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ngelo Pineda

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Fundamentos do nojo

A serbian film

ngelo Pineda - Publicado: Sábado, 23 Outubro 2010 20:08

Ângelo Pineda

O passado sábado tive a oportunidade de assistir à projeção de ?????? ???? (“Um Filme Sérvio“), programada na Secção Oficial Fantástico Competição do Festival Internacional de Cinema da Catalunha, na formosa vila de Sitges.


Era uma projeção largamente esperada porque a fita chegava com a aura de ser o filme polêmico da presente edição. Os bilheteiros e bilheteiras informavam sobre a sua dureza quando alguém lhes solicitava uma entrada, os trailers continham sérias advertências preliminares sobre o contido, este e LA Zombie foram os únicos filmes no que se proibia a entrada a menores de 18 anos e antes de aceder à sala de projeção havia bem visível na porta uma ambulância para atender possíveis enjôos ou desfalecimentos...  Ninguém fora enganado e todo o pessoal sabia antes de vê-lo que o filme não era recomendável para estômagos delicados. Contudo, algumas pessoas empalidecidas abandonaram o cinema antes do final.

A história versava sobre Miloš, um ator pornô retirado que vive com a sua família e que tem de fazer fronte a algumas dificuldades econômicas. A presumível solução aos seus problemas chega da mão de Vukmir, um esquisito diretor cinematográfico que lhe oferece uma importante quantia de dinheiro por protagonizar um filme pornográfico ignorando o roteiro. Não tardará em descobrir as peculiares conceições artísticas de Vukmir, que incluem um extenso repertório de sadismo e perversão. Quando Miloš decide abandonar é demasiado tarde: acorda uma manhã sem memória dos dias precedentes e começa a reconstruir o inferno pessoal ao que foi submetido por parte de Vukmir, quem se valera de drogas e sugestão para que o ator cometesse todo tipo de vilezas.

O diretor e o roteirista de Um Filme Sérvio comentaram nos médios de comunicação que a história era uma espécie de alegoria da situação política e social no seu país; uma reflexão sobre o poder, a tirania e as tensões inter-étnicas nos Bálcãs. Para construírem essa alegoria, valeram-se de algumas das cenas mais fortes que jamais tenho visto no cinema. O filme quer desassossegar e desassossega. Ora bem, em minha opinião não é um bom filme. As personagens não têm demasiada profundidade e o roteiro é francamente discutível. Por outro lado, é extraordinariamente complexo não ser previsível num gênero que acostuma a apoiar-se em estruturas narrativas muito rígidas. Um Filme Sérvio não é uma exceção.

Contudo, mercê ao clima intelectual de Espanha, o filme virou num dos meus preferidos. Espanha trocou os padres pelos opinantes profissionais e claro, logo da projeção, a mídia protagonizou algumas ceninhas lamentáveis de pânico moral. E o pânico moral é o verdadeiramente terrífico, porque é o terreno no que germina o conservadorismo.

Um bom exemplo é o programa matinal do canal espanhol Cuatro conduzido pela apresentadora Concha García Campoy. Acho que é um bom exemplo precisamente porque não está tirado da mídia de direitas: o canal pertence ao grupo de comunicação Prisa, grupo ao que se lhe atribui socialmente um caráter “progressista” pelo simples fato de ser ideologicamente próximo ao PSOE.

A apresentadora e os participantes na tertúlia, indistinguíveis entre eles e indistinguíveis dos seus congêneres de outros canais, estavam de acordo na necessidade de proibir a exibição do filme; pelo que, mais do que um debate, o processo assemelhou-se a uma emboscada preparada contra Àngel Sala, diretor do Festival, quem estava no outro lado da linha telefônica intentando tornar todas as bolas que lhe enviavam desde platô.

Para além do fato anedótico, este “debate” é paradigmático no que se refere aos recursos discursivos que se empregam desde os médios de comunicação contra algum inimigo social ou político. Vaiamos por partes.

Concessões aparentes

O fato de trabalharem para um grupo de comunicação aparentemente progressista permitiu à condutora e aos participantes da tertúlia apresentarem-se, antes de entrar na problemática, como pessoas alheias ao passadismo. Vários deles, antes de emitir qualquer opinião, louvaram a referencialidade do Festival, afirmaram estar em contra da censura e não ser “conservadores” ou “retraídos” em matéria moral. Até fingiram ficar escandalizados diante das insinuações de Àngel Sala que, com razão, dissera que os argumentos dos seus contraditores não eram próprios do ano 2010.

No reconhecimento ao certame estavam implicitamente afirmando: «Não estamos contra o filme por estarmos contra o Festival». Nas auto-definições estavam implicitamente afirmando: «Incluso nós, que temos uma mentalidade aberta, estamos por evitar a exibição do filme; imaginem».

Definição e imposição do problema

Porém como resulta evidente que a maioria da população ignora a existência do filme sérvio, é necessário contextualizar o assunto, definir o problema. Como nenhum dos presentes no debate viu o filme, a Campoy empregou a crônica que redigiu o jornal conservador El Mundo, nêmese empresarial de Cuatro e médio de comunicação que sempre mostra uma grande “simpatia” pelas iniciativas culturais catalãs.

A crônica levava o título objetivo, sem qualquer viés, de «Violência e sexo extremos em Sitges». Mas é de supor que não é suficiente para predispor o público contra a exibição do filme. Qualquer festival de cinema de terror está cheio de fitas caracterizadas pela violência extrema e algumas incluem cenas de contido sexual. Que é o que faz Um Filme Sérvio censurável?

A crônica destaca de maneira detalhada duas cenas controversas de abuso a menores que são, dou fé, duríssimas. Como veremos, a argumentação contra o filme consistirá e secundarizar o fato de que se está a falar dum filme de ficção onde nenhuma criança foi abusada realmente e onde todas as cenas de sexo e violência são simuladas. Assim, ignorando a função que estas cenas têm no conjunto da história ou na mensagem que os seus realizadores querem transmitir, colocam o problema a uma audiência predisposta negativamente contra o filme pela inclusão de menores em cenas de contido sexual. Impõe-se também a pergunta à que o debate, definitivamente enviesado, deve dar resposta: «Isto pode exibir-se numa sala de cinema?»

Desnaturização do inimigo

Seja como for, não chega com pronunciar-se contra a censura, e menos quando logo deste pronunciamento, advoga-se por proibir a exibição duma expressão artística; o que sempre é um pouco... fascista.  Cumpre desnaturizar o produto: Um Filme Sérvio não é arte (e, portanto, pode ser censurável).

Mas qual é a definição de arte? Ainda mais: qual é a definição de arte que pode deixar fora um produto como o filme sérvio? Em realidade, qualquer definição de arte é problemática e controversa. E muito provavelmente, este “conselho de sábios” televisivo não tenha qualquer autoridade meritória ou acadêmica para resolver definitivamente o assunto.

Não obstante, todo o mundo tem direito à opinião; ainda que for para dizer tontarias. É assim que um dos participantes na tertúlia chama a «não invocar a arte» para falar de Um Filme Sérvio, porque «a arte é uma coisa séria e estética». Em contraposição, o filme apenas é «simples abjeção». Ótimo. A arte é uma coisa séria, bonita (estética) e contraposta à abjeção: os três termos que se empregam na definição são subjetivos. A seriedade é um conceito ambíguo e a formosura estética e a virtude moral, quando menos como as entende o opinante, deixaria fora do campo artístico a todas as expressões transgressoras que exploram o grotesco ou o irreverente.

Aceitemos realizar uma valorização moral a nível esclarecedor: o abuso a crianças é abjeto. Poderíamos concordar neste ponto sem nenhum problema com o opinante. Mas o que está a defender este opinante é que a representação ficcional do abuso às crianças é abjeto (portanto não é arte). Com esta sentença descobrimos que produções como Novecento, a Lolita de Kubrick, Mistic River, Hard Candy, Filhos dum deus menor, The boys of Sant Vicent, Mammooth ou o Salò de Pasolini não são obras de arte cinematográficas. E não afirmo que Um Filme Sérvio seja comparável em qualidade aos títulos anteriores, simplesmente sinalo que todas compartem a representação ficcional do abuso sexual a menores ou da pedofilia duma maneira mais ou menos explícita.

É estupendo que Concha García Campoy, noutro exercício destinado a fazer aceitável a sua posição censora, afirme que defendera a estréia, em 1975, de Salò ou os 120 dias de Sodoma face os ataques fascistas da época. A referência é maravilhosa por dois motivos: o nível de sadismo e de elementos controversos no filme de Pasolini é equiparável a Um Filme Sérvio, e na época da polêmica estréia no Estado espanhol a Campoy devia ter uns 15 ou 16 anos. Resulta difícil imaginá-la com tão tenra idade numa época tão convulsa e perigosa, defendendo heroicamente uma obra cujo visionado, muito provavelmente, lhe estivesse vetado.

Apelo emocional e construção do inimigo

Como é possível que todo o anterior não seja suficiente, define-se o filme como «um ataque ao espectador, à moral e à sociedade». Uma das pessoas do debate chega a perguntar-se com preocupação «o que se está a passar com a civilização». Resulta difícil ver como pode um simples filme abalar a civilização, seja o que for que este grande pensador entende por tal. Em todo caso, os termos que se empregam aludem diretamente ao público do programa apelando à sua irracionalidade emotiva. Este apelo, muito comum na manipulação da mídia, consegue freqüentemente esquivar a observação crítica ou objetiva do que se comunica. Quando o opinante se pergunta sobre a civilização, está pressupondo um processo de degradação do que o filme é mais um passo apenas, mais um “ataque”. Esta pressuposição transmite uma sensação de emergência útil cara à mobilização do público.

Mas quem é o sujeito ameaçante? Quem ataca? É um lugar comum quando se fala em ideologias a conceição segundo estas se constroem definindo um “nós” face um “eles”. Eu acrescentaria outro elemento: constroem-se definindo um “nós gigantesco” face um “eles diminuto”.

Quem seria esse “eles diminuto”? Não é o presidente nem a organização do festival, que apenas aparecem como culpáveis duma «deixação de responsabilidades». Também não é o diretor, o produtor ou os roteiristas do filme, que quase nem são mencionados. Para esclarecer este “quem é quem” remitiremo-nos a uma citação fantástica que um dos “sábios” deitou sobre a mesa: «(a proposta de censurar Um Filme Sérvio) não penso que seja um pensamento de nenhum tipo conservador; é um pensamento, acho, de princípios morais que são os que o 99% desta sociedade compartilhamos. Talvez haja um 1%, que é o que vá, paga a entrada do Festival e logo aplaude, que não compartilha esses princípios». Quer dizer, o inimigo é o imoral público de Um Filme Sérvio, entre o que tenho a honra de achar-me. Quando o diretor do Festival convida o opinante a não insultar o público, a moderadora diz que ninguém insultou. Não, claro! Incluso, quando alguém na mesa se pergunta a que público vai dirigido ao filme, é audível uma resposta clara: «a tarados».

Comento a questão por se não ficou claro no que levo exposto até agora: não é uma apologia do sadismo; os “tarados” saímos da sala de cinema com certo desassossego, com uma má sensação até, porque as cenas relatadas não foram precisamente rodadas para agradar ninguém.

Criminalização

Uma vez delimitado o inimigo, procede-se à sua criminalização. Neste caso, consiste em apagarem a fronteira entre a ficção e a realidade equiparando o filme com qualquer produto ilícito de pornografia infantil.

Por uma parte, face à projeção, invoca-se o Ministério de Interior e o de Cultura para intervirem de alguma maneira. As imagens que contem o filme são equiparadas às confiscações de arquivos ilícitos por parte da polícia e incluso chega a afirmar-se que «são piores». Não é que não distingam a realidade da ficção; é que - lembremos!- nem viram o filme.

Por outro lado, acusa-se alegremente o público de ser o alvo das intervenções policiais em contra da pederastia: «público assim já sabemos existe, cada dois meses há uma batida policial...». Não só não têm qualquer elemento para realizar esta afirmação; é que, com o Código Penal na mão, não podem fazer nada em absoluto porque a projeção de Um Filme Sérvio é singelamente legal.

Não se passa nada. Alarga-se a definição do criminoso e já está. Assim, quando o diretor do festival critica que se empregasse o qualificativo de “delitivo” para definir o público do filme, a moderadora replica: «Bom, se alguém considerar delitivo algo, por que não vai dizer?». Dito com outras palavras, o delitivo não se define em relação à legislação vigente, senão ao discutível critério deste comitê gerontocrata.

Proposta política de fundo

Naturalmente, quando se defende uma postura nestes termos e com esta intensidade, existe um interesse ideológico de fundo. Neste caso é que na arte não vale tudo. E os limites não são os que de fato marca a legislação, são os que estes demagogos entendem que a legislação deveria estabelecer.

Assim, criticam que a organização do Festival permitisse o filme passar o filtro da seleção, que algumas instituições que financiam o evento permitissem a projeção, que o Ministério de Cultura não desse uma qualificação inapropriada da fita e que Interior não atuasse da única maneira que poderia: a proibição e a confiscação.  Em resumem, que os diversos poderes que intervêm previamente à realização do ato não decidissem o que pode e não pode ser visto pela sociedade.

Desta maneira, fala-se de «linhas vermelhas», de «limites que não se podem ultrapassar» e até se chega ao oximoro de fixar uma margem aceitável para a provocação; literalmente dize-se que o filme «passa a linha da transgressão normal», algo contraditório já que a transgressão define-se precisamente por ultrapassar as linhas estabelecidas do que é socialmente aceitado como normal.

Em definitiva, o que de maneira implícita propõem estes “democratas” é um sistema político paternalista que supervise a produção cultural desde critérios morais, critérios destinados a classificar de maneira legal as diferentes expressões artísticas entre aceitáveis e censuráveis.

Blindagem do discurso

Por último, para previrem possíveis objeções a todo o anterior, desacreditam os eventuais contraditores («alguns falarão em “censura”!). Insinua-se que o Festival apenas aceitou o polêmico filme para se promover mediante a controvérsia e ataca-se Àngel Sala ad hominem acusando-o de ser «antiquado» e ter uma mentalidade «quadrada» por não aceitar sem mais a versão dos opinantes e por considerá-los retrógrados ou censores.

Não se pode exigir coerência lógica a um discurso que não está destinado a ser debatido, pelo que, neste “debate”, o recurso a todo tipo de falácias realizou-se com a garantia de quem não vai ser discutido.

Conclusão pessoal

Se entendi que era necessário reflexionar sobre esta questão, não é certamente porque seja o máximo defensor do direito abstrato à livre expressão ou porque entenda que este episódio lamentável seja uma preocupante exceção à tônica geral da mídia espanhola. Por certo, muitas pessoas pensarão que exemplos parecidos são tão habituais, que pode ser até uma exageração destacar precisamente este.

Porém, decidi fazer este comentário para ilustrar recursos que se empregam não apenas contra Um Filme Sérvio, senão contra todo o que os e as intelectuais mainstream entendem que deve ser proibido.

Por outro lado, logo de realizar uma reflexão tão extensa sobre o tema, qualquer um pode perceber a sensação de ter perdido o tempo. Eu poderia ter razão no que afirmo mas... Quem tem a faca e o queijo na mão?

Há muitas dinâmicas sociais que devem ser mudadas. Mas não chega com ter a razão, há que ter a força para impô-la.

 


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