No mundo moderno simplesmente não existe política sem violência, razão pela qual tampouco existe política sem ódio. No entanto, na eleição presidencial brasileira, os dois principais partidos denunciavam a política de ódio do adversário numa tentativa de legitimação como se, de fato, pudesse existir uma "política do bem". O comportamento equivale a clamar por justiça social numa reunião de banqueiros. A redução da política ao ritual da disputa eleitoral cada dia mais previsível, levou o Tribunal Federal Eleitoral à proibição da crítica ao adversário como forma legitima de toda atividade política. Neste contexto tanto o bem comportado comentarista da TV quanto setores das classes subalternas sentindo-se "desprotegidos" ou "vulneráveis", bradam pelo principio da tolerância que segundo a ideologia dominante deveria reger a atividade entre os civilizados.
Há certo invólucro moral no apelo ao amor e ao respeito como regra da política, mas a vitalidade do artificio deve-se sobretudo a operação ideológica pela qual seria possível evitar a violência e o ódio numa sociedade organizada a partir do ódio e da violência. Não se trata de determinação atávica, mas de um instrumento sem o qual a política moderna não funcionaria. Em termos vulgares, há certa reivindicação de trato cordial na arena cuja regra fundamental é o conflito de interesses, particularmente acentuada nas sociedades dependentes e subdesenvolvidas que contou, na esteira da expansão do capital comercial europeu do século XVI, com a necessária violência e racismo em sua formação, marca indelével de nossa evolução histórica e de nosso presente incerto.
Nas condições particulares da sociedade brasileira, é preciso reconhecer que a partir do evanescimento da identidade classista dos sindicatos combativos e dos partidos políticos de esquerda – PT e CUT na cabeça – as classes subalternas ficaram não somente desarmadas para enfrentar o conflito inerente à sociedade burguesa, mas, sobretudo, permaneceram cativa do discurso liberal – especialmente forte nos setores da classe média – para o qual não possuem outro recurso senão o apelo retórico a tolerância e ao "fim do ódio", ignorando o caráter utópico do discurso. Contudo, no lado da classe dominante são setores da classe média quem exibem sem constrangimento, com suas mãos delicadas, o ódio de classe contra os pobres, os proletários, contra os camponeses e tudo que lhes parece fora da normalidade burguesa ou da sociedade tradicional. Mais grave: no contexto atual parece que os proletários e os camponeses já não existem, pois o governo – com silencio cumplice dos tucanos – insiste no caráter classemedia da sociedade brasileira, como se Marx não fosse mais do que um retrato na parede, uma reminiscência histórica talvez lúcida, valente e apropriada para o século XVIII ou XIX europeu, mas completamente sem sentido na atualidade.
Trata-se da banalização da política como expressão do conflito para a qual contribuem não somente a renuncia precoce do PT e da CUT à identidade de classe – levando consigo os comunistas e socialistas da base aliada – mas também da redução da política a moral (vulgarmente tratada como se fosse simples udenizaçao do discurso político), onde a bandeira mais importante seria o combate a corrupção. Nestes termos, a tematização da corrupção chegou pra ficar porque diz respeito a real degradação dos partidos e, portanto, do governo. Mas chegou para ficar porque é constitutivo do Estado e, em consequência, é impossível ocultar seu caráter sistêmico. Ora, a astúcia do monopólio televisivo é clara, pois apresenta a estrutura como se fosse apenas evento! O ódio à corrupção, no entanto, é quase residual em relação aos empresários, pois se destina prioritariamente ao genérico "político", sem dúvida, um ardil liberal para não enfrentar o vaticínio de um barbudo agora suspenso em alguma parede: o estado é mesmo o comitê de negócios da burguesia. O político vulgar, o ex-sindicalista, o empresário exitoso, o liberal bem comportado, o acadêmico no conforto do campus, e tantos outros podem merecer o desprezo e ainda o ódio da classe média: este luxo da política não poderá, de maneira alguma, senão servir como álibi para a próxima operação de assalto ao estado no qual o capital também acumula.
Não é fácil ranger os dentes no terreno da política, reconheço. Mas não haverá outra saída para nós. Em termos sociais será lenta a reconstrução de um sentido e sentimento classista, a afirmação de uma identidade de classe, aquela mesmo que era apresentada como ultrapassada pelo pensamento conservador e reacionário, que iludiu muita gente boa. No entanto, aquela pressão que se exercia socialmente nos sindicatos combativos, na defesa partidária do socialismo era, mesmo quando pálida, a única capaz de tornar mais aceitável e racional todas as desavenças pessoais e justificar, em última estancia, o ódio individual pelo vizinho de porta ou de bairro. E agora?
Agora resta o confinamento parlamentar do conflito político e o exercício cínico da cordialidade típica do cretinismo parlamentar, enquanto nossos condenados da terra sangram em silêncio nas favelas e no sistema carcerário, no assassinato do líder camponês e nos milhares de mortes violentas tipificadas de maneira conveniente como "violência urbana", seja no transito ou no boteco da esquina.
Claro que a digestão moral da pobreza é ingrediente necessário da política da tolerância e do amor, afinal, o que pode o minguado bolsa-família num país em que apenas 5% da população concentra quase 50% da renda? A esquerda liberal acredita, de fato, que a cidadania esta em construção quando o índice de Gini se move em décimas? A eliminação de um horizonte utópico – o socialismo – cuja defesa deveria ser feita aqui e agora, alimentou ainda mais o irracionalismo da política em curso e exibe suas vítimas a luz do dia.
Em resumo, enquanto o velho ódio de classe desaparece do horizonte dos pobres dissipando antiga consciência de direitos e no momento que ganha destaque a ideologia da ascensão social nos marcos do capitalismo (seriamos finalmente um país de classe média!), é necessário acusar como engodo a possibilidade de fascismo entre nós. Ora, o fascismo é fenômeno histórico que emerge como arma da classe dominante em momentos de crise de sua dominação, quando esta já não é mais possível unicamente por meios parlamentares. Não estamos, portanto, nas portas do fascismo. No entanto, esta conclusão não autoriza a falsificação histórica, especialidade do jornalismo. Uma ditadura cordial ou "ditabranda" jamais existiu. A violência e o ódio de classe existente no Brasil são suficientes para manter as coisas no seu devido lugar, sem a necessidade de recurso ao programa fascista, razão pela qual seguirá orientando a ação do Estado e certamente contará com a tolerância, a aceitação dos governos e, no limite, a recusa calibrada dos mecanismos institucionalizados da repressão.
Nas condições brasileiras o mais provável no curto prazo é que o rechaço abstrato ao ódio e/ou a evocação igualmente abstrata à tolerância navegue sem obstáculos, ideologia necessária para que tudo mude desde que permaneça exatamente igual. Assim, o suposto ingênuo de que o Brasil é "um país da delicadeza perdida" seguirá também gozando de popularidade, ainda que não passe de tirada literária falsa. A despeito da delicadeza que ainda podemos encontrar em pessoas, a norma política nos assuntos públicos é mesmo a violência. Enquanto a maioria aceitar que "um mau acordo é sempre melhor do que o bom combate" – peça do conformismo político sempre apresentada como virtude e sabedoria política – a política e a democracia serão sempre lembradas como a arte de engolir sapos. De resto, a democracia liberal admite em seu interior a manifestação e o exercício da violência por parte do Estado e de forças sociais comprometidas com a ordem dominante. Não constitui anomalia e menos ainda um ovo da serpente quando um liberal desavisado ou grande parte da esquerda domesticada acusa que o ódio e a violência estão saindo dos trilhos. O antidoto real para os "excessos" produzidos pelo liberalismo não brotará da consciência social sem dentes para morder implícita na defesa dos pobres, mas de um projeto de classe – o socialismo – e o correspondente movimento de massas em sua defesa.