, além de ter sido um estudante aplicado.

Takao atribui ao exílio um traço essencial de seu pensamento político: o antidogmatismo. O convívio com culturas e tradições variadas, o fez perceber que o projeto socialista não poderia agir como uma moto-niveladora que aplana o mundo com sua visão “correta”, como quiseram correntes autoritárias do marxismo do século XX. O socialismo seria uma demanda nascida da diversidade das situações concretas, das particularidades históricas dos povos, da potência do sentimento humano de solidariedade e justiça social. Em sua narrativa, Takao transmite para os jovens uma inestimável lição: que o socialismo pré-fabricado das teorias não existe e nem poderia existir. Que “o mundo socialista [...] não se resume ao partido único e tampouco ao modelo simplista de economia estatal. Havia vários tipos de relações de produção sobrevivendo ao mesmo tempo. Eram experiências diferenciadas, construídas a partir da história de cada país” (2014, p. 103). Que a realidade histórica, enfim, é sempre mais múltipla do que tentamos metodicamente deduzir - e surpreende a pulsão, comum entre marxistas, por prognósticos cerrados e esquemas simplificadores.

Os leitores, enfim, se sentirão gratos com a disposição encontrada por este modesto samurai paulista para narrar-se a si mesmo. “O grande narrador tem sempre suas raízes no povo”, escreveu certa vez Walter Benjamin (1996, p. 214). E completou: “Pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia.) [...] Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira” (1996, p. 221).

Obrigada, Takao!

BIBLIOGRAFIA

AMANO, Takao, Assalto ao céu. Coleção Memória Militante. Com-Arte/Edusp: São Paulo, 2014.

ABRÃO, Paulo, O alcance da Lei da Anistia: o último passo. Palestra no Seminário Internacional de Direito Penal, IRI/USP, 13/04/2010. Disponível em:

http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team={2AD759EF-DCFB-46EB-A16C-73502B9C09EF} (último acesso 14/ago, 2014)

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras escolhidas, v. 1, Brasiliense: São Paulo, 1996.

______. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas, v. 1, Brasiliense: São Paulo, 1996.

BRASIL. Governo Federal. Lei da Anistia, nº 6683/79. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm (último acesso 31/ago, 2014)

CUYA, Esteban Las Comisiones de la Verdad en América Latina, KO'AGA ROÑE'ETA se.iii (1996). Disponível em: http://www.derechos.org/koaga/iii/1/cuya.html (último acesso 31/ago, 2014)

TOLEDO, C. N., “1964: golpismo e democracia. As falácias do revisionismo”. In: Crítica Marxista, n.19, Campinas, 2004.

1 A interpretação vigente da Lei da Anistia ainda é a mesma da ditadura: considera que o termo “crime conexo” abrange inclusive aqueles perpetrados pelos agentes de Estado contra os críticos do regime. Seria uma anistia recíproca de reconciliação nacional. Com o triunfo desta interpretação prolongado até hoje, a despeito de ser questionada por vários juristas, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2010 por realizar autoanistia e perdoar a tortura (crime imprescritível de lesa-humanidade), violando normas das quais o país é signatário. Ver ABRÃO, 2010.

2Sobre o debate entre historiadores críticos e revisionistas ver: TOLEDO, C. N., “1964: golpismo e democracia. As falácias do revisionismo”. In: Crítica Marxista, n.19, Campinas, 2004.


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