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Michael Löwy

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A centelha se acende na ação. A filosofia da praxis no pensamento de Rosa Luxemburgo

Michael Löwy - Publicado: Segunda, 02 Mai 2011 16:54

Michael Löwy

Por mais que a enterrem uma e outra vez, nâo vâo conseguir se libertar de seu espectro. A centelha incendiaria de suas idéias ninguem conseguira apagar.


Algumas palavras pessoais, a titulo de introduçâo. Descobri Rosa Luxemburgo aos 17 anos, por volta de 1955, graças ao amigo Paulo Singer. Paulo me explicou longamente a teoria do imperialismo, mas o que me atraiu mesmo foram os textos politicos que êle me passou, a critica do centralismo, a visâo revolucionaria e democratica. Aderimos juntos à uma pequena organizaçâo « luxemburguista », a Liga Socialista Independente, em companhia de Mauricio Tragtenberg, Herminio Sachetta, e, alguns anos depois, os irmâos Sader. Tinhamos um local no centro de S.Paulo, que media 2 metros por cinco, cuja unica ornamentaçâo era um quadro com um desenho representando Rosa Luxemburgo. Nessa época recebi de minha mâe um exemplar das cartas de prisâo - Rosa Luxemburg, Briefe, Berlin, Verlag der Judgendinternationale, 1927 - que ela havia trazido de Viena quando emigrou ao Brasil, o que me permitiu apreciar melhor a dimensâo humana e generosa da revolucionaria intransigente. Anos mais tarde, escrevi, sob a direçâo de Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne em 1964, tôda inspirada pelo marxismo de Rosa Luxemburgo (recentemente publicada no Brasil, pela editora Vozes). Foi uma paixâo que dura até hoje.

Esta conferência é a primeira, sobre Rosa Luxemburgo, em que participo no Brasil. Nunca imaginei, ha cinquenta anos atras, que algum dia haveria tanto interesse por Rosa Luxemburgo no Brasil e em especial em Natal, capital do Rio Grande do Norte.

E verdade que esta cidade tem um lugar especial na historia do movimento operario brasileiro : foi a unica vez, na historia do pais, que um grupo de revolucionarios (da Aliança Nacional Libertadora), se reclamando do proletariado, tomou o poder durante uma semana. Nâo conseguiram fazer muita coisa, mas pelo menos declararam a gratuidade dos transportes publicos e o povo adorou tomar o bonde de graça...

1) Ao publicar as Teses sobre Feuerbach de Marx em 1888, Engels as qualificava de « primeiro documento em que esta depositado o germe genial de uma nova concepçâo do mundo ». Com efeito, neste texto Marx supera dialéticamente - a famosa Aufhebung : negaçâo/conservaçâo/superaçâo – o materialismo e o idealismo anteriores, e formula uma nova teoria, que se poderia designar como filosofia da praxis. Enquanto que os materialistas francêses insistiam em que era necessario mudar as circunstancias para que os seres humanos se transformem, os idealistas alemâes acreditavam que, ao promover uma nova consciencia nos individuos, se modifica em seguida a sociedade. Contra estas duas percepçôes unilaterais, que conduziam ao impasse - e à busca de um « Grande Educador » ou Salvador Suprêmo - Marx afirma na Tese III : « A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana, ou mudança de si mesmo (Selbstveränderung) pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas enquanto praxis revolucionaria ». En outros termos : na pratica revolucionaria, na açâo coletiva emancipadora, o sujeito historico - as classes oprimidas - transformam ao mesmo tempo as circunstancias materiais e sua propria consciencia. Marx volta à esta problematica na Ideologia Alemâ, onde escreve : « A revoluçâo, portanto, nâo é apenas necessaria porque nâo ha um outro meio de derrubar a classe dominante, mas ainda porque a classe subversiva (stürzende) pode ter exito apenas por meio de uma revoluçâo para livrar-se de toda velha merda (Dreck) e para tornar-se assim capaz de efetuar uma nova fundaçâo da sociedade ». Isto significa que a autoemancipaçâo revolucionaria é a unica forma possivel de libertaçâo : é so por sua propria praxis, por sua experiencia na açâo, que as classes oprimidas podem transformar sua consciencia, ao mesmo tempo em que subvertem o poder do capital. E verdade que em textos posteriores - por exemplo o famoso Prefacio de 1857 à Critica da Economia Politica - encontramos uma versâo muito mais determinista, que vê a revoluçâo como resultado inevitavel da contradiçâo entre fôrças e relaçôes de produçâo, mas o principio da auto-emancipaçâo dos trabalhadores continua a inspirar o pensamento politico de Marx.

E' Antonio Gramsci, nos Cadernos do Carcere, que vai utilisar, por primeira vez, a expressâo « filosofia da praxis » para referir-se ao marxismo. Pretendem alguns que isto seria apenas uma astucia para enganar seus carcereiros fascistas, que poderiam desconfiar de qualquer referencia à Marx ; mas isto nâo explica porque Gramsci nâo usou outra formula, como « dialetica racional », ou « a filosofia critica ». Na verdade, com esta expressâo êle define, de forma precisa e coerente, o que distingue o marxismo como visâo do mundo especifica, e se distancia, de forma radical, das leituras positivistas e evolucionistas do materialismo historico.

Poucos marxistas do século 20 estiveram tâo proximos ao espirito desta filosofia marxista da praxis como Rosa Luxemburgo. Claro, ela nâo escrevia textos filosoficos, nem elaborava teorias sistematicas ; como o observa com razâo Isabel Loureiro, "suas idéias, esparsas em artigos de jornal, brochures, discursos, cartas (...) sâo muito mais respostas imediatas à conjuntura que uma teoria logica e internamente coerente ». Ainda assim, a filosofia da praxis, que ela interpreta de forma original e criativa, é o fio condutor - no sentido élétrico da palavra - de sua obra e de sua açâo como revolucionaria. Mas seu pensamento esta longe de ser estatico : é uma reflexâo em movimento, que se enriquece com a experiencia historica. Tentaremos reconstituir a evoluçâo de seu pensamento através de alguns exemplos.

E verdade que seus escritos estâo atravessados por uma tensâo entre o determinismo historico - a inevitabilidade da derrocada do capitalismo - e o voluntarismo da açâo revolucionaria. Isto se aplica em particular à ses primeiros trabalhos (antes de 1914) ; Reforma ou Revoluçâo (1899), a obra com a qual Rosa Luxemburgo se tornou conhecida no movimento operario alemâo e internacional, é um exemplo claro desta ambivalência. Contra Bernstein, ela insiste que a evoluçâo do capitalismo se orienta no sentido de um desmoronamento (Zusammenbruch) do capitalismo e que este desmoronamento é « a via historica que conduz à realizaçâo da sociedade socialista ». Se trata, em ultima analise, de uma variante socialista da ideologia do progresso linear e inevitavel que dominou o pensamento ocidental desde a Filosofia da Ilustraçâo. O que salva seu argumento de um economicismo fatalista é a pedagogia revolucionaria da açâo : «so no curso ... de lutas demoradas e tenazes, podera o proletariado chegar ao gau de maturidade politica que lhe permita obter a vitoria definitiva da revoluçâo ».

Esta pedagogia dialética da luta é também um dos principais eixos da polêmica com Lenin en 1904 : « é somente no curso da luta que o exercito do proletariado se recruta e que êle toma consciência dos fins desta luta. A organizaçâo, a conscientizaçâo (Aufklärung) e o combate nâo sâo fases distintas, mecanicamente separadas no tempo (...) mas apenas aspectos diversos de um unico e mesmo processo. » E' claro que a classe pode se equivocar no curso deste combate, mas em ultima analise, « os erros cometidos por um movimento realmente revolucionario sâo historicamente infinitamente mais fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor 'Comité Central' ».

A auto-emancipaçâo dos oprimidos implica a auto-transformaçâo da classe revolucionaria por sua experiencia pratica ; esta por sua vez produz nâo so a consciência - tema classico do marxismo - mas também à vontade : «O movimento historico-universal (Weltgeschichtlich) do proletariado até sua vitoria é um processo cuja particularidade reside no fato de que aqui, pela primeira vez na historia, as proprias massas populares impôem sua vontade contra as classes dominantes (...). Entretanto, as massas nâo podem conquistar esta vontade senâo na luta quotidiana com a ordem estabelecida, isto é no quadro desta ordem ». Poderiamos comparar a visâo de Lenin com a de Rosa Luxemburgo com a seguinte imagem : para Vladimir Illitsch, redator do jornal Iskra, a centelha revolucionaria é trazida pela vanguarda politica organizada, de fora para dentro das lutas espontâneas do proletariado ; para a revolucionaria judia/polaca, a centelha da consciencia e da vontade revolucionaria se acende no combate, na açâo de massas. E verdade que sua visâo do partido como expressâo orgânica da classe correspondia mais à situaçâo na Alemanha do que na Russia ou na Polonia, onde ja se colocava a questâo da diversidade de partidos se referindo ao socialismo.

Os eventos revolucionarios de 1905 no império russo tsarista vâo amplamente confirmar Rosa Luxemburgo na sua convicçâo de que o processo de toma de consciencia das massas operarias resulta menos da atividade « esclarecedora » do partido do que da experiencia de açâo direta et autonoma dos trabalhadores : « E' o proletariado que vai derrubar o absolutismo na Russia. Mas o proletariado necessita para isto um alto grau de educaçâo politica, de consciencia de classe e de organizaçâo. Todas estas condiçôes nâo podem surgir da leitura de panfletos e brochuras, mas somente na escola da luta e na luta politica viva, no curso da revoluçâo em marcha. (...) O subito levantamento geral (Generalerhebung) du proletariado em Janeiro, sob a forte impulsâo dos acontecimentos de Sâo Petersburgo, foi, em sua açâo dirigida ao exterior, um ato politico de declaraçâo de guerra revolucionaria ao absolutismo. Mas esta primeira açâo geral direta da classe teve um impacto ainda maior numa direçâo interna, despertando pela primeira vez, como por um choque elétrico (einen elektrischen Schlag), o sentimento e a consciencia de classe em milhôes e milhôes de individuos ». E' verdade que a formula polêmica sobre « os panfletos e brochuras » parece sub-estimar a importância da teoria revolucionaria no processo ; por outro lado, a atividade politica de Rosa Luxemburgo, que consistia em grande parte na redaçâo de artigos de jornais e de brochuras - sem falar de suas obras teoricas no campo da economia politica – demonstra, sem lugar a duvidas, o significado decisivo que ela atribuia ao trabalho teorico e à polêmica politica no processo de preparaçâo da revoluçâo.

Nesta famosa brochura de 1906 sobre a greve de massas Rosa Luxemburgo ainda utilisa os argumentos deterministas tradicionais : a revoluçâo ocorrera « com a necessidade de uma lei da natureza ». Mas sua visâo concreta do processo revolucionario coïncide com a teoria da revoluçâo de Marx, tal como êle a desenvolve na Ideologia Alemâ (obra que ela nâo conhecia, ja que so foi publicada depois de sua morte !) : a consciencia revolucionaria nâo pode se generalisar senâo no curso de um movimento « pratico », a transformaçâo « massiva » dos oprimidos so pode se generalizar no curso da propria revoluçâo. A categoria da praxis - que é, para ela como para Marx, a unidade dialética entre o objetivo e o subjetivo, a mediaçâo pela qual a classe em si se torna para si - lhe permite superar o dilema paralisante et metafisico da social-democracia alemâ, entre o moralismo abstrato de Bernstein e o economismo mecanico de Kautsky : enquanto que, para o primeiro, a mudança « subjetiva », moral e espiritual dos « homens » é a condiçâo do advento da justiça social, para o segundo é a evoluçâo economica objetiva que leva « fatalmente » ao socialismo. Isto permite de entender melhor porque Rosa Luxemburgo se opunha nâo so aos revisionistas néo-kantianos, mas também, à partir de 1905, à estrategia de « atentismo » passivo defendida pelo assim chamado « centro ortodoxo » do partido.

Esta mesma visâo dialética da praxis é que lhe permite superar o tradicional dualismo incarnado no Programa de Erfurt do SPD, entre as reformas, ou o « programa minimo », e a revoluçâo, ou o « objetivo final ». Pela estratégia da greve de massas que ela propôe em 1906 - contra a burocracia sindical - e em 1910 (contra Kautsky), Rosa Luxemburgo encontra precisamente o caminho capaz de transformar as lutas economicas ou o combate pelo sufragio universal em um movimento revolucionario geral.

Contrariamente à Lenin, que distingue a « consciencia sindical» (trade-unionista) da « consciencia social-democrata », ela sugere uma distinçâo entre a consciencia teorica latente, caracteristica do movimento operario no periodo de dominaçâo do parlamentarismo burguês, e a consciência pratica e ativa, que surge no processo revolucionario, quando as proprias massas - e nâo somente os deputados e dirigentes do partido - aparecem na cena politica, cristalisando sua « educaçâo ideologica » diretamente na praxis ; é graças à esta consciencia pratico-ativa que as camadas menos organizadas e mais atrasadas, podem se tornar, em periodo de luta revolucionaria, o elemento o mais radical. Desta premissa decorre sua critica aquêles que baseiam sua estrategia politica sobre uma superestimaçâo do papel da organizaçâo na luta de classes - que se acompanha geralmente pela sub-estimaçâo do proletariado nâo organizado - esquecendo a açâo pedagogica da luta revolucionaria : « seis mêses de revoluçâo farâo mais para a educaçâo das massas atualmente nâo organizadas do que dez anos de reuniôes publicas e distribuiçâo de panfletos ».

Entâo, Rosa Luxemburgo, espontaneista ? Nâo é bem assim...Nesta brochura sobre Greve geral, partido e sindicatos (1906) ela insiste que o papel da « vanguarda consciente » nâo é de esperar « com fatalismo », que o movimento popular espontâneo « caia do céu ». Ao contrario, seu papel é precisamente de « preceder (vorauseilen) a evoluçâo das coisas e tentar acelera-la ». Ela reconhece que o partido socialista deve tomar « a direçâo politica » da greve de massas, o que consiste à « dar à batalha sua palavra de ordem, sua tendência, assim como a tatica da luta politica » ; ela chega inclusive à afirmar que a organizaçâo socialista é « a vanguarda (Vorhut) dirigente de todo o povo trabalhador » e que « a clareza politica, a fôrça, unidade do moviment resultam precisamente desta organizaçâo ».

E' interessante observar que a organizaçâo polonêsa dirigida por Rosa Luxemburg e Leo Jogisches, o Partido Social-democrata do Reino de Polonia e Lituania (SDKPiL), clandestina e revolucionaria, tinha mais semelhanças com o partido bolchevique do que com a social-democracia alemâ... Deve-se também levar em conta, ao discutir as concepçôes organizacionais de Rosa Luxemburgo, suas teses sobre a Internacional como partido mundial centralisado e disciplinado, propostas numa documento redigido em 1914, apos o colapso da Segunda Internacional. Por uma ironia da historia, Karl Liebknecht, numa carta à sua amiga Rosa Luxemburgo, vai criticar esta concepçâo da nova Internacional como « demasiado centralista-mecânica », com « demasiada 'disciplina' e demasiado pouca expontaneidade », considerando as massas « demasiado como instrumentos da açâo, nâo como portadoras de vontade ; enquanto que instrumentos da açâo querida e decidida pela Internacional, nâo enquanto querendo e decidindo por elas mesmas » .

O otimismo determinista (economico) da teoria do Zusammenbruch, o derrocamento do capitalismo vitima de suas contradiçôes, nâo desaparece de seus escritos, ao contrario, se encontra no centro de sua grande obra economica A Acumulaçâo do Capital (1911). O texto que vai superar esta visâo tradicional do movimento socialista do comêço do seculo é a brochura A crise da social-democracia escrita na prisâo em 1915 – publicada na Suiça em janeiro de 1916 - e assinada com o pseudonimo « Junius ». Este documento, graças à palavra de ordem « socialismo ou barbarie » é um marco na historia do pensamento marxista. Curiosamente, o argumento de Rosa Luxemburgo começa referindo-se às « leis inalteraveis da historia » ; ela observa que a açâo do proletariado « contribui a determinar a historia », mas parece acreditar que se trata apenas de « acelerar ou retardar » o processo historico . Até aqui nada de novo !

Mas logo em seguida ela compara a vitoria do proletariado com « um salto da humanidade do reino animal ao reino da liberdade », acerscentando : Este salto nâo sera possivel « se a faisca incendiaria (zündende Funke) da vontade consciente das massas nâo surge das circunstancias materiais que sâo fruto do desevolvimento anterior. » Aqui aparece entâo esta famosa Iskra, esta centelha da vontade revolucionaria que é capaz de fazer explodir a polvora seca das condiçôes materiais. Mas o que produz esta zündende Funke ? E' graças à uma «grande cadeia de poderosas lutas » que « o proletariado internacional fara seu aprendizado sob a direçâo da social-democracia e tentara tomar em suas mâos sua propria historia (seine Geschichte) ». Em outras palavras : é na experiencia pratica da luta que a se acende a centelha da consciencia revolucionaria dos oprimidos e explorados.

Ao introduzir a expressâo "socialismo ou barbarie", « Junius » se refere à autoridade de Engels num escrito de « quarenta anos atras » (isto é, o Anti-Dühring) : « Friedrich Engels disse uma vez : 'A sociedade burguêsa se acha num dilema : avanço ao socialismo ou regressâo à barbarie'. » Na verdade, o que disse Engels à bastante diferente :

« As fôrças produtivas engendradas pelo modo de produçâo capitalista moderno, assim como o sistema de repartiçâo dos bens que êle criou, entraram em contradiçâo flagrante com o modo de produçâo mesmo, e isso a tal grau que se torna necessaria uma mudança do modo de produçâo e de repartiçâo, se nâo quisermos ver toda a sociedade moderna perecer ».

O argumento de Engels - essencialmente economico, e nâo politico, como « Junius » - é mais bem retorico, uma especie de demonstraçâo por absurdo da necessidade do socialismo, senâo a sociedade moderna vai « perecer » - formula vaga que nâo se sabe bem a que se refere. Na verdade, é Rosa Luxemburgo que inventou, no sentido pleno da palavra, a expressâo « socialismo ou barbarie », que teria tanto impacto no curso do século 20. Se ela se refere à Engels é talvez para tentar dar uma legitimidade maior à uma tese bastante heterodoxa. Evidentemente é a guerra, e o desmoronamento do movimento operario internacional em agosto de 1914 que terminou abalando sua convicçâo na vitoria inevitavel do socialismo.

Nos paragrafos seguintes « Junius » vai desenvolver seu ponto

de vista inovador : « Nos encontramos hoje, tal como profetizou Engels ha uma geraçâo, frente à terrivel opçâo : ou triunfa o imperialismo e provoca a destruiçâo de toda a cultura e, como na Roma antiga, o despovoamento, a desolaçâo, a degeneraçâo, um imenso cemitério ; ou triunfa o socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo, seus metodos, suas guerras. Tal é o dilema da historia universal, sua alternativa de ferro, sua balança oscilando no ponto de equilibrio, aguardando a decisâo do proletariado. » Pode-se discutir do significado do conceito de « barbarie » : se trata sem duvidas de uma barbarie moderna, « civilizada » - portanto é pouco util a comparaçâo com a Roma antiga – e neste caso a afirmaçâo da brochura Junius se revela profetica : o fascismo alemâo, manifestaçâo suprema da barbarie moderna, resultou da derrota do socialismo. Mas o mais importante na formula « socialismo ou barbarie » é a palavra « ou » : se trata do principio de uma historia aberta, de uma alternativa ainda nâo decidida – pelas « leis da historia » ou da economia – que depende, em ultima analise, dos fatores « subjetivos » : a consciencia, a decisâo, a vontade, a iniciativa, a açâo, a praxis revolucionaria. Nâo insisto mais porque escrivi ja ha muitos anos um artigo sobre esta questâo (« O significado metdologico da formula 'socialismo ou barbarie' », em Metodo dialetico e teoria politica, S.Paulo, Paz e Terra, 1975). E' verdade, como o aponta Isabel Loureiro em seu belo livro, que mesmo na brochura Junius - assim como em textos posteriores de Rosa Luxemburgo - ainda encontramos referencias ao colapso inevitavel do capitalismo, à « dialetica da historia » e à « necessidade historica do socialismo ». Mas de alguma maneira, com a formula « socialismo ou barbarie », se colocavam as bases de uma outra concepçâo da « dialetica da historia », distinta do determinismo economico e da ideologia iluminista do progresso inevitavel.

Voltamos a encontrar a filosofia da praxis no coraçâo da polêmica de 1918 sobre a Revoluçâo russa - outro texto capital redigido detras das grades da prisâo. O teor deste documento é conhecido : por um lado, o apoio aos bolcheviques, que, com Lenin e Trotsky à cabeça, salvaram a honra do socialismo internacional, ousando a Revoluçâo de Outubro ; por outro, um conjunto de criticas, algumas das quais - sobre a questâo agraria e a questâo nacional - sâo bem discutiveis, enquanto que outras - o capitulo da democracia – aparecem como proféticas. O que preocupa a revolucionaria judia/polaca/alemâ é acima de tudo a supressâo, pelos bolcheviques, das liberdades democraticas – liberdade de imprensa, de associaçâo e de reuniâo - que sâo precisamente a garantia da « atividade politica das massas operarias » ; sem elas « é inconcebivel a dominaçâo das grandes massas populares ». As tarefas gigantescas da transiçâo ao socialismo - « as quais os bolcheviques se apegaram com coragem e resoluçâo » - nâo podem ser realizadas sem « uma intensa educaçâo politica das massas e uma acumulaçâo de experiencias », impossiveis sem liberdades democraticas. A construçâo de uma nova sociedade é uma « terra virgem » que levanta « problemas para milênios » ; ora, « so a experiencia é capaz de trazer os corretivos necessarios e de abrir novos caminhos ». O socialismo é um produto historico « nascido da propria escola da experiencia » : o conjunto das massas populares (Volksmassen) deve participar desta experiencia, de outro modo « o socialismo é decretado, outorgado, por uma dezena de intelectuais reunidos em torno de um pano verde ». Para os inevitaveis êrros do processo « o unico sol curativo e purificador é a propria revoluçâo e seu principio renovador, a vida espiritual, a atividade e a auto-responsabilidade (Selbstverantwortung) das massas que surgem com ela, e se formam na mais ampla liberdade politica ».

Este argumento é muito mais importante do que o debate sobre a Assembléia Constituinte, no qual se concentraram as objeçôes « leninistas » ao texto de 1918. Sem liberdades democraticas é impossivel a praxis revolucionaria das massas, a auto-educaçâo popular pela experiencia pratica, a auto-emancipaçâo revolucionaria dos oprimidos, e o proprio exercicio do poder pela classe trabalhadora.

György Lukacs, no seu importante ensaio « Rosa Luxemburgo marxista » (janeiro de 1921), mostra com grande agudeza como, graças a unidade da teoria e da praxis, - formulada « por Marx em suas Teses sobre Feuerbach » - Rosa Luxembrugo havia conseguido superar o dilema da impotência dos movimentos social-democratas, « o dilema do fatalismo das leis puras e da etica das puras intençôes ». O que significa esta unidade dialética ? « Da mesma forma que o proletariado como classe nâo pode conquistar e guardar sua consciência de classe, se elevar ao nivel de sua tarefa historica - objetivamente dada – senâo no combate e na açâo, o partido e o militante individual nâo podem se apropriar realmente de sua teoria senâo ao passar esta unidade em sua praxis ».

E' portanto surpreendente como, apenas um ano mais tarde, Lukacs redige o ensaio – que também vai figurar em Historia e Consciencia de Classe - « Comentarios criticos sobre a critica da revoluçâo russa em Rosa Luxemburgo » (janeiro de 1922), que rejeita em bloco o conjunto dos commentarios dissidentes da fundadora da Liga Espartaco, afirmando ainda por cima que ela « se representa a revoluçâo proletaria sob as formas estruturais das revoluçôes burguêsas » - uma acusaçâo pouco credivel, como o demonstra Isabel Loureiro. Como explicar a diferença, no tom e no conteudo, entre o ensaio de janeiro de 1921 e o de janeiro de 1922 ? Uma conversâo rapida ao leninismo ortodoxo ? Possivelmente, mas entra em jogo também a posiçâo de Lukacs em relaçâo aos debates do comunismo alemâo. Paul Levi, principal dirigente do KPD, se havia oposto à « Açâo de Março de 1921 » - apoiada com entusiasmo por Lukacs, mas criticada por Lenin - tentativa fracassada de um levante comunista na Alemanha ; excluido do Partido, decide Paul Levi publicar em 1922 o manuscrito de Rosa Luxemburgo sobre a Revoluçâo russa, que a autora lhe havia confiado em 1918. A polêmica de Lukacs com este documento é também, indiretamente, um acêrto de contas com Paul Levi.

Na verdade, o capitulo sobre democracia deste folhêto de Rosa Luxemburgo é um dos textos mais importantes do marxismo, do comunismo, da teoria critica e do pensamento revolucionario no século 20. E dificil imaginar uma refundaçâo do socialismo no século 21 que nâo tome em conta os argumentos desenvolvidos nestas paginas febris. Os representates mais inteligentes do leninismo e do trotskismo, como Ernest Mandel, reconheciam que esta critica de 1918 ao bolchevismo, no que concerne a questâo das liberdades democraticas, era em ultima analise justificada. Obviamente, a democracia à que se refere Rosa Luxemburgo è a exercida pelos trabalhadores num processo revolucionario, e nâo a « democracia de baixa intensidade » do parlamentarismo burguês, na qual as decisôes importantes sâo tomadas por banqueiros, empresarios, militares e tecnocratas.

A zündende Funke, a centelha incendiaria de Rosa Luxemburgo brilhou uma ultima vez em dezembro de 1918, na sua conferencia diante do congresso de fundaçâo do KPD, Partido Comunista Alemâo (Liga Espartaco). Ainda encontramos neste texto referências à « lei do desenvolvimento objetivo e necessario da revoluçâo socialista », mas se trata na realidade da « amarga experiencia » que tem de fazer varias forças do movimento operario antes de encontrar o caminho revolucionario. As ultimas palavras desta memoravel conferência sâo diretamente inspiradas pela perspectiva da praxis auto-emancipadora dos oprimidos : « E' so exercendo o poder que a massa aprende a exercer o poder. Nâo ha outra maneira de ensinar-lhe. Nos ja superamos, felizmente, o tempo em que se pretendia ensinar o socialismo ao proletariado. Este tempo aparentementemente ainda nâo passou para os marxistas da escola de Kautsky. Educar as massas, isto queria dizer : fazer-lhes discursos, difundir panfletos e brochuras. Nâo, a escola socialista dos proletarios nâo necessita nada disso. Sua educaçâo se faz quando êles passam à açâo (zur Tat greifen) ». Aqui Rosa Luxemburgo vai se referir à uma famosa formula de Goethe, Am Anfang war die Tat ! No comêço de Tudo nâo se encontra o Verbo, mas a Açâo ! Nas palavras da revolucionaria marxista: "No comêço era a Açâo, tal é aqui nossa divisa ; e a açâo, é quando os conselhos operarios e de soldados se sentem chamados à se tornarem a unica força publica do pais e aprendem a se-lo ». Poucos dias mais tarde, Rosa Luxemburgo seria assassinada pelos paramilitares – Freikorps – mobilizados pelo govêrno social-democrata contra o levante dos operarios espartaquistas de Berlin.

Rosa Luxemburego nâo era infalivel, cometeu êrros como qualquer ser humano e qualquer militante, e suas idéias nâo constituem um sistema teorico fechado, uma doutrina dogmatica para ser aplicada em qualquer lugar e em qualquer época. Mas sem duvidas seu pensamento é uma caixa de ferramentas preciosa para tentar desmontar a maquina capitalista que nos tritura. Nâo é por acaso que ela se tornou, nos ultimos anos, numa das referências mais importantes do debate, na America Latina em particular, acerca de um socialismo do século 21, capaz de superar os impasses das experiencias se reclamando do socialismo no século passado - seja a social-democracia, seja o stalinismo. Sua oposiçâo irreconciliavel ao capitalismo e ao imperialismo, sua concepçâo de um socialismo ao mesmo tempo revolucionario e democratico, baseado na praxis auto-emancipadora dos trabalhadores, na auto-educaçâo pela experiencia et pela açâo das grandes massas populares é de uma impressionante atualidade, sobretudo aqui, no Brasil e na America Latina.

Dizem os jornais que recentemente, 90 anos apos sua morte, possivelmente teria sido encontrado seu corpo. Havera um nôvo entêrro de Rosa Luxemburgo ? Por mais que a enterrem uma e outra vez, nâo vâo conseguir se libertar de seu espectro. A centelha incendiaria de suas idéias ninguem conseguira apagar.


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