1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (0 Votos)
Ana Barradas

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Em coluna

Cartas de um preso político a sua filha

Ana Barradas - Publicado: Quinta, 03 Fevereiro 2011 01:15

Ana Barradas

A "petite histoire" da vida dos militantes do PCP é muito pouco conhecida. Sempre se cultivou a ocultação dos percursos individuais, por razões de clandestinidade que se entendem mas segundo um padrão recorrente que se prolongou muito para lá do fim do fascismo.


A recente morte de alguns dirigentes recorda-nos essa quase ausência de memória histórica em termos de vida pessoal. Por isso valorizamos aqui documentos fidedignos que os próprios deixaram: correspondem-se com familiares falando da sua condição de prisioneiros, da família, dos dramas e dificuldades, de como se comportar perante a adversidade, da arte e de poesia e das atitudes a tomar perante a vida em geral.

Tivemos o privilégio de conhecer uma pequena colecção de cartas escritas de Peniche nos anos 60 de um alto dirigente do PCP à sua jovem filha, já na altura funcionária do PCP e que esteve presa em Caxias dos 20 aos 27 anos. São cartas manuscritas de um tamanho equivalente a uma folha A4 frente e costas, permitidas uma vez por mês e lidas pelas duas comissões de censura, a de Peniche e a de Caxias, como se pode ver pelo carimbo da censura sobre a carta.

As cartas têm toda a formalidade e cautelas que se podem esperar de quem sabe que vai ser lido pelos carcereiros e tem condicionada a castigos a autorização de se corresponder com a filha: "Passarei agora a escrever-te mensalmente uma folhinha assim, para estritos problemas pessoais." A primeira carta anuncia à filha a chegada a Peniche, depois da condenação a pena maior: "Cheguei! Voei por montes e vales. Crespas ondas eu venci. Cem mil batalhas travei. Rudes borrascas sofri. Com os músculos retesados o calendário bati. Mas cheguei! Cansado, esfarrapado, mas com o riso nos olhos!" Era de praxe o optimismo, a expressão de um ânimo imbatível e a afirmação da vitória, mesmo na adversidade de estar preso e ter passado pelos maus tratos da tortura. O compromisso de luta suplantava tudo: "Os acontecimentos rolam, rolam, indiferentes aos nossos desejos e emoções com a sua dupla face de dor e esperança – de tal é feita a certeza – a afirmarem que a vida, mesmo conspurcada de regressões e lodo, é sempre pujante e promissora. E isso nem um só momento devemos esquecê-lo."

Sabemos que os Beatles gravavam nesse mês o seu primeiro disco, em Chipre degladiavam-se turcos e gregos, a Bolívia ganhava o título de campeão sul-americano de futebol, os cursos da Academia Militar em Portugal eram encurtados para fornecer mais oficiais para a guerra, o papa João XXIII publicava a encíclica Paz na Terra, terminara a guerra entre a Índia e a China, Francisco Martins Rodrigues escrevia cartas insistente ao CC do PCP criticando a linha sobre o derrubamento do fascismo, as alianças com a burguesia democrática, a questão da guerra colonial e do alinhamento do Partido pelo PCUS contra o Partido Comunista chinês. Não sabemos em que acontecimentos pensava este preso, mas tudo isto lhe devia passar pela cabeça.

Família

Tinha duas filhas já crescidas, uma filha muito pequena e um filho de dois anos que mais tarde foi entregue aos padrinhos, visto a mãe e o pai estarem presos. Ao longo de 12 cartas não se cansa de exprimir alegria pela "ranchada de filhos" que teve: "Bem pode a senhora vida ter-me feito e vir ainda a fazer-me as mais travessas partidas. Não conseguirá apagar-me a alegria ímpar que me deste quando pela primeira vez fui pai". O culto da família estava bem enraizado no pensamento do preso, em consonância com a cartilha vigente na altura nos meios comunistas. Mas "não basta o vínculo de sangue para unir as famílias. Pelo contrário, a realidade mostra todos os dias que quando esse é o único traço de união não há mesmo união – há uma consideração relativa e pouco mais." Porque o conceito de família era essencialmente político, fala da "íntima determinação de não legar aos meus filhos a mancha duma indignidade que pudesse amanhã fazê-los sofrer à lembrança de seu pai". Referia-se provavelmente ao facto de ter resistido à tortura e de não ter falado durante os interrogatórios pela PIDE. Preocupado com os filhos pequenos, recorda à filha: "Tenho sempre diante dos olhos as vicissitudes da tua vida e da tua irmã" (ambas na clandestinidade desde crianças). "E desde já façamos tudo o que pudermos para arredar tudo isso das suas pequeninas vidas." A raiz da sua emoção, assinalada pela outra filha que o visitara em Peniche, era "pôr no mundo duas gerações de filhos e sentir partir-se o coração por não poder acompanhá-los desde os primeiros passos, como sempre foi minha aspiração profunda; não poder cuidar dos seus problemas com o entranhado interesse que me merecem; não poder, como qualquer pacífico 'papá', correr com eles, livremente, as cavalitas, pelos campos fora." Quase todos os presos sentem duramente a sua omissão como pais e sonham com uma vida alternativa em que pudessem cuidar da família. Este não era excepção. Mas a militância estava acima de qualquer consideração, era preciso renunciar a tudo, como explica: "Por isso a necessária abdicação de tudo isso que alimenta a solicitude dos pais me dói profundamente e ao mesmo tempo sinto é que é assim, que tem de ser assim, ainda que se parta o coração." Estabelecia-se como que uma relação dialéctica entre a vida privada, suprimida quase por completo e por isso fonte de dor e desgosto, e a entrega à causa, portadora de alegria e esperança. Era esta que valia. "Há muito que me habituei à renúncia de muitas coisas – uma outra bela coisa que se aprende na prisão – e já estou bem couraçado" [contra as negligências da família].

O filho pequeno era quem o apoquentava mais: "Começa já a ser necessário pensar na saída dele, que faz 3 anos em Agosto." Estava na prisão de Caxias com a mãe. "Está quase a deixar a mãe. Estamos muito apreensivos porque praticamente não tem outra vez para onde ir e isto amargura-me bastante. Como se resolverá tudo isto? A minha impotência para intervir nisto é das coisas que mais me dói." Meses mais tarde: "Outro problema vai ser arrancar o menino à mãe e à irmã. Uma recente tentativa para o fazer dar um passeio com a tia redundou num berreiro tremendo e numa resistência tenaz. Mas terá de ser um drama inevitável e aconselho uma forma de o fazer sair a dormir."

Hábitos de leitura

A leitura era de regra e este preso não escapa às directivas do Partido: aproveitar o tempo de cadeia para estudar: "Um dos efeitos positivos da forçada e indesejável reclusão é ainda o de poder ser aproveitada para preencher lacunas culturais que uma vida agitada não permite colmatar." (...) "Já vou lendo alguns livros. Tenho em primeiro lugar os da biblioteca da prisão, mas, além dos que possa receber, tenho ainda a possibilidade de ler os dos meus companheiros. (...) Claro que gosto das matemáticas. Para mim é uma óptima ginástica mental, além do interesse próprio. Se por aí houver uma tábua de logaritmos faz jeito. Outra coisa de que muito necessitava era um dicionário de português que fosse menos mau. (...) Até agora recebi as "Líricas" de Camões, o "Auto da Alma" – o menos progressista dos autos de Gil Vicente e uma pequena brochura sobre a obra dramática deste nosso precursor duma dramaturgia nacional". O patriotismo cultural é evidente e naquela época foi também uma das marcas da política do PCP neste campo. Passados uns largos meses, o preso recebe a tábua de logaritmos e os livros Opúsculos históricos de Damião de Góis e Felizmente há luar de Luís de Sttau Monteiro. Um pouco mais tarde refere a leitura de O filme e o realismo de Baptista Bastos e Os olhos e o sol de um autor russo: "O primeiro é uma boa contribuição para a actualização e aclaramento do novo realismo (...) pois a mistificação revestiu-se das roupagens mais subtis e impõe-se, por isso, desnudá-la e pôr em evidência o que há de permanente – e contudo em constante mutação – na literatura e na arte."

Conselhos à filha: "Em primeiro lugar, o estudo, de preferência o estudo objectivo da realidade nacional nas suas múltiplas facetas. Está tanta coisa por fazer, vai ser necessária tanta devoção e capacidades para revitalizar o organismo ulcerado que vão deixar-nos..." (...) "É preciso sempre buscar a 'contra-mola que resiste' – expressão de um poema da filha – mesmo nas situações mais difíceis e aparentemente sombrias. Mas os insucessos parciais dum empreendimento justo não são senão estádios transitórios para uma fase nova, irrevogável – a antítese da derrota."

"Tenho-me entretido com algumas coisas da história pátria e tenho podido documentar-me razoavelmente sobre aquele interessante período de 1383/85 e o das descobertas e cada vez me capacito mais de que, se quisermos penetrar as origens de algumas das nossas deformidades congénitas, é aí que temos de ir buscá-las."

A pintura era um dos temas recorrentes entre pai e filha: "Tenho o teu van Gogh sobre a mesa, como uma nota de arte [a palavra seguinte foi censurada].

"Já reparaste que o pequeno tem um pouco da tua expressão?"

Noutra carta para a filha: "Saiba que logo que o recebi o instalei na minha pequena 'galeria de arte' sobre a minha mesa de troglodita (os modernos trogloditas têm mesas) ao lado daquela outra reprodução do van Gogh que antes me enviaste. (...) Sim senhora, também conheço ao natural o tal da roda de raparigas com os cabelos ao vento e algumas outras das suas mais belas composições e, apesar de coisas a nosso ver incongruentes e difíceis de digerir, admiro a sua pintura.

"Conheço também ao natural uma agrupação das melhores obras daquele outro bizarro génio da pintura – Picasso – nas suas várias escolas e fases, e acredita que se não tivesse visto as belas coisas que vi só teria má impressão dele e não o levaria a sério..."

"Hoje mando-te um velho desenho que fiz do avô em 1936 (...). O mais que te posso dizer é que está parecido. Só as mãos estão delicadas de mais para as suas massas calosas temperadas do calor da forja. Repara na sua velha samarra, o chapéu na cabeça ('Cá em casa não há santos', dizia ele), o seu ar interessado na leitura do jornal. Um pai e um avô de que nos podemos orgulhar..."

Os pequenos luxos de cadeia

A filha mandou-lhe um "caderno de folhas soltas" e ele censura-a porque "deve ter custado algumas dezenas de escudos". "Não, querida, não preciso de nada. Mas se nas coisas que dizes existirem houver uma espécie de camurcine, mesmo velhota, faz-me jeito". Referia-se por certo às roupas usadas recolhidas pelo Partido para serem entregues aos funcionários e aos presos.

Mais tarde recorre a ela: "Bom, já que insistes vou fazer-te um pedido: poderás arranjar-me uns lápis de cores? (pode-se lá conceber bonecos para meninos sem vivas cores!)".

"Desde o primeiro contacto deixei as coisas claras à família: para mim, além de algumas necessidades mínimas e realmente necessárias, mais nada; para vós – os meninos e tu – tudo o que pudessem." (...) "O que essencialmente me importa é que não estou na minha actual situação (como tu na tua) por 'escroquerie' ou objectivos de egoísmo pessoal.

O centrismo na luta de classes

Sobre uma parenta rica: "Não devemos julgar com igual severidade todas as infracções de princípios. Tratando-se de problemas humanos, julgo ser de boa norma pesar o lado bom e o lado mau das pessoas, relacioná-los com as condições ambientais, de consciência, etc. E, claro, julgar as faltas tanto mais severamente quanto mais graves. No meio de tudo isso pode sempre haver alguma coisa a recuperar." (...) "Vê, por exemplo, o caso da avó [antiga costureira]. Profundamente crente, mas nos seus actos e palavras transpira a consciência dos simples que passaram uma vida inteira de sacrifícios, mourejando desde que de manhã abrem os olhos até à noite os fechar, criar os filhos, fazer prodígios de economia, trabalhar ainda nas horas vagas para auferir um pouco com que tapar as graves lacunas do orçamento familiar. A avó é povo, minha filha. Essa é a diferença. E por isso é capaz de sofrer e enternecer-se e até avaliar com justeza as desditas duma filha, dum filho, duma neta. Com algumas diferenças é também talvez esse o caso da tia."

Acerca dos problemas no trabalho de outra parenta: "Fico muito surpreendido com o que dizes das dificuldades do seu emprego. Bem, naturalmente os patrões são sempre patrões mas a meu ver os da F. mereceriam sem dúvida outra consideração. Eu não me esqueço que em ocasiões mais prósperas as famílias dos empregados doentes recebiam integralmente as suas férias e sem descontos, quando bem sabemos que as remunerações da Previdência são inferiores. É, apesar de tudo, um gesto que seria gentil retribuir, agora que atravessam uma vida difícil. Não podemos senão considerar francamente más e negativas as mesquinhas dissensões que referes. Nós podemos compreender que haja empregados que moldaram os assentos nas cadeiras e a quem problemas de falso prestígio levem a atitudes por vezes despeitadas. Podemos também compreender que numa pequena empresa como essa, a F. e os restantes empregados se movam em acanhados limites em que os pequenos problemas podem assumir ares de catástrofe se os poucos empregados não fazem um esforço constante, até certo ponto fraternal, para os reduzir à sua justa proporção. Pois bem, em momentos de crise como os que se vive esse esforço deveria ser maior e mais porfiado. E isso só pode ser obtido com uma grande prova de serenidade, de abstracção de todo o personalismo, com uma firme noção do que é secundário e mesquinho e do que é permanente e essencial. (...) As relações entre patrões e empregados têm, apesar das diferentes concepções, certas normas jurídicas que devem ser observadas – estritamente observadas – e dentro delas é sempre possível encontrar solução ajustada e construtiva com as quais ninguém perde e todos têm a ganhar. O contrário é anarquismo e 'homem lobo do homem' entre pessoas de quem tal coisa não pode admitir-se. A F. e as duas irmãs devem mostrar-se serenas, esforçarem-se por destruir as barreiras da separação e darem o exemplo da objectividade. São trabalhadoras de mérito e não será qualquer provisória (se a tal se chegar) baixa de categoria que lhes limitará os seus horizontes de vida." Quando se pensa nos nossos actuais PEC I, II, III e os que se seguirão, só podemos concluir que nem os neoliberais podiam superar tal espírito de colaboração.

Liberdade

A última correspondência deste acervo de cartas é um postal escrito a 22 de Dezembro de 1964, com a filha já em liberdade "neste Natal e Ano Novo, os primeiros que passas depois da 'noite escura'." O postal é a reprodução do quadro de Van Gogh "O quarto de dormir de Van Gogh".


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.