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Ilka Oliva Corado

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Crónicas de uma inquilina

O meu boné da Venezuela

Ilka Oliva Corado - Publicado: Sexta, 17 Julho 2015 13:13

[Tradução de Camila Lee para o DL] A minha irmã-mãe chegou um dia do trabalho com a notícia de que tinha comprado para mim um boné com a bandeira da Venezuela numa loja de segunda mão e que tinha custado 50 centavos. O boné ainda tinha a etiqueta de novo, que felicidade! Tem a bandeira venezuelana e, além disso, diz "Venezuela". Eu o carrego comigo para cima e para baixo e sempre que o uso, mais de um gringo me dá os pêsames com aquela cara de tristeza e me dizem que lamentam muito pelo que está acontecendo na Venezuela, pois Chávez a deixou na ruína e hoje vive sob uma ditadura. "Coitadinhos, gente que está morrendo de fome, quanta violência, nem tem preservativos" (o pessoal só pensa em transar, como se os preservativos fossem a maior tristeza nesta vida). Eu escuto essas coisas e vejo neles aquelas expressões de espanto, como se realmente estivéssemos falando de uma tragédia.


Às vezes, quero deixar pra lá e fingir que não escutei nada, mas não consigo, tenho essa pedrinha aí que não me permite deixar que falem mal da Venezuela na minha frente. O mesmo acontece quando falam de Cuba. Concordo quando se diz que os processos não são perfeitos e existem questões criticáveis, mas a maioria o faz por ignorância, nem sequer por uma postura política bem baseada. Nos Estados Unidos, as pessoas não têm ideologia, aqui o que prevalece é o consumismo, são fantoches dos meios de comunicação que deturpam tudo. E eles acreditam. Disseram para eles que Cuba era perigosa para os EUA e o povo acreditou. Agora, disseram que já não representa tanto perigo e, por isso, estão até emocionados com a ideia de passarem as férias na ilha. Trocaram as cartas: agora, falaram para eles que a Venezuela é que representa este perigo e o povo nem sabe localizá-la no mapa (porque acreditam que a América Latina é o México) e têm a certeza de que é assim, pois a mídia do país deles não mente, muito menos o presidente.

Por essa razão, continuam acreditando firmemente que as intervenções estadunidenses no Iraque não foram invasões, mas sim uma guerra que eles (os iraquianos) provocaram. Não mencione jamais que os Estados Unidos está apoiando o genocídio que Israel está fazendo com o povo palestino, pois, para eles, Israel é intocável (com isto de que aqui existem milhões de judeus "poderosos"... Se soubessem que essa invasão não tem nada a ver com religião). E nem mencione a United Fruit Company porque eles não têm nem ideia. E se dizem para eles que o país deles invadiu muitos outros, propiciou guerras e foi o culpado por tantas torturas, genocídios e roubos de terras, pensam que se tratam de história de pescador. Os soldados estadunidenses não violam meninas, jamais. Eles têm honra. Não se metam com os seus soldados, pois aí sim, os ânimos sobem e voam socos por todos os lados. Se mencionar que os EUA estão envolvidos nas imigrações massivas dos latino-americanos para este país, pensam que isto se diz porque o país deles tem a arrogância de se autodeclararem "o mais poderoso do mundo" e que são os seus dólares os que atraem. Porém, não é assim: a culpa é da sua política externa, a qual não para de meter o nariz nos demais países para que estes possam ser democráticos e se liberarem das garras do império. Nem mencionem isto diante deles, pois lhe perguntarão como se chama o filme para ir vê-lo no cinema. Com eles, as injustiças e as tragédias só acontecem em Hollywood. Vivem dentro dessa bolha bem trabalha pelo sistema e se, de repente, algum se desperta e abre os olhos, já sabemos o que acontece com ele, mesmo que seja estadunidense. O comunismo é o sedativo perfeito que beneficia a estas máfias do capitalismo mundial.

Então, quando me dizem "tadinha" porque o meu país (a Venezuela, pelo boné) está na calamidade e que existe nele uma ditadura (mas coitadinho, se no meu país, a Guatemala, que tem um governo de genocidas apoiado pelos EUA), eu digo para eles que a ditadura está aqui, pois todos os seus cidadãos estão vigiados milimetricamente. Aqui é onde existe uma falsa liberdade. Não há ditadura mais feroz do que a do capitalismo, que reproduz fantoches com a rapidez dos coelhos. Outros olham para o boné como polemica, o mesmo acontece quando uso a minha mochila com a imagem do Che Guevara; gostem ou não gostem os desertores, este homem é um ícone e é reconhecido no mundo inteiro. Muitos se sentem ofendidos, embora não tenham a menor ideia de quem é nem de quem mandou matá-lo, se ofendem porque o sistema diz o que devem pensar e como atuar. São como robôs.

Mesmo que, as vezes, me encontro com estadunidenses muito bem informados e é um luxo debater com eles, embora sejam de diferentes ideologias políticas. Aprende-se muito, mesmo sendo as posturas diferentes. Esses dias são, para mim, de tormenta em meio a uma seca ideológica que este país está vivendo. Por exemplo, tenho um casaco do Brasil e sempre que o coloco, o associam com o futebol. Contudo, se coloco um de Cuba, jamais o associam com os esportes. Se coloco um casaco da Argentina, são capazes de associá-lo com Messi. Se eu lhes dissesse "Cristina e os fundos abutres", cairiam para trás, O pessoal é político, mas o sistema se encarrega de nos gravar o vídeo.

Na semana passada, fui comprar uma caixa de cervejas no depósito de bebidas e, enquanto procurava a marca que eu gosto, entrou um grupo de jovens gringos e latinos. Eu estava com o meu boné da Venezuela e um dos gringos me perguntou em inglês "você é da Venezuela?". Não, mas é como se eu fosse. Sou da Guatemala. Menos mal, porque ia te dizer que lamentava muito pelo que estava acontecendo no seu país. Maduro está matando a população de fome. Respondi que eu sim que lamento pelo que está acontecendo no meu país, a Guatemala, o embaixador do seu país não para de meter o nariz no nosso governo, o que podemos fazer a respeito? Porque a Guatemala sim que está vivendo sob uma ditadura e os Estados Unidos está envolvido no assunto. A Venezuela? Eu pularia de alegria se a Guatemala tivesse "a ditadura" que tem a Venezuela.

Assim foi como começou a conversa, o gringo tinha mais ou menos 40 anos e me disse que dava aula numa universidade do Estado, mas que não tinha ideia do que eu falava, pois não tinha escutado nada sobre isso. Claro, não escutou porque as patranhas que faz este país não vão sair à luz. Aqui contam o que lhes convêm, me parece estranho que, sendo um docente universitário, não esteja informado, esta deveria ser a sua obrigação. Perguntou-me em que eu trabalhava e lhe respondi que limpando casas. Ele não acreditou. Disse que nunca tinha escutado uma empregada doméstica falando assim e eu lhe comentei que isso ocorre porque não nos veem, mas nós existimos e somos mais do que mãos esfregando o chão.

Um mexicano que estava com eles me chamou a atenção por ser guatemalteca e estar usando um boné de outro país, pois isso é antipatriota ( fora, não sou patriota), que como passava pela minha cabeça usar um boné de outro país, isto era traição. Respondi que usaria um boné com a bandeira do México também e com muito prazer. Isso sim lhe agradou. E então me falou que seria melhor uma camiseta da seleção nacional e eu lhe disse que, na verdade, seria ainda melhor uma camiseta com o número 43. Ele ficou nas nuvens, como eu imaginei.

Porém, nem tudo é um mar de rosas, conheci venezuelanos e guatemaltecos que enchem a boca dizendo que são revolucionários, que apóiam a Maduro, possuem camisetas da Venezuela e caminham com orgulho, mas que se saboreiam quando escutam as notícias sobre os soldados gringos violando a meninas na Colômbia. Merda existe em todos os lados. E a merda que finge ser revolucionária é a mais rasteira de todas. Que não tenhamos a menor dúvida sobre a existência das violações infestando a luta revolucionária dos dignos.

Eu continuo com o meu boné da Venezuela e tenho a certeza de que continuarei nessas conversas que parecem triviais quando mais de uma pessoa pense em mencionar que "coitadinho, esse país não tem preservativos...".


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