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Flávio Aguiar

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Carta Maior

O que há por trás e pela frente da renúncia do presidente da Alemanha

Flávio Aguiar - Publicado: Segunda, 07 Junho 2010 01:58

Flávio Aguiar

Há uma anedota circulante que diz que Jânio renunciou em 1961 porque faltou alguém que o trancasse no banheiro.


Li até que esse comentário fora atribuído ao General Golbery do Couto Silva. Daqui de Berlim me é difícil confirmar ou desmentir essas afirmações. Mas embora a situação seja diferente, é mais ou menos com tal perplexidade e impotência que a Chanceler Ângela Merkel deve ter se sentido quando recebeu a notícia confirmando a renúncia do presidente Horst Köhler.

Ela foi avisada por ele apenas duas horas antes do anúncio público, segundo a revista Der Spiegel. Era uma segunda-feira, as tropas israelenses tinham tomado de assalto e desastrosamente o navio turco Marvi Marmara que seguia para a Faixa de Gaza, a tensão entre as duas Coréias ("A guerra que não acabou") seguia firme, o euro prosseguia em queda livre, os bancos europeus seguiam tremelicando, o "buraco negro ao contrário" da BP continuava jorrando petróleo no Golfo do México, o governo de coalizão em Berlim atingia seu mais baixo ponto de popularidade (30% de apoio para a Chanceler da União Democrata Cristã – CDU, sigla em alemão), seu partido correligionário, o FDP, afundava mais ainda, e agora mais essa: Köhler, de 67 anos, ex-diretor-presidente do FMI, pega o boné, o paletó, e o sobretudo nesta mais que gelada primavera de Berlim e vai embora. Que fria!

O motivo alegado foi a avalanche de críticas recebidas por uma declaração confusa, ambígua e infeliz que o presidente fez. No contexto de uma conversa/entrevista cujo ponto de partida era a situação no Afeganistão, o presidente declarou que o deslocamento de tropas alemãs poderia ser necessário para manter livres rotas de comércio e garantir a exportação. Depois, o presidente jurou que não estava pensando no Afeganistão, mas sim nas águas da Somália; mas de qualquer modo, a declaração pegou muito mal pela mistura de comércio e tropas, embora, convenhamos, no nosso vasto mundo isso não seja novidade.

O fato é que, alegando estar arranhado em sua presidência, Köhler renunciou. Sua atitude despertou na mídia alemã uma nova tempestade de críticas, dizendo desde que ela fora imprópria e exagerada na situação até que ele nunca tivera estatura de estadista, etc. Para Ângela Merkel e a coalizão que lidera foi um duro golpe, dado o empenho que ela mesma teve para reeleger Köhler no ano passado.

Houve até quem evocasse a imagem do abandono de um navio que naufraga. A comparação é interessante. No ano passado, quando das eleições de setembro, a euforia conservadora subiu às nuvens. Ainda que enfrentando uma perda pequena em termos de porcentagem de votos, a CDU se manteve como partido mais votado, enquanto seu rival e então correligionário de governo, o Partido Social Democrata (SPD na sigla em alemão) afundava gloriosamente numa débâcle raramente vista e era expelido da coalizão.

Em seu lugar entrava o rutilante FDP, uma espécie de DEM alemão, coronelismo à parte, liderado pelo não menos rutilante Guido Westerwelle, que foi nomeado Ministro das Relações Exteriores. Westerwelle era o líder talhado para defender o ideário dos "self made men & women" na política alemã: menos impostos, menos intervenção do Estado, menos despesas com aposentadorias e pensões, mais liberdade para os mercados. Numa coalizão conservadora, seria a dose de equilíbrio perfeita para a imagem de "grande mãe protetora" que a Chanceler tinha construído. Mas as coisas não se passaram bem assim.

Westerwelle se revelou um político algo desastrado e desastroso, se enredando – e o governo – numa série de declarações contraditórias e contraproducentes sobre não poderem aposentados e pensionistas viverem às custas de quem traz trabalho vivo para os mercados. Se antes, assumindo publicamente sua condição de homossexual, assim como o prefeito Wowereiter de Berlim, Westerwelle acumulou muitos pontos pela sua coragem e pelo fato de se opor a preconceitos, depois suas viagens ao exterior com seu companheiro provocaram uma certa perplexidade na cena alemã. Seu companheiro assumiu todas as próprias despesas (isso foi confirmado e reconfirmado) mas assim mesmo a relativa mistura de canais causou espécie. Sobretudo quando da viagem ao Brasil, porque o companheiro do ministro é empresário na área esportiva, gerando suspeitas de que ele poderia se favorecer dessa condição em relação aos empreendimentos para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Além disso, e mais complicada, foi a atitude do ministro dentro da colaizão, onde por vezes parecia estar disputando espaço com a própria chanceler. O FDP poderia ter capitalizado mais os votos dessa parcela do eleitorado que tem ataques de alergia quando ouve falar em impostos e que na Alemanha não é pequena. Ao contrário, sua base de apoio começou a ruir e arrastou para a difícil situação a CDU e sua líder, antes vista com o carisma da competência e da capacidade de decisão.

Nesse novo redemoinho, a coalizão e a chanceler se viram presa em outro: o da crise da Grécia e da obrigação de providenciar fundos para o país em dificuldades e não permitir que o euro, a moeda preferencial da União Européia, fosse para o buraco ou para o espaço. Nessa encruzilhada, a Chanceler titubeou. De um lado, os fãs do mercado se enfureciam diante da possibilidade de "desviar" fundos para pagar o que chamavam de a "orgia" de despesas públicas da Grécia; do outro, as vítimas desse mesmo mercado e de suas orgias financeiras clamavam por medidas imediatas que tirassem o euro, a Alemanha e por tabela a Europa do risco de uma estagnação econômica, senão recessão, acompanhada por inflação.

No meio, a coalizão hesitava e se envolvia no dissenso interno entre a proposta de diminuir impostos ou de mantê-los até a crise passar. No horizonte, uma eleição regional no estado mais populoso do país, a Renânia do Norte – Westfália, que, de fato, a coalizão perdeu, comprometendo, dentro do sistema alemão, a sua maioria na Câmara Alta, o Conselho da República, uma espécie de Senado Federal nos nossos termos. As soluções se arrastaram, as decisões não vieram até os últimos momentos, quando ficou claro que se nada fosse feito a Grécia afundaria de vez, os bancos alemães e franceses periclitariam diante da insolvência daquele país, e o euro, junto com Portugal, Espanha, Irlanda, Itália e talvez até a França iriam para o beleléu.

E a Alemanha teve de admitir a ingerência do FMI, com seu receituário amargo, e até dos Estados Unidos na Zona do Euro. Pior, pelos relatos das reuniões em que de fato as decisões foram tomadas, até soco de Sarkozy na mesa houve, com ameaças de que, se o grande fundo de 750 bilhões de euros para apoio da moeda não fosse formado, a França deixaria a moeda. O prestígio de Berlim é que saiu quase zerado disso tudo.

O Presidente da Alemanha não é uma Rainha da Inglaterra. Tem poucos poderes, mas tem alguns, entre eles o de vetar leis, e funciona duplamente como uma espécie de reserva moral e de termômetro da nação. Deve ter a compostura, mas também o prestígio da magistratura. Para tanto, é imprescindível ter o amparo e o respaldo políticos para fazer valer aquelas condições. Foi isso que fugiu por debaixo dos pés de Köhler, que provavelmente se viu como um ator no proscênio, tendo de manter a compostura e o panache do cargo, enquanto atrás de si o cenário começava a ruir e à sua frente a platéia is deixando a casa. Não vai haver uma crise institucional na Alemanha, como os mais temerosos chegaram a aventar. Mas as forças políticas que lhe davam sustentação para o efetivo exercício do cargo e do dever da representação estavam, elas próprias, se exaurindo. Elas é que estão em crise.

Uma nova constelação se erguerá dessa débâcle, não resta dúvida. Fala-se na candidatura da atual Ministra do Trabalho, ex-ministra da Família, uma política muito popular em todos os setores da cena alemã. Mas essa cena é que não será mais a mesma. O idílio conservador está ameaçado, e pode não ter "liga" suficiente para enfrentar as tempestades que continuam se armando no horizonte do conturbado euro.


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