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Juliano Medeiros

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Marx, Gramsci e o poder: dois marxismos?

Juliano Medeiros - Publicado: Terça, 24 Novembro 2015 08:30

Marx foi um dos mais influentes pensadores do nosso tempo. Inspirados por suas ideias, movimentos políticos, organizações sociais e correntes de pensamento ajudaram a forjar o século 20. Portanto, sua obra teve uma influência não só intelectual, mas também política. Como típico pensador de seu tempo, Marx tem uma obra que abrange a economia, o direito, a filosofia, a história e a política. Estruturando uma interpretação que reunia diferentes campos do conhecimento – a chamada “Economia Política” – desenvolveu sua teoria a partir da análise do funcionamento do capitalismo e seus impactos sobre a totalidade da organização social.


Marx estudou, ao mesmo tempo, tanto o processo de exploração quanto de dominação. Sua teoria foi, contudo, castrada e reduzida unicamente a um deles. Para alguns marxistas, bastaria mudar a propriedade jurídica das empresas para criar uma nova sociedade. A debilidade dessa concepção hoje salta à vista.[1]

Uma das mais importantes obras de Marx e que mais fortemente enseja interpretações mecanicistas sobre o processo histórico, é a famosa Contribuição à Crítica da Economia Política. Em sua introdução, ele afirma que:

Na produção social de sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade: estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.[2]

Da leitura apressada dessa passagem, poderíamos prontamente dividir a sociedade em duas dimensões dissociadas: de um lado a economia, a “base” ou a “infraestrutura” das relações sociais; de outro, a política, a “superestrutura” que se ergue a partir das relações sociais de produção e que tem a função de assegurar sua reprodução. Marx seria, assim, apenas mais um dos pensadores cujo modelo dicotômico se baseava num “estado de natureza” (onde primavam a economia e o privado) e num “estado civil” (onde estariam a política e o público).[3] Com isso, muitos críticos de Marx afirmaram inexistir em sua obra uma teoria da política e do poder.

Bobbio, porém, contesta essa posição, ao lembrar que sua primeira obra de fôlego foi precisamente um comentário crítico à seção sobre o Estado da Filosofia do Direito de Hegel, hoje conhecida como Crítica da filosofia do direito de Hegel.[4] Além disso, lembra ainda que, embora não exista uma obra de Marx que trate especificamente do Estado, tampouco podemos afirmar que seus escritos não possuam passagens esclarecedoras de seu pensamento a esse respeito.

Partindo da crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx apresenta as linhas gerais de uma teoria do Estado com base na crítica da filosofia política hegeliana (notadamente, ao método especulativo). Como desdobramento, ele apresenta os elementos de uma teoria do Estado burguês em particular, uma teoria do Estado de transição e uma teoria da extinção do Estado.[5] Nos Manuscritos Econômicos filosóficos (1844) e na Ideologia Alemã (1845) Marx retoma o tema acentuando a relação subordinada do Estado em relação ao sistema social, afirmando que “o modo de produção e a forma de relações, que se condicionam reciprocamente, são a base real do Estado. (...) Estas relações reais não são absolutamente criadas pelo poder do Estado; elas são o poder que cria o Estado”.6 (grifo nosso). Para Marx, portanto, a dependência do Estado em relação à sociedade civil manifesta-se no fato de que esta é o lugar onde se formam as classes sociais e se revelam seus antagonismos.[7] Por isso sintetizaria sua visão de Estado na afirmação de que ele é “(...) a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e em que se resume toda a sociedade civil de uma época”.[8]

Como vimos, Marx tem mais a dizer a respeito do que permite supor a célebre afirmação de que o Estado não passaria de um “comitê de negócios da burguesia”, formulada no Manifesto Comunista (1848).

Para Bobbio nem Marx, nem nenhum marxista – como Lênin, por exemplo – desenvolveram algo digno de ser chamado de uma “teoria do Estado”. Todo o marxismo careceria de uma teoria propriamente política. Seu argumento poderia, no substancial, ser sintetizado nestes termos: a inexistência de uma teoria do Estado ou do poder em Marx se dá pelo interesse excludente dos teóricos marxistas em elucidar as questões imediatas relacionadas à conquista do poder; pelo caráter transitório e breve que teria o estado socialista; e pelos efeitos do que Bobbio denominara “o modo de ser marxista” no período histórico posterior à Revolução russa e, principalmente, à Segunda Guerra Mundial.[9]

Outros autores, porém, consideram incorreta a abordagem de Bobbio. Isto porque, nenhum aspecto ou dimensão da realidade social pode teorizar-se à margem – ou com independência – da totalidade na qual se constitui. É impossível teorizar sobre “a política” como o fazem a ciência política e o saber convencional das ciências sociais, assumindo que ela existe numa espécie de limbo posto a salvo das realidades da vida econômica.[10] Como recordava reiteradamente Antônio Gramsci, as separações precedentes somente podem ter uma função “analítica”, sendo recortes conceituais que permitam delimitar um campo de reflexão a ser explorado de um modo sistemático e rigoroso, mas que de maneira nenhuma podem ser pensados como realidades autônomas e independentes.[11]

Assim, como afirma Kohán, o poder e o Estado não vêm “de fora”, “de cima” (segundo uma difundida metáfora espacial), “da superfície”, para legitimar algo já previamente formado e maduro, já produto terminado, antes que intervenham as relações de poder e atravessem tudo. Em consequência, devemos considerar que a obra de Marx nos oferece poderosas razões que não nos permitem pensar as relações de poder como uma esfera fechada ou circunscrita unicamente na “superestrutura”.[12]

Daí que a fissura que muitos defendem existir entre o pensamento de Marx e Gramsci sobre o poder e o Estado nos parece falsa. Gramsci aprofunda sobre as bases do pensamento de Marx um entendimento que vai no mesmo sentido – o de totalidade. A diferença, segundo Carlos Nelson Coutinho, é que Gramsci – dando como suposto que a análise da economia já havia sido feito por Marx e Lênin – se dedicou mais fortemente a desenvolver de modo criativo os aspectos propriamente políticos da teoria marxista que haviam sido tratados superficialmente pelo economicismo da Segunda Internacional Socialista (e voltariam a sê-lo na época de Stálin).[13] Desse modo, Gramsci surge como um crítico da política na exata medida em que Marx surgira, pouco menos de um século antes, como um crítico da economia, buscando desvendar as leis de funcionamento do capitalismo. Mas como destaca Coutinho, Gramsci não coloca a política acima da economia. Nas palavras do pensador brasileiro:

Para compreender isso, entretanto, é preciso efetuar outra precisão terminológica: novamente de acordo com Marx, Gramsci não concebe a economia como sinônimo de relações técnicas de produção, como o fazem – e por isso merecem a dura crítica gramsciana – tanto Bukhárin quanto Achile Loria. Para Gramsci, a economia aparece não como a simples produção de objetos materiais, mas sim como o modo pelo qual os homens associados produzem e reproduzem suas próprias relações sociais globais.[14]

No dizer de Gramsci, estrutura e superestrutura formam um “bloco histórico” onde a política é resultado do conjunto das relações sociais de produção – não como a imposição mecânica de resultados fatais – mas condicionando as alternativas que se colocam à ação do sujeito.[15] Isso não significa que Gramsci não considere possível um relativo grau de autonomia das esferas da superestrutura. Daí que ele enfatiza – ao contrário do marxismo estruturalista que surgirá anos mais tarde – a possibilidade de conquista da hegemonia política por parte de uma classe antes mesmo da tomada do poder. Neste sentido Gramsci supera Marx, mas não em sentido contrário. Prova disso, é a forma como também enfatiza a perspectiva da extinção do Estado como objetivo estratégico da luta política e econômica das classes dominadas. Para ele, essa extinção significa o desaparecimento progressivo dos mecanismos de coerção e a “reabsorção da sociedade política pela sociedade civil”.[16] Com isso, as funções sociais da coerção e da dominação seriam gradualmente substituídas pela hegemonia e pelo consenso, demonstrando as semelhanças e continuidades nas perspectivas que Gramsci e Marx tinham em relação ao Estado e sua extinção, ainda que o pensador alemão tenha desenvolvido muito menos a questão.

Nicos Poulantzas, numa de suas últimas obras, apresentou como síntese de seu estudo sobre o pensamento de Gramsci a formulação de que “o Estado é a condensação material de uma correlação de forças entre classes e frações de classe, tal como se expressa, sempre de modo específico, no seio do próprio Estado”.[17] Essa seria a consideração complementar, e não contraditória, de Gramsci em relação a Marx: o Estado expressa no seu interior as contradições da própria sociedade, não deixando de ser, portanto, instrumento à serviço da dominação política.

A grande “descoberta” de Marx (e Engels) no campo da teoria política foi a afirmação do caráter de classe de todo fenômeno estatal, o que os levou a confrontar Hegel e “dessacralizar” o Estado. Porém, Marx não pode conhecer o capitalismo que se desenvolveria no Ocidente, com grandes sindicatos, partidos de massa e eleição de parlamentares pelo sufrágio universal. Por isso, Gramsci “complementa” análise de Marx ao introduzir a novidade da hegemonia – já abordada por Lenin – que recebe agora uma base material própria e um espaço autônomo e específico de manifestação: um Estado ampliado e, portanto, mais permeável aos conflitos de classe disseminados na sociedade.[18]

NOTAS:

1 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 1.

2 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 11.

3 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 5.

4 BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 150.

5 Ibid., p. 151.

6 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Editora Centauro, 1982.

7 BOBBIO, Norberto. Nem com Marx, nem contra Marx. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 158.

8 Ibid., p. 159.

9 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, pág. 5

10 BORON, Atílio. Teoria política marxista ou teoria marxista da política. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. BORON, Atilio A.; AMADEO, Javier; GONZALES, Sabrina. 2007. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/marxispt/cap. 6.doc

11 GRAMSCI, Antônio. Cuadernos de la Cárcel . México: ERA/BUAP, 1999.

12 KOHÁN, Néstor. Gramsci e Marx: hegemonia e poder na teoria marxista. Publicado em La Izquierda debate. 17 de março de 2001, p. 29.

13 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 90.

14 Ibid., p. 95.

15 Ibid., p. 97.

16 Ibid., p. 138.

17 POULANTZAS, Nicos. L’Etat, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF, 1978, p. 147.

18 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 128.

Fonte: Lauro Campos.


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