1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)
Samir Amin

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Em coluna

A Revolução tecnológica no coração das contradições do capitalismo senil

Samir Amin - Publicado: Sexta, 29 Julho 2011 10:39

Samir Amin

A revolução tecnológica contemporânea é um facto importante que não ponho em dúvida e considero, inclusive, o ponto de partida necessário para a análise do que é novo na evolução do capitalismo.


A diferença está, por um lado, na análise que se faz da natureza desta revolução, em comparação com as precedentes, e, por outro, nas consequências políticas que daí se podem extrair. Como tal, analiso as revoluções tecnológicas nos termos da lei do valor. Nesta análise, a produção é, em definitivo, o produto do trabalho social e o progresso da sua produtividade manifesta-se pela redução da quantidade de trabalho social total necessário para a produção de uma unidade de valor de uso.

As revoluções tecnológicas anteriores na história do capitalismo (a primeira, a da máquina a vapor e das máquinas têxteis dos finais do século XVIII, princípios do XIX; a segunda, a do ferro, do carvão e dos caminhos de ferro, em meados do século XIX; a terceira, a da electricidade, do petróleo, do automóvel e do avião em princípios do século XX) traduziram-se todas elas numa redução da quantidade de trabalho social total necessário para a produção dos valores de uso considerados. Mas também no aumento da proporção que representa a quantidade de trabalho indirecto (atribuído à produção dos meios de produção) relativamente ao trabalho directo (atribuído à produção final). A revolução tecnológica em curso inverte esta tendência. Permite o progresso da produtividade do trabalho social por meio da adopção de tecnologias que se traduzem na redução da proporção do trabalho indirecto.

Resumo estas observações no seguinte esquema quantitativo simplificado:

Quantidade de trabalho necessário (para a produção de uma unidade de valor de uso dada)

290711_tabela


A produtividade do trabalho social duplica quando se passa de A a B à custa de uma intensificação capitalista das tecnologias adoptadas, enquanto que um progresso da produtividade, idêntico quando se passa de B a C (o dobro desta) vem acompanhado de uma inversão do movimento da intensidade capitalista dos métodos de produção.

As relações de produção capitalistas implicam que a entrada na produção esteja reservada aos que possuem capital suficiente para instalar os equipamentos necessários. Assim, o aumento da intensidade capitalista através da qual se manifestaram as sucessivas revoluções industriais nos séculos XIX e XX proporcionou ao capital um domínio crescente sobre os trabalhadores desprovidos de outros meios que não fossem a venda da sua força de trabalho para sobreviverem (incapazes, pois, de produzir por si mesmos – isto é, sem capital – bens competitivos).

A inversão do movimento pelo qual se manifesta o progresso científico e tecnológico tende a abolir o poder do capital, abrindo o acesso à produção?

Existem pelo menos duas razões para que não o seja em absoluto.

A primeira é que as revoluções tecnológicas sucessivas, incluída a que está em curso, implicaram a crescente centralização do capital. A unidade mais eficaz para a produção de numerosos valores de uso chave (mas certamente não todos os valores de uso) é aquela que centraliza uma maior quantidade de produção destes valores: uma fábrica concebida para produzir dez automóveis ou dez computadores por ano não é competitiva (mas um advogado, um médico ou um pequeno gabinete não são menos eficazes que uma grande empresa que opera nestes sectores da actividade). Por isso, mesmo que baixasse sensivelmente a intensidade capitalista, a entrada na produção continuaria reservada aos que dispõem de um capital sempre considerável para adiantar (para a compra de equipamentos, a antecipação dos salários e a constituição das existências necessárias à de produção e à sua comercialização).

A segunda é que a continuação da revolução tecnológica exige investimentos de investigação cada vez mais importantes. Um trabalhador isolado ou um pequeno colectivo de trabalhadores, mesmo que bem qualificados, em geral não estão em condições de levar a cabo estas investigações. Aqui têm vantagem os centros capazes de concentrar capacidades de investigação mobilizando um grande número de investigadores: Estado e grandes empresas. Este elemento constitutivo do monopólio dos proprietários face à indigência dos outros (os proletários) exige hoje uma proporção do investimento total dos capitais necessária para a entrada na produção muito mais forte do que o era há cinquenta anos. É posto então em marcha o reforço deste monopólio de uma maneira cada vez mais sistemática por parte das legislações protectoras da propriedade intelectual e industrial, destinadas de facto a sobreproteger os oligopólios de produção.

A evolução das revoluções tecnológicas articula-se igualmente com a da qualificação do trabalho social exigido para a produção que abrangem.

As formas anteriores da produção não exigiam nenhuma qualificação particular à maioria dos trabalhadores – de facto, os operários das linhas de montagem foram desqualificados. As formas novas são, com frequência, muito mais exigentes. Pode dizer-se que o trabalhador mais qualificado desfruta de maior "liberdade" face ao capital que o emprega? Que beneficia ao menos de um poder de negociação melhor estabelecido? Sobre este tema existem muitas ilusões que é necessário dissipar. Em segmentos particulares, conjunturalmente, a força de trabalho qualificada pode marcar pontos e melhorar a sua capacidade negocial. Mas isso não impede os poderes públicos de prosseguirem o objectivo de criar a longo prazo um excedente adequado de oferta de trabalho. É frequente os empregados das empresas modernas ou os trabalhadores independentes encontrarem-se subempregados, continuando a depender na sua esmagadora maioria de quem os emprega.

Além disso, o frequente debilitamento da intensidade capitalista nas formas modernas de produção permite a melhoria da taxa de lucro, mantendo iguais as demais condições. Estendido à massa da população, quer esteja estagnada, quer em crescimento lento, o lucro tende a açambarcar uma porção crescente dos rendimentos líquidos. A tendência do sistema para produzir um excedente que a seguir não pode ser absorvido por investimentos dedicados à ampliação e aprofundamento do sistema produtivo (uma tendência forte do capitalismo moderno dos oligopólios, como mostrou Paul Sweezy, cuja análise compartilho) vê-se reforçada pela nova revolução tecnológica. Este desequilíbrio global está na origem da crise estrutural do capitalismo neoliberal contemporâneo, ou seja, da estagnação relativa que o caracteriza.

Este excedente pode ser absorvido de diferentes maneiras. Pode ser aplicado em despesas suplementares de esbanjamento social, como a manutenção de polícias privadas associadas à crescente desigualdade na repartição dos rendimentos, como sucede nos Estados Unidos. Mas poderia também sê-lo através de políticas de gastos sociais úteis (educação e saúde), que constituem então formas indirectas de reforço dos rendimentos dos trabalhadores (que permitem, aliás, o relançamento da procura e da produção) ou por meio dos gastos militares (a opção dos Estados Unidos).

Acresce ainda que as formas da globalização postas em marcha pelo neoliberalismo dominante permitem reproduzir e tornar mais profundas as assimetrias internacionais graves no acesso de uns e de outros ao excedente em questão. A este respeito escrevi (cf. Samir Amin, Le virus libéral, ed. Le Temps des Cerises, 2003, p. 129 e seguintes) que na actual conjuntura política marcada pela militarização da globalização e pela ofensiva hegemonista de Washington, o sistema funciona a favor dos Estados Unidos. que absorvem uma boa proporção do excedente gerado pelos demais, para o aplicar num reforço dos seus gastos militares.

Uma revolução tecnológica transforma sempre as formas concretas de organização do trabalho e, por conseguinte, a estrutura das classes dominadas.

Mas a revolução contemporânea não abriu um campo amplo à organização de redes horizontais de trabalhadores capazes, com isso, de se emanciparem, ao menos em parte, das exigências do capital dominante. As situações deste tipo são completamente marginais. Pelo contrário, a evolução dominante dos mercados de trabalho é caracterizada por um fraccionamento reforçado que dá ao capital uma margem de manobra para obter benefícios. A pauperização produzida por esta evolução expressa-se na crescente proporção de trabalhadores não estabilizados (desempregados, precários, informais) como demonstrei noutro lado (cf. Samir AminLe virus libéral, p. 35 e seguintes, ed. Le temps des Cerises, Paris 2003).

Todos estes fenómenos associados à revolução tecnológica contemporânea colocam a questão do futuro do capitalismo e do que implica a lógica dos seus desdobramentos para os trabalhadores e os povos.

Pela minha parte, parece-me que esta evolução põe em causa a legitimidade do capitalismo como sistema social civilizado e eficaz. O capitalismo obtinha a sua legitimidade do facto de o crescimento da produção exigir investimentos de capital cada vez mais maciços que somente os capitalistas podiam reunir. Estes assumiam um risco (cuja importância a teoria convencional sempre exagerou), davam empregos a uma mão-de-obra pouco qualificada, aceitando com isso a ideia de que os trabalhadores não eram capazes por si mesmos de assegurar a eficácia da produção. Quando os trabalhadores – organizados em sindicatos de massas, correspondentes à sua concentração em grandes unidades de produção – conseguem impor ao capital uma repartição estabilizada dos rendimentos líquidos (os salários que beneficiam de um crescimento igual ao da produtividade social do trabalho) e a conjuntura internacional favorece este compromisso social (por temor à competição comunista), a legitimidade do sistema sai reforçada.

As evoluções contemporâneas anularam amplamente estes fundamentos de legitimidade. Hoje existe uma maioria de trabalhadores qualificada (e com isso mais apta a organizar eficazmente a produção por si mesma), mas simultaneamente está mais debilitada face aos patrões. Os investimentos necessários para iniciar uma produção são menos importantes e estariam ao alcance de um possível colectivo se as instituições do Estado e da economia estivessem concebidas para tornar possível a realização dos projectos que são capazes de formular. Dito de outra maneira, o capitalismo como forma de organização social teve o seu tempo. Outras formas – socialistas – parecem, ao invés, em melhores condições de assegurar tanto a eficácia (e a redução do desperdício) como a justiça social e a equidade internacional. Mas as relações de produção capitalistas e as relações imperialistas sempre dominantes opõem-se aos avanços nas direcções necessárias para uma superação do capitalismo; e opõem-se a isso com una violência redobrada.

A minha análise põe a tónica nas contradições do sistema e na sua agudização. Este enfoque não é o que nos propõem os textos dominantes sobre a "revolução tecnológica".

Este ignorou, logo à partida, a lei do valor, substituindo-a pelo conceito superficial de "competitividade nos mercados". Mas este discurso da economia convencional é perfeitamente tautológico (porque a única produtividade que tem sentido é a do trabalho social) e por definição ignora até os efeitos da dominação do capital oligopolístico. Todos os autores que critiquei inserem-se na denominada corrente pós-modernista (Castells entre outros) e coíbem-se de abordar estas questões de método fundamentais, a ela aderindo sem por em dúvida a economia convencional.

O método do pós-modernismo (aqui penso particularmente em Castells e em Negri) pressupõe que a evolução do sistema (entre outros devido à revolução tecnológica em questão) já aboliu classes e nações, ou pelo menos está em vias de o fazer, e já fez do indivíduo" o sujeito directo e principal da história. Este retorno à ideologia plana do liberalismo – o discurso permanente do capitalismo sobre si mesmo – constitui precisamente o objecto central das minhas críticas. Expressas em termos de votos piedosos e de formulações "politically correct" (que Castells sempre se preocupou em não superar) estas visões evolucionistas dirigidas pelo economismo e pelo tecnologismo da ideologia dominante pressupõem que o capitalismo "se superará pacificamente por si mesmo". Eu mantenho-me nas posições do marxismo: se bem que as condições de outro sistema (superior) estejam bem reunidas por esta evolução, as contradições que ela agudiza (e não reduz!) só serão resolvidas pelas lutas através das quais se expressam. Por si próprio o capitalismo – superado objectivamente (e com isso digo senil) – não engendra uma nova sociedade, mas sim a pura barbárie.

Desmentem o realismo da minha análise a ofensiva generalizada dos poderes ao serviço do capital dominante e a militarização do imperialismo? Não brotará "outro mundo" da submissão à lógica dos desdobramentos do sistema e sim da luta decidida contra o mesmo.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.