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António Barata

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Em coluna

Sobre a questão Bukarine e os processos de Moscovo de 1936

António Barata - Publicado: Terça, 30 Março 2010 18:31

António Barata

“Como poderia Bukarine pôr em causa Estaline em 1936 se… ele procurava a sua salvação junto do próprio carrasco? Como era pequeno o nosso mundo atrás das grades, esse mundo de humilhados, de feridos, de fuzilados – uma gota de água neste mar que era a vida, esse período entusiástico dos anos 30. Quem não compreender isto perdeu muito simplesmente o sentido da história” – Anna Larina.


Anna Larina Bukarina nasceu a 27 de Janeiro de 1914, na região de Moscovo. Filha de revolucionários, foi adoptada por Larine, um intelectual bolchevique amigo e companheiro de Lenine. Aos 16 anos casa com Bukarine, de quem tem um filho, Yuri. É presa em 1937, depois de Bukarine, e separada do filho de meses, que só volta a ver 20 anos depois.

Anna Larina nunca foi acusada nem julgada. Como todas as mulheres de “traidores à Pátria”, presas e executadas aos milhares, sem qualquer acusação ou julgamento (só no campo de Tomsk, por onde passou em 1938, eram quatro mil), sofreu a deportação, os campos de concentração do Gulag, os sinistros calabouços da Lubianka, os interrogatórios humilhantes e os trabalhos forçados. Libertada em 1953, após a morte de Estaline, lançou-se na reabilitação de Bukarine, investigando, refazendo contactos, recuperando documentos, exigindo o acesso aos arquivos.

Escritas nos anos 80, estas memórias não são nenhum exercício de autocompaixão ou de diabolização do estalinismo. Não é o desejo de vingança que a move, mas o de justiça, e o de dar a conhecer o testamento de Bukarine, a Carta à Geração Futura de Dirigentes do Partido, que este a obrigou a decorar como uma ladainha numa das últimas visitas que lhe fez na prisão, em Janeiro de 1937, onde ele reafirma a sua inocência e fidelidade à revolução e ao comunismo. Redigiu-as com grande contenção (“as memórias não podem deixar de subjectivas. Mas esforcei-me por ser justa, e tanto quanto possível, nada apagar”), com o objectivo de quebrar o silêncio oficial que alimentava a mentira e dizer que Bukarine não foi traidor, nem criminoso, nem espião, mas um revolucionário, um comunista, um bolchevique. Fiel aos ideais da revolução e a Lenine, Anna Larina combateu os que depois da perestroika tentaram tirar proveito da reabilitação de Bukarine – quando em Outubro de 1988, numa sessão comemorativa do centenário do nascimento deste, um historiador do Instituto Marx-Engels o retrata como um homem sem mácula, um modelo de virtudes, uma espécie de Gorbachov antes do tempo, Anna Larina sobe à tribuna e desmente-o, recusando a mistificação e o proveitoso estatuto de viúva do Grande Resistente que lhe queriam atribuir.

O testemunho da Anna Larina é fundamental porque, além de ter sobrevivido ao terror, conheceu as pessoas, viveu muitos dos factos e circunstâncias com que se fabricaram os processos. A ela não interessa debater a justeza ou o erro das ideias de Bukarine, Trotsky, Zinoviev e outras vítimas do Processos de Moscovo, nem fazer a defesa de qualquer das oposições a Estaline. O que lhe interessa é provar que os processos foram uma fraude monstruosa; que as confissões foram arrancadas sob tortura e que os julgamentos estavam decididos à partida; que o partido e o poder saído da guerra civil já não eram os de Lenine nem das classes trabalhadoras; que o funcionamento destes deixara de ser colegial; que o estalinismo foi um corte com leninismo e os processos um expediente de luta política e eliminação física das oposições; e que o ponto de viragem se iniciou com a doença que incapacitou Lenine de influenciar as decisões do Comité Central.

O quadro que Anna Larina nos dá do partido é o de um corpo amorfo, burocratizado, dependente da vontade, opiniões e caprichos de Estaline. As decisões eram tomadas por Estaline e o seu grupo restrito, que depois as comunicavam para aprovação, por aclamação, nas reuniões dos órgãos “dirigentes” do partido e do Estado. O ambiente era doentio, de desconfianças e jogos baixos, e o poder assente essencialmente na polícia política e no Ministério do Interior, entidades cujas competências se estendiam da política à economia: além de dispor de um força de trabalho exclusiva e barata constituída pelos milhões de presos utilizados como mão-de-obra forçada e escrava, o NKVD dirigia complexos produtivos estratégicos como as indústrias militares e as grandes obras (linhas férreas, canais, minas, etc.).

Se o quadro traçado nos permite perceber o ambiente que possibilitou construir a farsa dos Processos de Moscovo, ele não explica a questão das confissões. Da mesma forma que não se pode explicar o estalinismo pelo terror, também não se podem explicar as confissões com as torturas. Porque confessaram eles, bolchevique com décadas de militância corajosa e abnegada durante o czarismo, a revolução e a guerra civil? Por que razão alguns davam vivas a Estaline, ao partido e à revolução no momento da execução? Porque é que a monstruosidade das acusações, de tão absurdas, não meteram os acusadores a ridículo e os desacreditaram (era essa uma das esperanças de Bukarine e alguns outros), dado que os acusados eram pessoas com um passado revolucionário de décadas, reconhecidas e admiradas pelo povo? Como acreditar que conspirassem a favor da contra-revolução, se agiam às claras, sem se organizarem clandestinamente, tal como haviam feito durante o czarismo? Anna Larina explica: “Havia uma verdadeira fórmula mágica que actuava imediatamente: a ameaça de exclusão do Partido… Tanto uns como outros, os ‘trotskistas’ como os ‘direitistas’, à custa de serem humilhados, à custa do achincalhamento da sua própria dignidade, procuravam a todo o preço não romper com o PCR(b), não pensavam senão regressar ao Partido a despeito de Estaline. Mas, entretanto o Partido tinha-se tornado o partido de Estaline. Ficando nele, os antigos oposicionistas, gente de espírito crítico, submeteram-se em nome da manutenção da unidade, ao diktat de Estaline. Neste reside, parece-me, uma das causas essenciais do destino trágico que conheceram os velhos bolcheviques”.

Ou seja, eles não viam no Estado e no poder soviético o inimigo de classe. Acreditavam que o terror estalinista era um trágico erro de percurso numa via que acreditavam vitoriosa e a caminho do comunismo. Não o percebiam como um momento fundamental na consolidação do poder de classe de uma nova burguesia, burocrática e sem propriedade nem capital privado. Fenómeno novo, que fugia às formas conhecidas de contra-revolução, gerado pelo bloqueio da revolução, pela impossibilidade de se construir o socialismo num só país, isolado e sob pressão imperialista, maioritariamente camponês e economicamente atrasado, e pela liquidação da antiga burguesia russa na guerra civil. Como, para eles, o que estava a acontecer, apesar de todas as contradições e acidentes de percurso, era a construção do socialismo, ficavam ideologicamente desarmados. Fora da realidade soviética, o que se lhes abria à frente era um enorme nada. Uma década após a derrota das suas propostas (sobre a NEP, o comunismo de guerra, etc.), não conhecia a URSS um progresso sem precedentes, tanto mais espectacular quanto mais difíceis eram as condições de existência finda a guerra civil? O progresso inimaginável da URSS nos anos 30 não era a prova viva do acerto da via estalinista? As palavras de Bukarine, no final do julgamento, são esclarecedoras: “Não há nada em nome de que valha a pena morrer, se eu quiser morrer sem confessar os meus erros. E, pelo contrário, todos os factos positivos que resplandecem na União Soviética tomam proporções diferentes na consciência do homem. E foi o que no fim de contas, me desarmou definitivamente, foi o que me forçou a dobrar os joelhos perante o Partido e perante o país… Se por um milagre qualquer ficares vivo, qual será o teu objectivo? Isolado do mundo, inimigo do povo, numa situação que não tem nada de humano, totalmente separado de tudo o que constitui a essência da vida… E quando chegam aos meus ouvidos os ecos de uma vasta luta, tudo isso exerce a sua acção e encontramo-nos em presença de uma vitória moral interior e completa da URSS... na realidade o país inteiro está com Estaline. Ele é a esperança do mundo, ele é o criador.”

Bukarine, minha paixão, Anna Larina Bukarina, Terramar, 2005.

O livro é complementado por anexos contendo documentação vária – o texto integral do testamento de Lenine, uma carta de Bukarine a Anna Larina que ela descobriu 50 anos depois nos arquivos do KGB, cartas de Yuri escritas nos anos 70 a vários dirigentes dos partidos comunistas europeus, fotografias, etc. Contém também um útil resumo dos Grande Processos e do terror e notas biográficas sobre Estaline, da responsabilidade da edição portuguesa, a qual resvala por vezes para o anti-estalinismo primário.

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