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Carolina Peters

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Amigos ocultos e inimigos públicos

Carolina Peters - Publicado: Segunda, 30 Novembro 2015 00:00

É preciso constranger cada dirigente que, na mesa do bar ou da reunião, diminui uma mulher, que interrompe a fala de uma mulher.


Não é de hoje que as feministas da esquerda associam momentos de crise ao recrudescimento do conservadorismo e à investida contra os direitos das mulheres, em especial contra os direitos sexuais e reprodutivos. No cenário político brasileiro, a resistência das mulheres é uma das principais frentes de enfrentamento a Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados e um dos principais operadores do ajuste fiscal preparado pelo governo federal.

Nas ruas desde a luta contra as terceirizações, regime de contratação precarizado que atinge sobretudo as mulheres, ao lado do movimento sindical e popular, o movimento feminista nas últimas semanas mira o Projeto de Lei 5069/2013, de coautoria de Cunha, que visa impedir o atendimento integral e de urgência às mulheres vítimas de estupro, criminalizar a profilaxia da gestação e o acesso à chamada “pílula do dia seguinte”. As mulheres mobilizam atos massivos em diversas capitais e grandes cidades brasileiras defendendo o direito ao corpo e, no limite, o direito à nossa própria existência e reconhecimento como sujeitos autônomos.

Em confluência com as ruas, campanhas com o objetivo de quebrar o silêncio ganham adesão nas redes sociais. Narrar a violência é sair da posição de objeto e vítima, é digerir os fatos, se fortalecer e assumir o protagonismo sobre o curso da vida. Após a campanha #meuprimeiroassédio, a hashtag #meuamigosecreto se propõe a apontar comportamentos misóginos e racistas por parte de “amigos” e conhecidos.

Uma das grandes conquistas do feminismo foi a afirmação de que “o pessoal é político”, o que significou trazer para a agenda pública temas que até então se restringiam ao âmbito privado, como a violência doméstica e sexual. Ao publicizar os relatos íntimos, e perceber a recorrência de histórias, os quantos “amigos secretos” poderiam ser identificados àquela breve descrição, fica evidente de que não se tratam de casos isolados ou comportamentos masculinos fora do padrão. Mas de um sistema de opressão-exploração que se apropria do trabalho doméstico não remunerado concentrado nas mulheres, controla nossos corpos e nossa expressão, alijando-nos no espaço público e da política. Que nos violenta diuturnamente buscando nos anular. Tornar públicas essas pequenas e grandes violências privadas é tirar de si a dor e transformá-la em combustível de uma resistência coletiva.

A adesão da pauta do combate à violência contra a mulher pelo movimento feminista brasileiro se confunde com a própria trajetória de auto-organização das mulheres, dos embates que vivenciaram no movimento social, dentro da esquerda e em casa com seus companheiros e camaradas. É preocupante e aterrador que, décadas depois, uma hashtag, coisa tão efêmera, seja capaz de nos colocar diante de tantos episódios contundentes envolvendo pessoas próximas, muitas das quais companheiros inegáveis de luta, apoiadores de algumas de nossas causas.

Há pouco mais de um ano, na noite em que foram divulgadas denúncias muito graves de machismo, abuso sexual e assédio moral contra certo professor universitário identificado a várias bandeiras progressistas, eu e uma amiga estávamos à mesa. Não havíamos ainda tomado conhecimento do caso, mas conversávamos sobre a quantidade de intelectuais, de dirigentes partidários e de movimento, de militantes sociais que fazem uso de sua posição destacada para se aproximar de mulheres e coagi-las a realizar seus desejos sexuais. Figuras que com a mesma tranquilidade com que se posicionam em defesa dos povos indígenas, da luta pela terra e contra o capital, no convívio manifestam seu desprezo intelectual pelas companheiras, acham graça em expor mulheres a situações de vulnerabilidade e acobertam agressores.

Sentam duas feministas num bar e, não necessariamente nessa ordem, tratarão de dois temas: sobre a disputa por espaço político – sejam cargos de direção, seja incorporação de pautas e formulações do movimento de mulheres por suas organizações políticas – e sobre assédio. Comentários inapropriados, relacionamentos abusivos, desqualificação de companheiras, intimidação, agressões físicas e verbais, estupro. Tudo isso dentro da esquerda. Nos últimos anos, nós, mulheres de esquerda, avançamos muito, conquistando cotas nos espaços de direção, reivindicando creches e cirandas para as crianças em atividades políticas, mas ainda não encontramos uma política afirmativa que se contraponha à misoginia cotidiana.

Na brincadeira Amigo Oculto, o momento crucial é justamente a revelação. No caso dessa campanha virtual, não se trata de meramente apontar nomes. A imprecisão dos acusados não é indireta pueril, como busca nos convencer quem se beneficia do patriarcado. O nome oculto propõe por um lado um diálogo franco, resguardando a integridade da denunciante; por outro, generaliza o ocorrido e atesta a dimensão da violência sexista. Contar não basta: é necessário ter resposta, reciprocidade. Isso diz respeito aos nossos sentimentos e integridade física como mulheres, e também diz respeito ao engajamento político e militância de metade da classe trabalhadora. Esses episódios precisam começar a ser tratados e repreendidos de forma sistemática e indistinta pelos que se propõem a construir uma outra sociedade, de homens e mulheres livremente associados.

 E repreender também as mulheres “empoderadas” que reproduzem essa lógica masculinista, da “política da virilidade”. É preciso repensar nossos hábitos sexuais opressores, reafirmar que ceder não é consentir, que não é não e ponto final. Estranhar que um companheiro esteja presente na plenária sem sentir a ausência de sua companheira que ficou arrumando a casa e cuidando dos filhos do casal. Não podemos seguir segurando esses fardos sozinhas, sem dar nome aos sentimentos, reconhecer as violências e reordenar o jogo. Transformar as organizações de esquerda e os movimentos sociais em espaços privilegiados de vivência, desenvolvimento intelectual e expressão das mulheres. É nosso direito viver sem violência, e lutar por isso é uma tarefa da esquerda.


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