1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)
Ilka Oliva Corado

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Crónicas de uma inquilina

Guatemala: uma enorme latrina classicista e racista

Ilka Oliva Corado - Publicado: Terça, 09 Junho 2015 10:18

[Tradução de Camila Lee para o DL] Qualquer um diria ao ler este artigo que não é o momento de se fixar em coisas tão pequenas, que é preciso apoiar a luta porque o inimigo é grande, que o tema do racismo e do classicismo irá sendo resolvido como parte da mudança social. O mais certo é que acontece comigo sempre que escreve sobre o sistema de classes que nos infesta como povo, sobre a dupla moral e a descriminação; dirão que sou uma ressentida, que odeio aos que tiveram a oportunidade de viver uma infância feliz e relaxada e de ter entrado na universidade; dirão que, como sempre, escrevo com os nervos à flor da pele e que devo ser racional, não emocional. Também me dirão que aprenda a debater emitindo as minhas opiniões baseadas em fundamentos. E, evidentemente, "rezarão missa" para mim. Ou, talvez, não digam nada. Talvez digam "coitadinha dessa maluca de merda".


Porém, este artigo não é para fazer conjeturas de compreensão leitora, nem muito menos para falar de mim. Desde o dia 20 de maio, no qual se realizou a marcha dos campesinos na capital, tenho o desejo de escrever sobre esse tema, mas deixei passar alguns dias para, precisamente, ficar mais calma e não escrever com os nervos à flor da pele. Sinto cólera, essa fúria milenária com a qual vivemos os que somos marginados durante séculos de exploração e humilhação, mas o que me irrita é o desconsolo de saber que a Guatemala nunca deixará de ser uma latrina classista e racista. Nunca.

Em primeiro lugar, porque tentaram desqualificá-la por ser um país campesino, una meia dúzia de quantos gatos pingados do movimento universitário que uniram as privadas com a pública estiveram presentes, não teve a difusão que deu a mídia à marcha urbana no dia 16 de maio sob o pretexto de destape da rede do IGSS e deram prioridade. E, evidentemente, é importantíssimo, não tento diminuir a transcendência, mas o ponto também não é esse. Porém, falo da marcha explícita do dia 20 de maio porque não foi feita nos departamentos, como ocorre regularmente e como já está longe, a projeção é diferente. Como ver o roubo de jade em Zacapa e a mineração em La Puya, nas proximidades da capital.

Alguns não estavam de acordo com esse movimento indígena por razões políticas e de ideologia, mas, curiosamente, apoiaram as marchas urbanas e o tema a ser denúncia é o mesmo: a corrupção. Então?

Na Guatemala, o tema da equidade fica apenas do discurso da classe média. Foram se manifestar, tiram fotos para guardar de lembrança com os camponeses que levam séculos se manifestando sozinhos, como se eles fossem um cartão-postal. Também, de repente, cumprimentam os obreiros e proletários que marcham ao uníssono, mas não querem a nenhum deles nos postos do governo, não nos principais. Só querem aos povos milenários para o folclore. Para que continuem carregando sobre os seus ombros as sobras que a classe média e a oligarquia lançam sobre eles. Querem-nos para que eles deem a cara, enquanto os outros recuam. Para que curtam as suas mãos como o couro. Para que apodreçam em vida enquanto as crianças bonitas, nos seus privilégios, acedem às universidades privadas para cultivarem os seus neurônios. Jamais farão com que as suas consciências floresçam.

Que isso, na Guatemala nunca teremos a um Nicolás Maduro de presidente (motorista de ônibus, proletário), muito menos a um Evo Morales (campesino dos povos indígenas) porque o racismo nos corrói e o classicismo nos divide. Existem pessoas que pensam terem o "sangue azul" e que, por terem um diploma universitário, também são superiores em inteligência e conhecimento. A única coisa que é certa é que estão se cagando de medo.

Toda a minha vida fui céptica de qualquer iniciativa da classe média na qual incluísse o tema da consciência e da equidade porque pertenço à multidão de párias que essa mesma classe desprezou. Porém, para as marchas recentes, as quais tomaram as ruas da capital, quis dar o benefício da dúvida, quis acreditar que uma mudança era possível e que esta sentiria a dor da marginalização dos que não são "ninguém" e os "burros-de-carga", os "vendedores de tudo", os que "comem qualquer coisa". Nós, caipiras ou não, somos filhos de uma puta.

Com todas as forças do meu ser eu quis acreditar que emendariam, que por fim iriam sentir a dor alheia, que seríamos como "irmãos", que a mudança vinha e seria profunda, desde a veia e desde a repulsão da opressão. Eu quis que esse "tomara!" fosse realidade. Pensei que esses retumbos de rios revoltosos nos encheriam de solidariedade e que abraçaríamos por igual todas as causas em um só coração, em uma só luta: humanos todos. Contudo, como sempre, existem sonhos inalcançáveis e o de uma Guatemala em equidade, livre de descriminação e classicismo é, provavelmente, um deles. E o será até que de verdade nasça em nós a consciência e todos nós percebamos que ninguém é mais importante que o outro.

Essa Guatemala que no papel é: pluricultural, plurilingue e multiétnica, na ação não existe. Este artigo é a minha análise pessoal do que vi nesses últimos dias, cidadãos da capital de universidades privadas, com os seus comentários racistas pensando darem cátedra aos campesinos de como devem se manifestar pacificamente. Para a informação de vocês, digo uma coisa: os campesinos também se manifestam de forma pacífica, que o governo, com os seus braços armados os reprimam e a mídia vendida mude a versão dos fatos e que vocês traguem essa versão, aí é outra história.

Que vocês tenham sorte de estarem se manifestando sem que o governo interfira diretamente com balas para arrematá-los não significa que, se chegasse a suceder, vocês teriam a mesma coragem dos campesinos para dar a cara a tapa e defender a causa. O mais provável é que correriam para se esconderem e nunca mais sairiam para se manifestarem. Por outro lado, eles sairão uma e outra vez, como o fizeram durante séculos. Essa é a diferença entre vocês e eles: a integridade. E essa não se aprende nas salas da universidade. E não é que não são tão superiores como pensam?

Também li comentários nas redes sociais das crianças bonitas da classe média explicando com maçãs aos estudantes de escolas públicas como se organizam as marchas. Morro de rir! Alguma dessas crianças tão bonitas apoiou a marcha dos estudantes quando o Ministério de Educação da Guatemala eliminou a carreira de magistério? Eles também marcharam pacificamente e o governo lhes reprimiu com pau e balas. Não venham me dizer que vocês, por serem instruídos, o fazem melhor. Além disso, foram esses jovens das escolas públicas que nas décadas mais terríveis do Enfrentamento Armado Interno deram a cara e se manifestaram, enquanto vocês, criancinhas bonitas, viam a vida passar nas salas de universidade privada, sem se implicarem para não sujarem os seus sapatinhos e não colocarem em risco a sua comodidade.

Por um acaso pensam que, por se manifestarem contra a corrupção, são mais dignos do que os que deram a vida pelos massacrados, pelos torturados e pelas violadas? Por favor, estão cheios de medo. Não pretendo desestimar as marchas atuais, mas também não vou ficar calada vendo como vocês atacam os que durante século deram a cara por todos. Por marchar agora, se sentem galos de briga? Vocês não conhecem ainda a consciência real, o que estão vivendo é só a fachada, e nada mais. Por algo deve começa, isso é certo, que hoje seja a corrupção, pois doeu nas carteiras deles. Porém, para quando serão as causas que curtem a alma, as de verdade? O esterco já salpicou e as águas sujas nos chegam até o pescoço. Quando é que seremos capazes de mudar o sistema pela raiz, desde as nossas entranhas pessoal e coletivamente?

Eu vi as redes sociais ferverem, nas quais este pessoal da classe média fizeram nomeações, grupinhos, para os postos do governo e em nenhuma incluem a indígenas. Quando são perguntados sobre o motivo, respondem que não existem indígenas capazes, claro, também o seu grupinho é exclusivo de universidades privadas. Está bem, então onde é que ficou aquilo de "somos o povo"? Como sempre, nós, os guatemaltecos, na hora de repartir o bolo, ficamos vendo quem são os que ficam com os maiores pedaços. O divisionismo, o picaretismo, o protagonismo e o oportunismo. Algo assim, como dizer... Que marchem os campesinos, os obreiros e os proletários, mas, isso sim, na hora das nomeações, somente para nós, os das fotos, os dos privilégios. Desse jeito, quando a Guatemala sairá do buraco onde nós mesmos a metemos?

Viram? A mudança deve começar por nós mesmos. Ainda não renunciou o genocida Otto Pérez Molina e vocês já viram como repartirem o bolo. Ainda não é efetiva a reforma da Lei Eleitoral e a de Partidos Políticos e vocês já estão jogando à loteria para que continue a corrupção, só que nas mãos e nas contas bancárias de outros. Sempre na classe média. E com certeza a oligarquia está rindo a gargalhadas. Pretendem serem os protagonistas de uma mudança, pela qual vieram lutando os campesinos, os que sim aguentam balas, pauladas e passam fome.

A mudança na Guatemala irá acontecer quando aprendamos que todos os seres humanos têm o mesmo valor, todas as vozes contam, toda a luta é necessária e a solidariedade e a união são básicas para avançar. Que cada um pode contribuir desde o seu conhecimento e experiência. Que não importa a profissão ou o ofício. Que vale o mesmo a voz de um vendedor de atolesque a de um licenciado. Que o mesmo sangue que tem uma trabalhadora sexual dos bares de Amatitlán o tem uma doutora de hospital privado. Que as mãos de um pedreiro são tão necessárias quanto as de um pianista.

Quando deixemos de vaidade, de arrogância e de apatia e o sistema de casta para nos unirmos como irmãos e caminharmos todos para um mesmo objetivo, humildes e comprometidos, então, talvez, exista na Guatemala uma oportunidade para que volte a florescer. Não antes, não assim como estamos agora, peste.

Não se consegue nenhuma revolução sem a consciência QUE Dói e que mata. Aqui não estou falando que seja mais capaz um indígena que um mestiço, nem vice e versa. Aqui se trata da discriminação. Aqui se trata de que todos lançamos o mesmo fedor quando nos vamos à tumba. De que nos serve a avarícia e a vaidade? Para nada.

Escrever este artigo doeu na minha alma, na minha raiz de campesina, de obreira e de proletária. Bom, continuemos, pois o que temos por enfrentar é mais do que a corrupção. Vamos ver se é certo que podemos e que amamos a Guatemala e que choramos de alegria e de esperança, e que a mudança está vindo. A mudança somos nós mesmos. Mudar o sistema significa mudar a nós mesmos. Atacar a corrupção significa deixar a avarícia própria e de classe. Pensar na Guatemala é renunciar o racismo e fazer com que a inclusão seja uma realidade. Do contrário, seguiremos sendo uma enorme latrina de racismo e classicismo que há séculos está se corrompendo.

Com amor do bom para todos os párias de sempre, curtidos de tanta paulada.

Nota: em nenhum momento pretendo generalizar. Existem letrados que honram o seu título, existem pessoas da classe média que sim são excelentes, bem como existem indígenas que é melhor metê-los na prisão perpétua por traição à pátria.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.