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Ana Barradas

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Os comunistas e a homossexualidade

Ana Barradas - Publicado: Sexta, 09 Abril 2010 01:00

 

Ana Barradas

A perseguição soviética aos homossexuais nos anos 30 e 40 é comparável à situação nos países ocidentais desse tempo, quando estava na ordem do dia o combate das autoridades às práticas “desviantes”.


Lenine descriminalizou

A situação anterior no país dos bolchevistas não fazia prever tal repressão. Numa sociedade em que as mulheres e as crianças estavam totalmente subordinadas aos maridos, pais, e irmãos e em que, por exemplo, Máximo Gorki havia sido brutalmente espancado por homens de uma aldeia cossaca ao tentar socorrer uma mulher arrastada nua por um cavalo por ter sido acusada do “crime” de adultério, a nova Rússia de Lenine tinha abolido a lei anti-sodomia de 1918, que punia os homossexuais, entre outras medidas revolucionários respeitantes ao divórcio, à família, aos direitos das mulheres, etc.

Ao aprovarem o código criminal de 1922, os bolcheviques tinham reconhecido os pareceres médicos e jurídicos que recomendavam a decriminalização das relações entre adultos do mesmo sexo e tinham incluído nos objectivos da revolução nascente a batalha pela libertação da sexualidade, a abolição das discriminações e limitações com base no sexo e no género e a emancipação das mulheres.

Nessa altura, surgiram muitas mulheres que se vestiam sempre como homens e procuravam viver como eles, como era o caso de várias comandantes do exército e membros de instituições académicas e culturais. Algumas delas, declarando-se abertamente lésbicas, chegaram a exigir o direito à união com pessoas do mesmo sexo. Outras desejavam mudar de identidade e passar a ser homens, ou adoptavam variantes masculinas do seu nome de baptismo, havendo mesmo quem pedisse intervenções cirúrgicas para mudança de sexo. Todas elas tinham ganho visibilidade na sociedade daquele tempo, porque a revolução de Outubro lhes permitira exprimir-se de forma não convencional e elas eram aceites sem objecções. De resto, o novo tipo de mulheres, participantes enérgicas e confiantes da nova sociedade, deu origem a comentários de visitantes ocidentais sobre a suposta “masculinidade” das russas.

Mas a verdade é que o próprio conceito de feminilidade era posto em causa pelos bolcheviques, que rejeitavam a imagem tradicional da mulher ideal, figura delicada, infantilizada e quase mística, incapaz de enfrentar os desafios da construção de uma nova vida. De uma maneira geral, fossem homossexuais ou não, as mulheres rejeitaram também o modelo frágil e impotente e procuravam mostrar-se à altura das tarefas que se lhes colocavam, aceitando profissões e empregos antes reservados exclusivamente aos homens que exigiam força e resistência físicas: tractoristas, condutoras de veículos pesados, aviadoras, etc.

Um debate travado em 1929 no conselho médico do Ministério da Saúde sobre “travestis” e o “sexo intermediário” considerara com algum fascínio e indulgência a existência de “mulheres do tipo masculinizado”. Os psiquiatras interessavam-se por essa nova identidade de género, caracterizando-as segundo uma nova categoria sexológica.

Um dos casos mais famosos foi o do soldado Evgenii Federovich, antes chamado Evgeniia, que em 1922 casou com uma empregada dos correios da cidade onde estava localizado o seu regimento. Quando se descobriu que era mulher, foi acusada pelo tribunal local de cometer um “crime contra natura”, mas o Ministério da Justiça declarou o casamento “legal, porque consumado por mútuo consentimento.”

O próprio Evgenii Federovich defendeu a perspectiva do “amor pelo mesmo sexo” como “uma variante particular da sexualidade humana” e  declarou-se convicto de que, se os indivíduos do “sexo intermédio” “deixassem de ser oprimidos e amesquinhados pela sua própria falta de consciência e pelo desrespeito pequeno-burguês”, as suas vidas tornar-se-iam “socialmente valiosas.” Uma jovem de 23 anos, respondendo a um inquérito aos estudantes da Universidade Sverdlov de Moscovo, escreveu: “Quero ser homem e aguardo com impaciência as descobertas científicas que permitirão a castração e a implantação de órgãos.”

Ainda nos anos 20, alguns indivíduos começaram a procurar psiquiatras e clínicos empenhados no estudo dos mecanismos da diferenciação sexual para lhes pedir o reconhecimento de elementos que fundamentassem uma mudança de sexo.

No entanto, as opiniões dos especialistas não eram unânimes e, à medida que os problemas económicos e as dificuldades políticas se agravaram, aumentaram as pressões para um maior conformismo social e sexual.

Em relação aos homens “femininos”, aliás, a tolerância era muito menor.

Ficou célebre o caso de um oficial do exército que mudou oficialmente de identidade, passou a comportar-se em tudo como mulher e exerceu a profissão de enfermeira, mas, de uma maneira geral, havia menos simpatia para os travestis e os homossexuais do sexo masculino.

Estaline recriminalizou

Na Alemanha, entre 1918 e 1933 foi a esquerda, e em particular o Partido Comunista, quem subscreveu as reivindicações dos movimentos homossexuais. Na época da república de Weimar, o PCA foi a única força política que apoiou constantemente e sem reservas as reivindicações do movimento homossexual. O ponto de vista oficial deste partido era contudo algo matizado: segundo ele, embora os proletários adoptassem uma opinião “tolerante” face à homossexualidade, de nenhuma maneira a “cultivavam”.

Note-se que, apesar desta atitude do PCA, entre os homossexuais em geral grassava um sentimento anticomunista agressivo e muitos apoiaram mesmo activamente o movimento nazi, como de resto a maioria da população, o que permitiu que os nazis tomassem o poder por meios pacíficos.

Quando os partidos de esquerda foram ilegalizados, a repressão abateu-se sem peias sobre os homossexuais na Alemanha e no resto da Europa. Só houve alguma resistência na Suíça, quando um grupo deles constituiu a  revista Schweizerisches Freundschafts-Banner (A bandeira suíça da amizade), na Holanda, onde se formou o Nederlandsch Wetenschappelijk Humanitair Komitee (Comité Humanitário e Científico Holandês), extinto quando se deu a invasão nazi, e na Grã-Bretanha, onde funcionou durante algum tempo a discreta Associação Sexológica Britânica.

Na recém-formada União Soviética dos anos 30, o discurso médico passou a ser mais um meio de controlo social e de definição de “identidades sexuais perigosas”, catalogando como desvios ou doenças tudo quanto não fosse conforme à prática considerada normal. Surgiram argumentos clínicos que estabeleciam a heterossexualidade como única norma aceitável, considerando como taras doentias todos os desvios à norma e dando assim fundamento “científico” à criminalização dos que não a seguiam.

A partir daí, depressa se passou do campo médico para o político. Figuras influentes do regime estalinista associaram a homossexualidade com o fascismo e começaram a denunciar os homossexuais como “agentes de corrupção e subversão”. A 7 de Março de 1934 foi promulgada uma nova lei que fixava uma pena mínima de três anos por “relações sexuais entre homens”. A justificação era que assim o governo soviético combateria um “foco de propaganda da oposição” no seio do Exército Vermelho. Daí à deportação de homossexuais para a Sibéria foi um passo.

O império da homofobia

Durante a Segunda Guerra Mundial, a homofobia soviética influenciou a opinião dos comunistas dos países ocidentais. Curiosamente, não se interrogaram sobre a proximidade de pontos de vista com o regime hitleriano, que a partir de 1935 passou a defender a prisão perpétua para os homossexuais e em 1937 organizou uma grande campanha contra eles, em que foram presos milhares de homens e mantidos sob prisão todos os que recusassem a castração “voluntária”. Diga-se, de passagem, que foi nesse período que, para ajudar jovens de boas famílias a escapar a tal castigo, Freud passou certificados médicos em que garantia que a psicanálise podia “curar” a homossexualidade, apesar de estar convencido de que não se tratava de uma doença e de ter afirmado isso mesmo em público.

Nos anos do pós-guerra, a homofobia estalinista passou a fazer lei nos partidos comunistas, esquecida que estava a tradição leninista de libertação sexual. A adesão a um heterossexismo intolerante passou a fazer parte da cultura comunista, exactamente como acontecia nos meios burgueses, apenas mitigada por uma crueldade e ironia um pouco menos corrosivas. Neste terreno como em tantos outros, a mentalidade dos operários e trabalhadores revolucionários deixava-se dominar pela cultura hegemónica da classe dominante.

Na União Soviética, a lei de 1934 só foi revogada em 1993, não por pressão de activistas gays e lésbicas, mas porque Boris Yeltsin, nesta como noutras áreas, quis dar uma imagem de reformador moderno e distanciar-se dos antigos dirigentes. Na Alemanha foi revogada em Março de 1994.


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