1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)
John Pilger

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Em coluna

“Tudo que voe, contra tudo que se mova”

John Pilger - Publicado: Sexta, 10 Outubro 2014 00:57

Ao transmitir as ordens do presidente Richard Nixon, para um bombardeamento "massivo" contra o Cambodia em 1969, Henry Kissinger disse: "Tudo que voe, contra tudo que se mova".


Agora, quando Barack Obama acende o pavio de sua sétima guerra contra o mundo muçulmano desde que levou para casa o Prêmio Nobel da Paz, a histeria orquestrada e as mentiras quase nos fazem sentir saudades da assassina franqueza de Kissinger. 

Como testemunha das consequências humanas da selvageria aérea – inclusive a decapitação e o esquartejamento das vítimas, pedaços de corpos pendurados pelas árvores e jogados pelos campos –, não me surpreende o descaso com a memória e as lições da história, mais uma vez. Exemplo eloquente foi a ascensão ao poder de Pol Pot e seu Khmer Rouge, que têm muito em comum com o Estado Islâmico no Iraque e na Síria (Levante) [ing. ISIL]. Eles também eram medievalistas brutais, e também iniciaram uma pequena seita. Eles também foram produto de um apocalipse made-in-USA, naquele caso, na Ásia.

Segundo o próprio Pol Pot, seu movimento consistira de “menos de 5.000 guerrilheiros mal armados, incertos quanto a suas estratégia, táticas, lealdades e líderes”. Quando os bombardeiros B52 de Nixon e Kissinger começaram a trabalhar, como parte da “Operação Cardápio” [orig. Operation Menu], o maior demônio do ocidente mal pôde acreditar em tanta sorte.

Os EUA lançaram em bombas o equivalente a cinco Hiroshimas sobre o Cambodia rural, durante 1969-73. Destruíam, arrasavam vila após vila, e voltavam para bombardear novamente as ruínas e os cadáveres. As crateras deixavam à vista monstruosos colares de carne humana, que se viam do céu. O terror foi inimaginável. Um ex-oficial do Khmer Rouge contou que os sobreviventes “como que congelavam e punham-se a caminhar ao leu, mudos, por três ou quatro dias. Terrificadas e semiloucas, as pessoas estavam prontas para acreditar em qualquer coisa que ouvissem (...). Foi o que tornou tão fácil, para o Khmer Rouge, convencer o povo.”

Uma Comissão de Investigação do Governo da Finlândia estiou que 600 mil cambodianos morreram na guerra civil que se seguiu àqueles ataques e descreveu o bombardeio norte-americano como “o primeiro estágio numa década de genocídio”. O que Nixon e Kissinger começaram, Pol Pot, herdeiro beneficiário dos dois, completou. Ao ritmo dos bombardeios, o Khmer Rouge cresceu e tornou-se poderoso exército de 200 mil soldados.

O ISIL tem passado e presente semelhantes a isso. Muitos especialistas entendem que a invasão do Iraque ordenada por Bush e Blair em 2003 levou à morte de cerca de 700 mil pessoas – num país que jamais antes tivera história de jihadismo. Os curdos haviam feito acordos territoriais e políticos; sunitas e xiitas tinham diferenças de classe e sectárias, mas estavam em paz – eram comuns os casamentos mistos. Três anos antes da invasão, atravessei o Iraque dirigindo meu carro, sem medo. Pelo caminho, encontrei gente orgulhosa do próprio país, herdeiros de uma civilização que, para eles, era bem presente ali.

Bush e Blair destruíram tudo, reduziram a cacos tudo aquilo. O Iraque é hoje ninho de jihadismo. Al-Qaeda – como os ‘jihadistas’ de Pol Pot – colheu a oportunidade gerada pelo massacre que foi a Operação Choque e Pavor e pela guerra civil que a seguiu. A Síria “rebelde” oferecia recompensas ainda maiores, nas linhas-de-rato da CIA e dos Estados do Golfo, pelas quais corriam armas, logística e dinheiro através da Turquia. A chegada de recrutas estrangeiros seria inevitável. Um ex-embaixador britânico, Oliver Miles, escreveu recentemente: “O governo [Cameron] parece estar seguindo o exemplo de Tony Blair, que ignorou os repetidos avisos que recebeu do Foreign Office, do MI5 e do MI6, que já sabiam que nossa política para o Oriente Médio – especialmente as guerras que fizemos no Oriente Médio – havia sido o principal agente de mobilização no recrutamento de muçulmanos, para o terrorismo, na Grã-Bretanha.”

O ISIL é filho dileto dos que, em Washington e Londres, ao destruírem o Iraque, como estado e como sociedade, conspiraram para cometer um crime épico contra a humanidade. Como Pol Pot e o Khmer Rouge, o ISIL é mais uma mutação de um estado ocidental de terror, mantido por uma elite imperial venal que não para ante nenhuma consequência de seus atos, desde só atinjam culturas e povos que vivam bem, bem longe dela. Essa culpabilidade é tabu: não pode ser mencionada nas ‘nossas’ sociedades.

Já são 23 anos desde que esse holocausto atingiu o Iraque, imediatamente depois da 1ª Guerra do Golfo, quando EUA e Grã-Bretanha sequestraram o Conselho de Segurança da ONU e impuseram “sanções” punitivas contra a população iraquiana – o que, ironicamente, reforçou a posição de Saddam Hussein. Foi como um sítio medieval. Praticamente tudo que mantém um estado moderno foi, conforme o jargão, “bloqueado” – desde cloro para produção de água potável, até lápis escolares, peças para aparelhos de máquinas de raio-X, analgésicos comuns e drogas usadas por pacientes de câncer vítimas da poeira gerada nos campos bombardeados, contaminados por urânio baixo-ativo.

Pouco antes do Natal de 1999, o Departamento de Comércio e Indústria em Londres restringiu a exportação de vacinas destinadas a imunizar crianças iraquianas contra difteria e febre amarela. Kim Howells, médico e subsecretário de Estado no governo Blair, explicou por quê: “As vacinas podem ser usadas para produção de armas de destruição em massa”. O governo britânico safou-se desse escândalo universal, porque a imprensa-empresa que distribuía ‘notícias’ do Iraque – praticamente toda ela manipulada pelo Foreign Office britânico – culpou Saddam Hussein por tudo.

Sob um falso “Programa Petróleo por Comida”, dito ‘humanitário’, pagavam $100 por iraquiano, por ano. Esse valor devia pagar por toda a infraestrutura e serviços essenciais de que a sociedade precisasse, como energia e água. “Imagine” – disse-me o subsecretário-geral da ONU, Hans Von Sponeck – “essa ninharia, para pagar por toda a água limpa, que não havia, e o fato de que a maioria dos doentes não podia pagar por qualquer tratamento, e o trauma terrível de passar por esse tipo de necessidade dia após dia, e você poderá fazer ideia daquele pesadelo. E, não tenha dúvidas: foi tudo deliberadamente planejado. No passado, sempre me recusei a usar a palavra genocídio, mas agora é inevitável.”

Desgostoso, Von Sponeck demitiu-se do cargo de Coordenador Humanitário da ONU para o Iraque. Antes dele, Denis Halliday, também alto funcionário da ONU, também se demitira. “Fui instruído” – disse Halliday –, “a implementar uma política que corresponde à definição de genocídio: política deliberada que efetivamente matou mais de um milhão de indivíduo, crianças e adultos.”

Estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, descobriu que entre 1991 e 1998, no auge do bloqueio, houve 500 mil mortes “a mais”, no Iraque, na faixa etária até cinco anos. Uma repórter da TV norte-americana falou disso a Madeleine Albright, embaixadora dos EUA à ONU, e perguntou-lhe “O preço não foi alto demais?” Resposta de Albright: “Entendemos que valeu a pena.”

Em 2007, o mais alto funcionário britânico responsável pelas sanções, Carne Ross, conhecido como “Mr. Iraque”, disse a uma comitê parlamentar, que “[Os governos de EUA e Reino Unido] estão de fato negando a toda a população iraquiana os meios para sobreviver.” Quando entrevistei Carne Ross três anos depois, era um homem consumido pela arrependimento e pela vergonha: “Sinto vergonha” – disse ele. Ross é hoje um dos raros que dizem a verdade sobre como os governos mentiram aos cidadãos e sobre o papel decisivo que cabe à imprensa-empresa na implantação e disseminação das mentiras. “Ou passávamos aos jornalistas os factoides que recebíamos da inteligência, já ‘limpos’, ou simplesmente escondíamos todos os fatos.”

Dia 25/9/2014, uma manchete do Guardian dizia: “Ante o terror do ISIL, temos de agir.” Esse “temos de agir” é fantasma que despertou, como um sinal de alerta: tratem de esquecer todos os fatos, lembranças, lições aprendidas, arrependimentos ou vergonha. O autor do artigo é Peter Hain, ex-ministro do Foreign Office responsável pelo Iraque durante o governo Blair. Em 1998, quando Denis Halliday revelou a extensão da tragédia e do sofrimento humano no Iraque, pelos quais o governo Blair era um dos dois principais responsáveis, Hain acusou-o, no programa Newsnight da BBC, de ser “defensor de Saddam”. Em 2003, Hain apoiou a invasão do Iraque no governo Blair, repetindo o que todos já sabiam serem mentiras. Em conferência no Partido Labour, pouco depois, descartou a invasão como “questão marginal”.

Esse é o homem que, hoje, exige “ataques aéreos, drones, equipamentos militares e outros apoios” aos que “enfrentam o genocídio” no Iraque e na Síria. Só depois seria possível “o imperativo de uma solução política”. É o mesmo que Obama tem na cabeça, quando suspende o que ele chama de “restrições” contra bombardeios e ataques por drones norte-americanos. Significa que mísseis e bombas de 300 kg podem destruir casas de camponeses, como fazem sem qualquer restrição no Iêmen, Paquistão, Afeganistão e Somália – e como fizeram no Cambodia, Vietnã e Laos. Dia 23 de setembro, um míssil cruzador Tomahawk atingiu uma vila na província Idlib na Síria, matou uma dúzia de civis, entre os quais mulheres e crianças. Nenhum deles tinha bandeira preta.

No dia em que foi publicado o artigo de Hain, Denis Halliday e Hans Von Sponeck estavam casualmente em Londres e vieram visitar-me. Não estavam chocados com a letal hipocrisia de uma autoridade, mas lamentaram a inexplicável ausência de qualquer diplomacia inteligente, capaz de negociar alguma espécie de trégua. Por todo o planeta, do Norte da Irlanda ao Nepal, pessoas que se viam umas às outras como terroristas e hereges conseguiram sentar-se face a face numa mesa de negociações. Por que não agora, no Iraque e na Síria?

Como o ebola, do Oeste da África, uma bactéria chamada “guerra perpétua” já cruzou o Atlântico. Lord Richards, até recentemente comandante dos militares britânicos, quer agora “coturnos em solo”. Há uma verborragia doentia, quase sociopática, de Cameron, Obama e aquela “coalizão dos dispostos/desejantes” – e chama a atenção o estranhamente super agressivo australiano Tony Abbott – que agora prescrevem mais e mais violência, lançada de bem longe, de 30 mil pés de altitude, sobre locais onde o sangue de aventuras anteriores ainda não secou. Nunca sofreram bombardeios e aparentemente gostam tanto que querem agora bombardear também um seu potencialmente valioso aliado, a Síria. Não é novidade, como mostram arquivos vazados da inteligência de EUA e Reino Unido :

“Para facilitar a ação de forças de libertação [sic] (...) deve-se fazer esforço especial para eliminar alguns indivíduos chaves [e] provocar agitação interna na Síria. A CIA está preparada, e o MI6 tentará montar pequena sabotagem e golpe de incidentes principais [orig. main [sic]] dentro da Síria, trabalhando mediante contatos com indivíduos (...) um grau necessário de medo (...) confrontos [encenados] de fronteira darão um pretexto para a intervenção (...) CIA e SIS devem usar (...) capacidades nos campos psicológico e de ação, para aumentar a tensão.”

Esse parágrafo foi escrito em 1957, mas poderia ter sido escrito ontem. No mundo imperial, as coisas essenciais jamais mudam.

Ano passado, o ex-ministro de Relações Exteriores da França Roland Dumas revelou  que “dois anos antes da Primavera Árabe”, fora informado em Londres de que estava já planejada uma guerra contra a Síria. “Vou lhe dizer uma coisa” – disse ele, em entrevista ao canal LPC da TV francesa: “Eu estava na Inglaterra, dois anos antes da violência na Síria e outros negócios. Encontrei-me com altos funcionários britânicos, que confessaram que estavam preparando alguma coisa na Síria (...) A Grã-Bretanha estava organizando uma invasão de rebeldes na Síria. Até perguntaram, embora eu já não fosse Ministro de Relações Exteriores, se gostaria de participar (...) Essa operação é velha. Foi preparada, preconcebida, planejada.”

Os únicos que realmente se opõem ao ISIL são considerados demônios sem salvação no Ocidente – Síria, Irã, Hezbollah. O obstáculo é a Turquia, “aliado” e membro da OTAN que conspirou com a CIA, o MI6 e os medievalistas do Golfo para reunir apoio para os “rebeldes” sírios, inclusive os que agora se autodenominam ISIL. Apoiar a Turquia e sua antiga aspiração de dominação regional, com a derrubada do governo do presidente Assad, levará a grande guerra convencional e ao horrendo desmembramento do estado etnicamente mais diverso de todo o Oriente Médio.

Uma trégua – por difícil de negociar que seja – é a única via para fora desse pântano imperial; sem uma trégua negociada, as degolas continuarão. A evidência de que qualquer negociação com a Síria deva ser declarada “moralmente questionável (como escreveu o Guardian) sugere que a pressuposição de alguma superioridade moral entre os que apoiaram Blair, criminoso de guerra, continua a ser não apenas absurda, mas perigosa.

Além de uma trégua, devem cessar imediatamente todos os embarques de equipamento de guerra para Israel; e é preciso reconhecer o Estado da Palestina. A questão da Palestina é a mais purulenta questão de toda a região, e causa muitas vezes declarada do crescimento do extremismo islâmico. Osama bin Laden disse isso, precisamente, muito claramente. A Palestina também oferece esperanças. Deem justiça aos palestinos, e começarão a mudar o mundo ao redor deles.

Há mais de 40 anos, o bombardeio do Cambodia por Nixon-Kissinger gerou uma torrente de sofrimentos da qual o país até hoje não se recuperou. Vale o mesmo para os crimes de Blair-Bush no Iraque.

Com timing impecável, o último tomo da autobiografia de autoconsagração de Kissinger acaba de ser lançado, com o título satírico de World Order [Ordem Mundial]. Em resenha de desavergonhada propaganda, Kissinger é descrito como “modelador chave de uma ordem mundial que permaneceu estável por um quarto de século.” Contem essa ao povo do Cambodia, Vietnã, Laos, Chile, Timor Leste e outras vítimas desse “construtor de Estados”. Só quando “nós” identificarmos esses criminosos de guerra que sobrevivem ainda entre nós, o sangue começará a secar.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.